São quatro e vinte da madrugada e Andréa já não chora. Deitou de costas e cruzou as mãos nos seios, e está tão imóvel que mal parece respirar. Tem as pernas estendidas e unidas, e os pêlos do sexo mal se vêem, amassados contra a pele. Os olhos estão vermelhos e encovados, e as olheiras são duas manchas de grafite. O rosto está cortado de vincos e engelhado, como se a pele tivesse desgrudado da carne e tivesse endurecido, e o cabelo continua pastoso e colado na cabeça, e cai no travesseiro como um pedaço de pano velho.
Não sei que sentimento de culpa faz Andréa estar assim. Mas não sei o que fazer. Nunca me senti culpado por ver a minha mãe tomando banho ou por ter deitado com ela. O meu sexo está aí e não fui eu que o criei, do jeito que ele é. Dizem-me que devo dominá-lo, para ser racional. Mas eu sou racional. Só que o meu sexo não é uma equação matemática, é um balão cheio de gás. Mesmo que o esmague o volume não diminui. Apenas aumenta a pressão. A realidade é esta. A pressão existe e não adianta dizer que não existe. O resto, é quererem que eu freie um carro que não estou dirigindo ou feche uma gaveta e deixe a chave dentro.
Na natureza a perfeição é sempre inversamente proporcional ao absoluto. Quanto mais eu me aproximo do infinito mais o infinito se distancia. Quanto mais eu conheço de mim mais visíveis são os limites da minha imperfeição. Quando era menino, era apenas menino. Agora, que sou adulto, é que penso tudo isto.
A culpa não existe. Sou apenas o que posso ser e não o que gostaria de ser. Se pudesse ser o que quisesse e não fosse, aí, sim, seria racional e seria lógico que me culpassem. Mas sou apenas o que posso ser e não é racional, nem é lógico, que me culpem pelo que não depende de mim. Mas culpam. E dizem, ainda, que a razão e a lógica são fundamentais. Mas o que é fundamental para mim? A minha realidade ou a realidade dos outros? Na realidade dos outros, não é racional, nem é lógico, que os besouros possam voar. Para isso existem as leis da aerodinâmica. Mas na minha realidade, os besouros desconhecem as leis da aerodinâmica e voam à vontade. O fato de as leis da aerodinâmica serem racionais e terem lógica não significa que os besouros sejam obrigados a ser racionais e a ter lógica. Significa, apenas, que os homens inventaram as leis da aerodinâmica, como inventaram a culpa, mas não inventaram os besouros.
Não sei que sentimento de culpa faz Andréa estar assim. Mas, se foi forçada, não errou. Apenas pensa que errou e se culpa por pensar. E, se não foi forçada, também não cometeu nenhum crime. Na verdade, e apesar de tudo que já se disse, o ser humano continua sendo o que sempre foi. Uma mistura, e muito mal misturada, de 80% de sexo e 20% de traumas. Só que alguns, justamente os que se dizem mais racionais e mais lógicos, não concordam e fazem tudo para inverter a natureza. E, às vezes, até que conseguem. Mas, feita a inversão, deitam nos divãs dos analistas e passam o resto da vida apavorados com 80% de traumas. Os outros, os loucos como eu, que não querem inverter a natureza, apenas desejam voar como os besouros.
Andréa continua na mesma posição. Completamente imóvel e absorta, como se estivesse vendo um filme dentro dela. Sei que tenho que parar esse filme, mas não sei como abrir a porta da sala de projeção. Acendo um cigarro e fumo durante algum tempo, e o filme não termina. Mas tem que terminar. Ou Andréa pára a projeção, ou tudo que fizemos sumirá naquela tela. Esmago o cigarro no cinzeiro e pego uma garrafa de cerveja, e encho os copos. Não tenho certeza se faço a coisa certa, mas sei que é a hora certa.
- Toma.
Andréa fecha os olhos e recosta-se na cabeceira, e bebe um gole. Foi a coisa certa. O filme terminou. Andréa esvazia o copo e estende o braço. Encho-o outra vez e acendo dois cigarros. Já deixou de garoar e o nevoeiro levantou. Mas, mesmo com a janela aberta, o ar do quarto continua cheirando a fumo de cigarro e a suor. Andréa puxa uma tragada e olha-me, e os olhos já me vêem. Coloco os copos na mesa-de-cabeceira e esmago os cigarros no cinzeiro, e abraço-a. Ela abraça-me também e puxa a minha cabeça contra os seios.
- Eu queria ficar aqui.
A minha cara está encostada nos seios e a pele está úmida e está quente, e cola-se nas minhas faces. Lembro de Andréa na minha sala e do desejo que tive de deitar a cabeça no colo dela, e fecho os olhos e me sinto levitar.
- Eu também.
Calamo-nos e ficamos abraçados, e o coração de Andréa bate, compassado.
- Sabe? Eu gosto quando você olha pros meus seios. Parece até que eles são gente.
Levanta os seios com as mãos em concha e olha-os. A mancha por cima do esquerdo está mais roxa e parece uma mordida. Beijo a pele arroxeada e Andréa arqueia o corpo, e empurra o seio na minha boca.
- Eu acho que podia até gozar, só de você chupar assim.
Deita-se de costas. A pele por baixo do direito está mais áspera, e a mancha arroxeada por cima do esquerdo é mesmo uma mordida. Pego neles e as minhas mãos tremem.
- Sabe?
As minhas mãos tremem mais eu lembro dos seios da minha mãe, cobertos de espuma e abanando.
- É sobre a minha mãe. A gente também deitava.
Calo-me. Mas as minhas mãos já não tremem, e eu estou bem e estou calmo e não tenho mais medo.
- Eu tinha doze anos e a minha mãe tinha vinte e cinco. O meu pai trabalhava na Espanha e só vinha em casa na Páscoa e no Natal. Mas, um dia, chegou de repente e viu a gente na cama. Por causa disso é que eu vim pro Brasil.
Fecho os olhos, e a minha mãe está nua e eu estou em cima dela, e só vi o meu pai quando o cão entrou no quarto.
- Você gostava de deitar com ela?
- Gostava.
- E ela?
- Também.
Andréa abraça-me e eu sei que, agora, posso continuar.
- Mas nunca mais consegui. Uma vez, no Rio, uma prima deitou comigo. Mas os seios cobriram de espuma e ela ficou sem rosto e sem cabelo. Foi a primeira vez que vi a espuma. Ainda tentei mais duas vezes, mas aconteceu a mesma coisa. Os seios cobriram de espuma e as mulheres ficaram sem rosto e sem cabelo. Depois disso, nunca mais fiz. Me masturbava. Ou nos cinemas, ou...
- E a espuma?
- Sempre aparecia, na hora de gozar.
- E parou?
- Parou.
- Quando que parou?
- Desde que você saiu comigo.
Respiro fundo e fecho os olhos, e aninho a cabeça nos seios dela.
- Por isso, tava com medo de vir aqui. Queria pegar nos teus seios, mas tinha medo que eles se cobrissem de espuma e você também ficasse sem rosto e sem cabelo.
- E por quê que essas mulheres ficavam sem rosto e sem cabelo, hem?
- Elas morriam.
Os dedos de Andréa endurecem e crispam-se na minha nuca.
- Essas mulheres morreram mesmo, Eduardo?
- Pra mim, elas morreram.
Andréa olha-me durante algum tempo e abraça-me, e eu abraço-a também, e uma porta bate no fundo do corredor e uma mulher vem correndo, os saltos dos sapatos batendo forte no cimento, e uma voz grita, sua puta, sua vaca, tá pensando que eu sou o quê, o corno do seu marido? A mulher passa e o barulho dos passos some nas escadas, e tudo fica, outra vez, silencioso. Andréa aperta o meu corpo contra o dela e encosta os lábios no meu ouvido.
- Te quero muito, sabia?
Aninho o meu corpo no corpo dela e deixo o tempo passar, e esqueço o tempo que há de vir. Agora, nada mais me mete medo. Nem as espuma dos seios da minha mãe, nem as mulheres que morreram sem rosto e sem cabelo.
- Sabe? Troquei seu nome.
Andréa ri.
- Trocou meu nome? Trocou como?
- Precisava ter alguém junto de mim.
Enterro a cara nos seios e Andréa acaricia o meu cabelo.
- A primeira, chamei Ana Carolina.
- Por quê Ana Carolina?
- Não sei. Era o nome da minha mãe.
- E deitou no colo dela?
- Deitei.
- E as outras?
Lembro de Walkiria e Inêz de Castro, no carro e no motel, com os seios cobertos de espuma e sem rosto e sem cabelo, mortas, e não respondo.
- Por quê que não foi bom?
- Elas morreram. Só a última não morreu. Chamava Andréa.
Os dedos de Andréa crispam-se e ela pára de acariciar o meu cabelo.
- Essas mulheres existiram mesmo, Eduardo?
- Pra mim, elas existiram.
Andréa não diz nada e tudo fica silencioso à nossa volta. Mas o silêncio, agora, já não importa, nem faz mal. Antes pelo contrário, assim abraçados e calados, são os nossos corpos que conversam, e eu tenho certeza que os seios de Andréa nunca se cobrirão de espuma, nem ela morrerá sem rosto e sem cabelo.
Devagar, Andréa deita o meu corpo e acomoda-se em cima dele. As nossas cabeças estão juntas e os seios estão comprimidos no meu peito, e o meu sexo amassa os pêlos emaranhados. Andréa entrelaça as pernas nas minhas e encosta a boca no meu ouvido.
- Sabe por quê que o meu seio, às vezes, coça tanto?
Fixa os olhos nos meus e nem me deixa responder.
- Foi meu pai que mordeu, daquela vez.
Levanta o corpo e pega o meu sexo, e olha-o durante algum tempo.
- Mas, agora, tenho certeza não vai coçar nunca mais.
Guia-o por entre os pêlos e suspira, quando ele entra. Parece feliz e eu também estou feliz. O nosso mundo, agora, depende só de nós. |