O HOMEM SENTADO Cunha de Leiradella 08-04-2005 www.triplov.org |
HOMEM DE PRETO (Continuando) Aquele senhor ali (Aponta o Homem Nervoso.) é que estava preocupado. Aliás, muito preocupado. Mas ele não. Ele estava ali sentado como se não estivesse acontecendo nada, disso eu sou testemunha. HOMEM SENTADO Eu tava lendo...
HOMEM NERVOSO Mentira! Tava lendo nada! Não quis nem ler o jornal! E olha que eu perguntei mais de dez vezes: Não vai ler o jornal, não? Não vai ler o jornal, não? E eu perguntei sabe pra quê? Pra ver o quê que ele ia fazer, entendeu? Mas cadê que ele fez alguma coisa? Fez nada! Já sabia quem eles eram!
HOMEM SENTADO (À Mulher de Meia Idade) Isso é uma bobagem.
HOMEM NERVOSO É uma bobagem, não! É uma verdade! (Ao Homem de Preto.) É ou não é uma verdade? Quem compra jornal é pra ler! Não é pra comprar e jogar fora, não!
HOMEM SENTADO Você é louco!
MULHER DE MEIA IDADE Chega! Agora, eu vou falar. (Ao Homem de Preto.) Quando eu cheguei, o senhor lembra?, eu também reparei nisso que o senhor falou. Aquele moço ali (Aponta o Homem Nervoso.) é que tava preocupado. Até perguntou se tinham me batido. Mas ele não. Não era nem com ele. Não perguntou nem como é que tava a minha filha. (Ao Grupo.) Não tava preocupado nem um pingo. Isso, eu posso até jurar.
MULHER JOVEM Comigo foi a mesma coisa.
VELHO Moça. Comigo foi pior. Não quis nem me dar fogo!
MULHER JOVEM (Ao mesmo tempo) Disse até que aquele senhor ali (Aponta o Homem Nervoso.) era louco.
MULHER DE MEIA IDADE Disse a mesma coisa pra mim.
HOMEM ESFARRAPADO E pra mim? Nem acreditou no que eu falei!
HOMEM NERVOSO (Ao Homem Sentado) Tá vendo?! Tá vendo?! (Ao Homem de Preto.) Depois, ainda diz que o dedo-duro sou eu!
HOMEM SENTADO (Ao Homem de Preto) Eles enlouqueceram.
HOMEM NERVOSO (Ao Homem de Preto) Tá vendo?! Tá vendo?! Agora, diz que todo mundo é louco!
VELHO (Ao Homem Sentado) Moço. Eu não sou louco, não, viu? Eu sou um ex-combatente!
MULHER DE MEIA IDADE (Ao Homem Sentado) O senhor devia era ser preso! Fazer isso com a gente!
HOMEM SENTADO Mas eu já fui preso! Aliás, eu fui o único que foi preso!
HOMEM NERVOSO (À Mulher de Meia Idade) Claro que tinha que ser preso! Quem tem culpas no cartório tem que ser preso! (Ao Homem de Preto.) Pro senhor, ele tem ou não tem culpas no cartório, hem?
HOMEM DE PRETO Bem. Quando alguém é preso, supõe-se que é culpado.
HOMEM ESFARRAPADO Eu não. Eu sou sempre encanado sem ter culpa.
HOMEM NERVOSO Você não conta. Você não é advogado.
HOMEM SENTADO (Ao Homem Nervoso) E qual é a minha culpa? Você pode dizer qual é a minha culpa? Hem?
HOMEM NERVOSO (Ao Homem de Preto) Tá vendo?! Tá vendo?! E, depois, diz que não tem culpa! (Ao Homem Sentado.) É preciso ser muito cara-de-pau pra fazer o que você fez! Vir aqui se meter no meio da gente e...
HOMEM SENTADO Eu não me meti no meio de ninguém!
HOMEM NERVOSO (À Mulher de Meia Idade) Tá vendo?! Tá vendo?! Agora, diz que não se meteu no meio de ninguém! (Abrangendo o Grupo com um gesto.) Isto aqui é o quê, hem?
HOMEM ESFARRAPADO Tá bem aqui no meio.
HOMEM NERVOSO Tá vendo?! Tá vendo?! E não sou só eu que tou falando, não!
0 Velho aproxima-se do Homem Sentado, com uma ponta de cigarro na mão.
VELHO Me empresta seu fogo? Moço.
HOMEM NERVOSO Porra, Vovô!
VELHO Eu já disse que não sou Vovô, caralho! Eu sou um ex-combatente, puta que pariu!
HOMEM DE PRETO (Afastando o Velho) Realmente, agora não é hora.
VELHO Mas eu não sou Vovô! Eu sou um ex-combatente!
HOMEM NERVOSO (Ao mesmo tempo) Claro que agora não é hora! Agora, é a hora da verdade!
HOMEM SENTADO Hora da verdade?
HOMEM NERVOSO A hora da verdade, sim! A hora de ajustar as nossas contas!
HOMEM SENTADO Você é louco! (Ao Homem de Preto.) E, além de louco, perigoso!
HOMEM NERVOSO (Ao Homem de Preto) Tá vendo?! Tá vendo?! Agora, sou eu que sou perigoso! Ele é que é dedo-duro e eu é que sou perigoso!
MULHER DE MEIA IDADE (Ao Homem Sentado) O senhor não tem vergonha, não? Um homem tão novo!
MULHER JOVEM Parecia tão bom.
HOMEM SENTADO Mas eu não... Ou vocês tão pensando que eu... Eu só tava aqui porque...
HOMEM NERVOSO (À Mulher de Meia Idade) Tá vendo?! Tá vendo?! Agora, confessa! (Ao Homem de Preto.) Agora, confessou!
HOMEM SENTADO Eu não confessei nada. Eu apenas...
HOMEM NERVOSO (Ao Grupo) Confessou ou não confessou?
VELHO Confessou, sim, moço. Quando eu cheguei ele já tava confessando.
HOMEM SENTADO (Ao Homem de Preto) Eu só disse a verdade. (À Mulher de Meia Idade.) Mas isso não prova nada.
HOMEM NERVOSO Não prova?! Como não prova?! Prova que você já tava aqui. (Ao Grupo.) Ou será que não prova?
HOMEM ESFARRAPADO Quando eu cheguei ele já tava aqui. Isso, eu vi.
MULHER JOVEM Quando eu cheguei, também.
HOMEM SENTADO Mas isso não prova nada. Eu apenas...
MULHER DE MEIA IDADE Tava aqui, sim! (Aponta o Homem de Preto.) Aquele senhor foi que me trouxe. Mas, quando eu cheguei você já tava aqui!
HOMEM NERVOSO Tá vendo?! Tá vendo?! Prova ou não prova?!
HOMEM SENTADO (Ao Homem de Preto) E isso prova alguma coisa?
HOMEM DE PRETO De fato, o senhor estava aqui. Isso é fato comprovado.
HOMEM NERVOSO Tá vendo?! Tá vendo?! Se não provasse você não tava aqui!
MULHER DE MEIA IDADE (À Mulher Jovem) Como a gente se engana com as pessoas!
HOMEM SENTADO (Ao Grupo) Vocês tão enganados. Esse homem...
VELHO Moço. Eu não tou enganado, não, viu? Eu sou um ex-combatente!
HOMEM NERVOSO (Ao mesmo tempo) Tá chamando todo mundo de mentiroso, é? A mim pode chamar, pode chamar, que eu já tou habituado. Mas chamar mentiroso ali ao Vovô...
VELHO Eu não sou Vovô, caralho! Eu sou um ex-combatente, puta que pariu!
HOMEM DE PRETO (Afastando o Velho) Por favor.
VELHO Mas eu não sou Vovô! Eu sou um ex-combatente!
HOMEM NERVOSO (Continuando, apontando um por um) Chamar mentiroso ali àquele senhor, que é advogado, chamar mentirosa àquela moça, que tomou o ônibus errado, chamar mentirosa àquela dona, que tem a filha doente, chamar mentiroso àquele lá, que veio correndo da Estação, chamar todo mundo de mentiroso, só faz isso quem tem as costas quentes. Mas nós não tamos numa ditadura, não! Nós tamos num país livre! (Ao Homem de Preto.) Tou certo ou tou errado?
HOMEM SENTADO (Ao Homem de Preto) Ele tá completamente louco! O senhor sabe que ele tá completamente louco!
HOMEM NERVOSO (Ao Grupo) Além de dedo-duro, ainda, por cima, chama a gente de louco!
VELHO Moço. Moço. (O Homem de Preto afasta-o.) Mas eu não sou louco! Eu sou um ex-combatente!
HOMEM SENTADO Eu não chamei ninguém de louco.
HOMEM NERVOSO Agora, diz que não chamou ninguém de louco! Será que todo mundo aqui é surdo!
VELHO Moço! (O Homem de Preto afasta-o.) Mas eu não sou louco, nem sou surdo, não! Eu escuto muito bem. Sou um ex-combatente e escuto muito bem!
HOMEM NERVOSO (Ao mesmo tempo) Será que todo mundo aqui é surdo?
MULHER DE MEIA IDADE Eu escutei, sim.
MULHER JOVEM Eu também.
HOMEM ESFARRAPADO E eu? Eu não escutei, não?
HOMEM DE PRETO Realmente, o senhor chamou, sim.
HOMEM NERVOSO Tá vendo?! Tá vendo?! Você é um assassino!
O Homem Sentado agarra o Homem Nervoso e tenta abrir-lhe a camisa.
HOMEM SENTADO Ele tá mentindo! Ninguém bateu nele, não!
HOMEM NERVOSO (Soltando-se) Socorro! Ele quer matar todo mundo!
Todos cercam o Homem Sentado.
HOMEM SENTADO Escutem! Escutem! O culpado é ele! Ninguém bateu nele, não!
MULHER DE MEIA IDADE Coitada da minha filhinha! Quase morreu por sua culpa!
MULHER JOVEM E eu, que tomei o ônibus errado?!
VELHO (Ao Homem de Preto) E eu, moço? E eu? Eu sou um ex-combatente!
HOMEM ESFARRAPADO E eu? Eu não vim da Estação, não?!
HOMEM NERVOSO Assassino! Assassino!
Todos avançam sobre o Homem Sentado. Tumulto. O Velho bate, às cegas, com a bengala e o Homem Esfarrapado rouba a carteira do Homem de Preto. O Vendedor de Jornais entra, correndo.
VENDEDOR DE JORNAIS (Gritando) Aí vêm eles! Aí vem eles!
Todos saem, correndo. Um tempo. O Homem Sentado levanta-se com dificuldade. Os Três Homens Vestidos de Escuro entram.
1o. HOMEM VESTIDO DE ESCURO Acompanhe-nos!
2o. HOMEM VESTIDO DE ESCURO Acompanhe-nos!
3o. HOMEM VESTIDO DE ESCURO Não escutou, não? (Puxa o Homem Sentado.) Acompanhe-nos!
O 1º Homem Vestido de Escuro joga o livro em cima do banco e sai. Os outros Homens Vestidos de Escuro algemam o Homem Sentado e saem com ele. LUZ COMEÇA APAGANDO EM RESISTÊNCIA
EPÍLOGO Com a luz ainda apagando em resistência, projeta-se esta frase num telão: “DEVE-SE EXIGIR DE MIM QUE PROCURE A VERDADE. |