O Professor DAGOBERTO PALOMAR,
autor do livro A Era do Botão na Travessia do Milênio,
escreve neste espaço na segunda semana de cada mês.

OS ESPELHOS DE LACAN:
ANA CECÍLIA CARVALHO

Não é possível descrever a literatura de Cunha de Leiradella sem que se tenha em mente o esforço de desconstrução do elemento autobiográfico que esta na base de seu projecto literário. Desde O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior (romance com o qual o autor ganhou o Prêmio Fernando Chinaglia, em 1981), sua narrativa sin-gular vem-se firmando sobre uma espécie de jogo de espelhos, no qual se esboça e, afinal, termina por surgir, multifacetado, o personagem Eduardo, que constantemente inventa para si mesmo o nome de Cunha de Leiradella.

No romance de 1981, Eduardo/Leiradella é um homem (ou entidade textual) atormentado por uma angústia localizada na aguda consciência da fragilidade da existência humana e na certeza da morte. A linhagem à qual pertence inclui Meursault e Antoine Roquentin, que, pela pena de Camus e Sartre, imortalizaram-se pelo exílio que os marcou. Esse exílio não é geográfico, mas relativo àquilo que alimenta o distanciamento crítico desses personagens, tanto em relação ao absurdo e à falta de sentido prévio à existência humana, como às formas cínicas de convivência em sociedade. Contudo, esse posicionamento, sem deixar de conter uma reflexão ética, não pode evitar a incomunicabilidade e a solidão nas quais esses personagens estão mergulhados.

Narrado na primeira pessoa e estruturado em dois tempos (o presente, a partir do qual Eduardo descreve em rápidas pinceladas o cumprimento de um projeto de vida que o fez buscar análise três vezes por semana e tomar tranquilizantes todas as noites, e o passado, no qual retoma as origens da sua história marcada pela tentativa de tornar-se praticamente invisível em sua imobilidade), O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior é, também, a confissão de um fracasso. Eduardo evita as mudanças em sua vida, recusando qualquer coisa que poderia lançá-lo para fora de uma mesmice na qual pretende não correr riscos. Para isso permanece escondido em um emprego medíocre que obteve apenas porque omitiu sua verdadeira formação universitária. Com isso, ele se protege de qualquer exigência de desempenho que viesse a representar desafios ou alguma perspectiva de promoção.

A aparente passividade de Eduardo termina por revelar, paradoxalmente, a actividade de uma força de determinação em permanecer no mesmo lugar. Contudo, não consegue evitar ser envolvido por Márcia, uma colega de trabalho que aos poucos o prende em uma situação cujo desfecho é um casamento sufocante e infeliz. Desse casamento, Eduardo só sairá quando Márcia o rejeitar, lançando-o de volta ao ponto de onde tudo começou, na falta de sentido e no desamparo que provavelmente o reenviarão, anos depois, a cumprir o roteiro da hipocrisia que ele denunciará na abertura da sua narrativa.

O "longo tempo" de Eduardo Cunha Júnior é agora revisitado, em Os espelhos de Lacan , título alusivo à noção lacaniana de "fase do espelho", relativa aos primórdios da constituição do sujeito psíquico. Mas, dessa vez, a linearidade algo circular do romance anterior é rompida em favor de uma narrativa que expõe seu próprio método de desconstrução. Sobre isso nos adverte o autor, no segmento introdutório intitulado Cibergrafia: a 4ª dimensão da narrativa , no qual, não sem ironia, interpela a teoria literária de inspiração pós-modernista, ao propor ao leitor dois limites existentes em qualquer leitura: aquele no qual o leitor "é livre para deitar e rolar (usando) apenas o seu talento e a sua vontade de criar", e um outro limite, no qual "a narrativa será sempre linear, conduzida pela vontade do autor e, por isso, impenetrável a uma leitura comum".

Nesse romance inquietante, tudo gira em torno da suposta morte de Eduardo da Cunha Júnior, que teria sido encontrado morto "num quarto do Colégio Caraça, a pouco mais de 100 quilômetros de Belo Horizonte, num domingo de manhã". Na construção dessa história, "cada palavra continua sendo apenas a mesma palavra e cada história continua sendo apenas a mesma história", mas, ao mesmo tempo, o leitor não pode deixar de lê-lo a par-tir do seu próprio ponto de vista, modificado a cada vez que uma nova versão é apresentada pela voz do próprio Eduardo e de todos os que alegam tê-lo conhecido (incluindo aí a voz do autor que, nisso, se inventa), numa incessante movimentação na qual "a verdadeira verdade é sempre encoberta pela verdade do autor".

O projeto literário iniciado em O longo tempo de Eduardo da Cunha Júnior chega, em Os espelhos de Lacan, a seu ponto máximo de desdobramento, na medida que revela o elemento ficcional presente em toda auto-biografia. Para reconhecer a grandeza desse novo livro de Cunha de Leiradella, não se pode esquecer que, tal como o que ocorre nos momentos privilegiados da construção do eu, a entidade que dali resulta é uma invenção, puro reflexo de uma série polifônica de composições imaginárias que sustentam sempre precariamente uma subjetividade, mas que lhe darão, afinal, uma voz. Freud estava certo, quando suspeitava de que os grandes escritores sabiam disso melhor do que os psícanalistas.

 

Ana Cecília Carvalho é professora da UFMG, psicanalista e doutora em literatura comparada.

(Transcrição da crítica literária de "Os espelhos de Lacan" publicada no jornal "Estado de Minas", Belo Horizonte (Brasil), a 2 de Outubro de 2004).

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