CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Vinte e três

Chegamos ao restaurante só depois da uma e meia. O sol batia forte no cimento e as mesas próximas da varanda estavam vagas. Eles sentavam junto do bufê. A mulher usava um vestido sem mangas e muito decotado, e o homem um safari, aberto no peito cabeludo, e uma corrente de ouro e um brinco de brilhante. Na mesa havia um balde de gelo e quatro copos e uma garrafa de Chivas Regal, e um maço de cigarros e um isqueiro, e a mulher olhava o copo dela e mexia o gelo com o dedo. O homem tinha um cigarro na mão e olhava a mesa do bufê. Quando nos viu, a mulher parou de mexer o gelo e fixou os olhos em Andréa. Andréa usava uma camiseta de manga curta e os seios balançavam na cadência do andar. A mulher pareceu espantar-se e eu gostei do espanto. Comparada com Andréa, parecia, realmente, um travesti. Paramos junto da mesa e a mulher sorriu, e o homem esmagou o cigarro no cinzeiro e levantou-se. Chamava-se Vanini, Ilo Vanini, e disse ser italiano. Beijou Andréa e cumprimentou-me, e apresentou a mulher.

- Érika, minha esposa.

Sentamo-nos. Andréa ao lado de Érika e eu ao lado de Vanini. Coloquei a chave do quarto na mesa e voltei-me, procurando um garçom. Vanini puxou o meu braço e abanou a cabeça.

- Por favor, nós convidamos.

- Só ia pedir uma cerveja.

Érika voltou-se para Andréa e apontou a garrafa de uísque.

- Chivas Regal. Meu preferido.

O sotaque parecia ser francês, mas ela não parecia francesa. Aliás, nem Vanini parecia italiano. Não gostei deles.

- Prefiro cerveja. Ou vinho.

Andréa tirou um cigarro do maço que estava na mesa e, antes que pegasse o isqueiro, Vanini acendeu-o. Acendi também um, dos meus. Andréa puxou uma tragada e olhou-me, e olhou Érika.

- Ele gosta de conhaque.

Érika debruçou-se na mesa e o decote abriu. Não usava sutiã e a pele era áspera e cheia de sardas e de cravos, e os seios eram mínimos, com mamilos muito grandes e marrons.

- Francês?

Abanei a cabeça e Andréa riu.

- Ele é português.

Érika olhou Vanini e fez um ligeiro aceno com a cabeça.

- Passamos último verão em Estoril. Cassino muito bom.

Não respondi e Érika deu uma palmada no braço de Andréa, e a mão encostou na camiseta.

- Em Lisboa ótimos restaurantes. Linguado com vieiras muito bom.

A mão continuava encostada na camiseta e Andréa parecia nem notar.

- Sauce vieiras meu preferido. Delicious.

Vanini chamou um garçom.

- Conhaque francês?

- Não temos, não, senhor.

- Vinho?

- Temos Almaden, Chateau Du...

- Português?

- Não, senhor.

Vanini voltou-se para mim e fez um gesto de desânimo, e pediu duas garrafas de cerveja. Olhei Andréa. Ela fumava, recostada na cadeira, e parecia satisfeita. Tinha os braços cruzados no peito e os seios estofavam a malha da camiseta, e Érika não tirava os olhos deles. Tinha gostado do espanto dela, quando chegamos, mas não estava gostando daquele olhar. Não era mais um olhar de espanto. Era um olhar igual ao meu, olhar de homem. Puxei uma tragada e olhei Vanini. Ele tinha acendido um cigarro e olhava Érika, e sorria. Também não gostei do olhar dele, nem do sorriso, e decidi ir embora tão logo tomássemos a cerveja. Puxei outra tragada e olhei Andréa, querendo que ela me olhasse. Mas ela não olhou. Olhava Érika e sorria, e parecia gostar de estar ali. Pensei nm palavrão e uma mulher esbarrou na cadeira e aproximou-se do bufê. Parou junto de Érika e voltou-se, e gritou para o companheiro, não vai querer pudim, não? O homem não respondeu e ela pegou um prato e serviu-se. Usava um perfume adocicado e muito forte, e Érika tapou o nariz com a toalha.

- Shit!

Olhou-me e sorriu, e fez um gesto de desculpa.

- Alergia.

Vanini sorriu também e mostrou os braços cabeludos e o peito.

- Sem perfume. Érika não pode.

Érika sorriu e passou a mão no braço de Andréa, e os dedos encostaram na camiseta e afundaram no seio.

- Gostam do hotel?

Não sei se o gesto foi involuntário, mas não gostei. Já não era a primeira vez que Érika tentava bolinar Andréa e ela parecia não se importar. Afastei a cadeira e ia levantar-me, mas o garçom chegou com as cervejas e Vanini encheu os copos.

- Vamos brindar esta meeting?

Levantou o copo, e Andréa e Érika fizeram o mesmo. Não levantei o meu. Não tinha a que brindar. Mas Andréa olhou-me e fui obrigado a acompanhá-la. Vanini fez o brinde num italiano que me pareceu muito macarrônico e Andréa riu e bateu palmas. Parecia, realmente, alegre e satisfeita. Bebi a cerveja toda e enchi o copo outra vez, e Vanini bebeu também.

- Muita sede.

Não respondi e Érika olhou Vanini e o maço de cigarros, e Vanini acenou com a cabeça e acendeu um e entregou-lho. Érika deu-o a Andréa e Vanini acendeu outro. Érika pegou-o e olhou Andréa, e puxou uma tragada. Andréa sorriu e fechou os olhos e puxou uma tragada profunda, e reteve o fumo nos pulmões. Vanini olhou Érika e sorriu, e encheu um dos copos com uísque e colocou-o na frente de Andréa. Deixei. Andréa não gostava de uísque e, tão logo terminasse a tragada, subiríamos para o quarto. Não gostava deles, mas não queria fazer escândalo. Com o rosto vermelho de tanto reter o fumo nos pulmões, Andréa, finalmente, terminou a tragada. Peguei a chave e fiz menção de levantar-me.

- Vamos?

Andréa não respondeu e, para meu espanto, bebeu o uísque como se fosse cerveja. Olhou Érika e sorriu, e levou o cigarro à boca outra vez. Num gesto rápido, tirei-o da mão dela e esmaguei-o no cinzeiro.

- Acho melhor fumar dos meus.

Empurrei o maço de Marlboro para o meio da mesa, mas Andréa nem viu. Olhava-me com tanta raiva que os lábios tremiam e os olhos coruscavam. Continuou me olhando e, de repente, fechou os olhos e cravou as unhas no peito, por baixo do seio direito. Coçava com tanta força e tanta velocidade, que a camiseta repuxava e embolava e o seio saía do sutiã. As minhas mãos tremeram e quiseram pular na minha frente. Finquei-as nos joelhos e olhei Érika, mas ela nem notou. Estava debruçada na mesa e só olhava a mão de Andréa e o seio, balançando. Andréa parou de coçar e a mão parecia uma garra, pronta a saltar na minha cara. Respirou fundo e pegou o maço de Vanini, e tirou um cigarro e colocou-o na boca. As narinas inflavam e os olhos fuzilavam, fixos nos meus. Vanini pegou o isqueiro. Puxei o braço dele com raiva.

- Eu não faria isso. Não mesmo.

Vanini olhou Érika e ela encolheu os ombros, e ele deixou cair o isqueiro na mesa. Tirei o cigarro da boca de Andréa e joguei-o no chão.

- Quer fumar, fume dos meus.

Andréa não respondeu, mas os lábios ficaram brancos. Pegou o maço de Vanini e tirou outro cigarro, e acendeu-o.

- Vai se foder.

Jogou o isqueiro na mesa e puxou duas tragadas, profundas e seguidas. As minhas mãos cravaram as unhas nas minhas pernas e quiseram jogar a mesa para o alto, mas não deixei. Não valia mais a pena. O que tinha acontecido estava feito e não havia como recuar. Peguei a chave do quarto e o maço de Marlboro e levantei-me, e saí sem me despedir. Na porta, chamei um garçom e mandei debitar as duas cervejas na minha conta. Na minha aldeia, sempre que alguém deixava de fazer o que devia e fazia de conta que tinha feito tudo que podia, os mais velhos caçoavam e diziam, quanto mais te abaixares, mais o cu te aparece. A merda é quando a gente já não tem nem mais cu.

 
 
 

Cunha de Leiradella
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