CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Vinte e sete

Ontem foi um dia de merda. Andréa me mentiu. De noite fez um calor insuportável e o hotel estava lotado, e alguns aparelhos de ar refrigerado enguiçaram. Os hóspedes reclamaram e o plantão da Governança acordou-me às cinco horas. O chefe da Manutenção chegou às cinco e meia e deu inicio às trocas e aos consertos. Passei a maior parte da manhã conversando com os hóspedes e só pude atender D. Beth quase na hora do almoço. Ela estava mais do que nervosa. O Contas a Pagar reclamava os cheques assinados e o gerente administrativo tinha pedido que um fiscal da Prefeitura esperasse por mim na sala dela. E ainda havia dois relatórios para enviar à Matriz no malote da manhã. Atendi o fiscal. Havia alguns buracos nas pedras portuguesas da calçada da Portaria de Serviço, mas nada que uma boa conversa não pudesse resolver. O Natal aproximava-se. Acertamos uma garrafa de uísque para a quermesse da associação e ele despediu-se, satisfeito. Chamei D. Beth e assinei os cheques e os relatórios, e, de repente, um trovão estourou e os vidros da janela estremeceram. D. Beth benzeu-se e uma rabanada de vento varreu as árvores da praça e jogou as folhas secas e o lixo pelo ar. O céu escureceu e ventou mais, e o temporal desabou. Em catadupas. Os pingos estalaram na janela, como pedras, e os edifícios do outro lado da praça desapareceram, envoltos pela chuva. Era meio dia e, a partir dali, aconteceu de tudo no hotel.

Não choveu nem uma hora, mas as ruas alagaram e o trânsito virou um pandemônio. Os sinais enguiçaram e os guardas sumiram, e os carros e os ônibus entupiram a avenida. A chuva desabava e a praça parecia um alagado, e ninguém entrava ou saía do hotel. E começou a confusão. O maitre de banquetes foi o primeiro que ligou. Tinha um almoço de cem pessoas e o promotor telefonou, cancelando. O gerente de Alimentos & Bebidas não estava no hotel e o cozinheiro-chefe já tinha o bufê normal preparado.

- E agora, Sr. Eduardo?

- Marcaram outra data?

- Não, senhor.

- Congele e sirva outro dia.

- Sim, senhor.

O chefe da Manutenção ligou logo em seguida. Tinha entrado água na casa das caldeiras.

- E agora, Sr. Eduardo? As bombas estouraram.

- Tem muita água?

- Mais de palmo.

- Tire com baldes, qualquer coisa.

- Sim, senhor.

Pouco depois, ligou o chefe da Portaria Social. Um hóspede não se conformava com a chuva.

- Quer falar com o senhor, Sr. Eduardo. Diz que é amigo não sei de que ministro e que vai mandar fechar o hotel se não puder ir pra uma reunião que tem marcada. O Sr. Iuri já tá aqui, mas não adianta. Ele quer falar com o senhor de qualquer jeito. O senhor fala com ele?

- Eu desço já.

Pedi a D. Beth que mandasse vir um lanche e desci. A Portaria Social parecia uma feira. Os hóspedes esbracejavam e gritavam e faziam filas nos telefones, e o Sr. Iuri, gerente de Habitações, zanzava em volta do amigo do ministro, desculpando-se. Mas quanto mais se desculpava mais o homem sapateava. Disse-lhe que a chuva e o engarrafamento não dependiam do hotel e ele cuspiu o nome do ministro na minha cara e ameaçou telefonar para a polícia. Pedi ao chefe da Portaria que fizesse a ligação e subi para a minha sala com vontade de o mandar à puta que pariu. D. Beth tinha pedido dois sanduíches na Copa e comemos, e continuamos o trabalho. A Matriz tinha mandado as planilhas do orçamento de 1992 no dia anterior e queria recebê-las de volta, analisadas e comentadas, ainda dentro da semana. Já era quinta-feira e a minha vontade era fazer com o diretor financeiro o que quis fazer com o amigo do ministro.

O temporal continuava. Os trovões reboavam e os relâmpagos ziguezagueavam no nevoeiro, e um vento mais forte arrancou dois galhos de uma árvore. D. Beth correu para a janela e chamou-me. Os motoristas dos carros amassados pareciam cabritos a caminho do matadouro. Esperneavam e berravam, e xingavam todo mundo. Com os galhos atravancando a rua e a água cobrindo as calçadas, o que já era um pandemônio virou um desespero. Os motoristas colaram as mãos nas buzinas e o barulho ficou insuportável. Sentei-me e pedi a D. Beth que cerrasse as cortinas, e alguém bateu na porta. Era a telefonista-chefe. A mesa tinha paralisado e os hóspedes ameaçavam invadir o Centro Telefônico.

- E agora, Sr. Eduardo? As meninas já tão até com medo.

- Avise o Sr. Iuri e chame o técnico.

- Sim, senhor.

Ela saiu e as lâmpadas apagaram, e, pouco depois, o chefe da Manutenção entrou correndo.

- E agora, Sr. Eduardo? Faltou luz.

- Geral?

- Sim, senhor.

- Ficou alguém preso nos elevadores?

- Parece que ficou no carro dois.

- Ligue o gerador.

- Mas o gerador...

- Tá enguiçado?

- Tá faltando aquela peça que eu falei com o senhor.

- Não foi prá oficina, não?

- Não deu tempo, Sr. Eduardo. Ontem...

- Chame os bombeiros.

- Sim, senhor.

Ele saiu e D. Beth sentou-se e benzeu-se.

- Parece até urucubaca, minha Nossa Senhora Aparecida.

Torcia o colar de contas de madeira e olhava as planilhas do orçamento e o tabuleiro dos despachos, entupido de pastas e papéis. Desde que tinha abolido os tailleurs, e a maquiagem e os sapatos de salto alto, D. Beth só se vestia pelo modelo mais avançado da feira dos artesãos. Cabelo emaranhado no alto da cabeça e colares e brincos de madeira trabalhada, e calças de jeans delavé e camisolões com estampas de fazer inveja aos turistas americanos do Havaí. Da antiga D. Beth, sempre meticulosa e circunspecta, só tinha sobrado a leitura diária das colunas sociais. Até a paixão pelos romances sobre a sociedade VIP de Nova York e os livros de auto-ajuda e de dieta tinham sumido. Parecia até que, com o novo visual, D. Beth não precisava de mais nada.

Recostei-me na cadeira e espreguicei-me. Apesar da confusão, ainda estava bem e estava calmo, e, desde que tudo estivesse em ordem às seis horas e eu pudesse sair com Andréa, o resto que se danasse. Acendi um cigarro e puxei uma tragada, e as lâmpadas acenderam e o aparelho de ar refrigerado começou a ronronar. O barulho da rua tinha diminuído e D. Beth levantou-se, e espreitou pela janela.

- A chuva, graças a Deus, já passou, Sr. Eduardo.

Correu as cortinas e abriu a janela, e uma lufada de ar fresco entrou na sala. D. Beth sentou-se e apontou as planilhas do orçamento e o tabuleiro dos despachos.

- Não é melhor o senhor parar um pouco, não? O senhor tá a pé desde as cinco horas e já aconteceu de tudo hoje. Só faltou, mesmo, o hotel pegar fogo, minha Nossa Senhora Aparecida.

D. Beth levantou-se e passou as mãos no cabelo. Reparei no gesto e estranhei. O cabelo parecia escorrer água.

- Como é que a senhora se molhou, hem?

D. Beth sorriu e voltou a passar as mãos no cabelo.

- Não é água, não. É um gel especial, que tá na moda. Chama new wave. O senhor não gostou, não?

Lembrei do cabelo de Andréa e quase ri dos tufos de D. Beth. Mas contive-me. Não era justo. Se faço tudo para estar de bem comigo por que é que os outros não poderiam fazer a mesma coisa?

- É diferente. Nunca tinha visto a senhora usar.

- Não? Pois eu já uso faz mais de quinze dias.

Pegou os documentos despachados e abriu a porta.

- O senhor tá certo, Sr. Eduardo. O importante é a gente ver quem a gente gosta e quem gosta da gente.

Olhei o botão de rosa cor de chá e esmaguei o cigarro no cinzeiro.

- Eu gostaria que a senhora também tivesse bem, viu, D. Beth?

- Mas eu tou, Sr. Eduardo. Do jeito que posso, mas tou.

Saiu e fechou a porta, e eu lembrei de uma frase que Andréa tinha dito no final da entrevista e tinha repetido no Ipê Amarelo. A vida da gente é muito estranha. Ou a gente faz e se arrepende, ou a gente não faz e se arrepende do mesmo jeito. Podia até ser verdade. Só que, quando a gente está feliz, a verdade não importa. Importa só o que se sente. Olhei o maço de Marlboro e sorri. Tinha deixado de fumar Benson e não estava arrependido, e também continuava com Andréa e também não estava arrependido. A vida da gente, realmente, é muito estranha. Às vezes, a gente faz e nunca se arrepende.

Acendi um cigarro e olhei pela janela. O céu já estava limpo e o sol batia nos edifícios do outro lado da praça. O temporal tinha acontecido, mas só tinha acontecido. Era tão natural chover quanto fazer sol ou escurecer no fim do dia. O importante é que, às seis horas, já poderia pegar Andréa e levá-la para a Praça do Papa. E, depois, jantar na Casa dos Contos ou na Brunella. Liguei para a Recepção. Ainda não a tinha visto e, com a confusão, tinha até esquecido de ligar.

- Recepção, Maria Lúcia.

- Andréa taí, Maria Lúcia?

- Não tá, não, Sr. Eduardo. Tá almoçando. O senhor quer que chame?

- Não. Pode deixar. Obrigado.

Desliguei e, apesar de não ter falado com Andréa, estava bem e estava calmo. Às seis horas poderia sair com ela, como sempre, e o resto que se danasse. As planilhas do orçamento iriam para a Matriz segunda ou terça-feira e, se alguém reclamasse, D. Beth faria do temporal uma tragédia tão trágica que justificaria qualquer atraso. Recostei-me na cadeira e, por acaso, olhei o botão de rosa cor de chá no solitário e lembrei do Dona Derna. Ainda não tínhamos voltado lá depois do meu aniversário e talvez fosse boa idéia ir naquela noite. Pelo menos, seria uma surpresa. Quando Andréa quis fazer uma surpresa não escolheu o Dona Derna? Satisfeito com a lembrança, esmaguei o cigarro no cinzeiro e liguei, outra vez, para a Recepção.

- Recepção, Ferraz, às suas ordens.

- Andréa já chegou, Sr. Ferraz?

- Ainda tá no almoço, Sr. Eduardo. Mas eu mando chamar, se o senhor quiser.

- Precisa não, Sr. Ferraz, muito obrigado. Diga só pra ela me ligar.

- Direi, sim. O senhor fique descansado que eu...

- Obrigado, Sr. Ferraz.

Desliguei e mal tinha colocado o fone no descanso, e a campainha tocou.

- Alô?

- Oi. Sou eu. Tava almoçando.

- Assustou muito?

- Com quê?

- Com o bafáfá.

- Eu? Nada. Achei até legal.

- Então, que tal uma surpresa?

- Jóia.

- Que tal um jantar diferente, num lugar diferente?

- Logo mais?

- Hum. Hum.

- Logo mais não vai dar.

- Por quê? Eu pensei a gente ir no Dona Derna.

Andréa não respondeu e eu escutei uma voz dizer, Andréa, telefone, e a linha ficou muda.

- Alô? Andréa?

- É que eu marquei médico e...

- Marcou médico? Marcou quando? Ontem...

- Marquei hoje de manhã

- Pra que horas?

- Pra que horas? Prás sete. Só tinha vaga...

- Então, eu vou com você.

- Precisa, não, Eduardo. Eu...

Cala-se e eu escutei a mesma voz dizer, Andréa, ela diz que tá com pressa.

- Eduardo, eu vou ter que desligar. Tem um hóspede me chamando.

- Mas o quê que você tem? Me diz.

- Ah, Eduardo...

- Andréa...

- É só uma ardência.

- Ardência? Ardência onde?

- Eduardo, por favor. Tem um hóspede me chamando.

- Então me diz.

- É um exame ginecológico.

- Um exa...

- Eduardo, eu vou ter que desligar.

- Tá. Mas eu vou com você, viu?

Andréa desligou sem responder e eu fiquei pensando no que poderia ser aquela ardência. Estava preocupado. Andréa tinha emagrecido muito e, às vezes, chegava tão cansada que parecia até que nem dormia. Mas ela ria da minha preocupação.

- Ah, Eduardo, liga, não. É falta de hábito. Se eu tivesse trabalhado o tanto que você já trabalhou, também já tava habituada.

Andréa não deixava de ter razão. Eu trabalhava há mais de quarenta anos e ela há pouco mais de quatro meses. Mas, mesmo assim, continuava preocupado. E aquela ardência preocupou-me ainda mais. Liguei para o Departamento Médico e perguntei ao Dr. Jarbas se tinha cinco minutos disponíveis.

- Agora, amigo Eduardo. Pode vir.

O Dr. Jarbas estava no Mangabeiras há mais de vinte anos e não o dispensei quando se aposentou. Por isso, me atendia sempre com a maior boa vontade. Contei-lhe o problema, preocupado, mas ele tranqüilizou-me. Se era só ardência, era, realmente, coisa à toa.

Ficamos na Praça do Papa até à hora da consulta. O consultório era na Avenida Afonso Pena, quase esquina da Praça Milton Campos, e o exame foi rápido. A receita foi Perlutan. Passamos na Drogaria Araújo, logo abaixo, e compramos o remédio. Mas Andréa não quis tomar.

- Deixa. Amanhã eu tomo. Hoje tou a fim de tomar chope e antibiótico não pega bem com chope.

- Toma hoje. Amanhã, a gente toma o chope.

- Hoje, não dá, Eduardo. Tem que tomar em jejum.

- Tem certeza?

- Ora, Eduardo. Foi o médico que falou.

Não jantamos no Dona Derna e nem tomamos chope. Mal entrou no carro Andréa pediu que a levasse para casa.

- Preocupa, não. É coisa à toa, à toa. Amanhã...

Beijou-me e saiu do carro, correndo, e eu voltei para o hotel. Mas preocupado. E, quando cheguei, telefonei ao Dr. Jarbas. Ele riu, quando lhe disse que a receita tinha sido um antibiótico chamado Perlutan.

- Amigo Eduardo, Perlutan não é antibiótico. É um anticoncepcional injetável e deve ser tomado, de preferência, no oitavo dia do ciclo menstrual.

Não sei se Andréa já me mentiu mais vezes. Provavelmente já. Ou talvez não, não sei. Mas o que mais me assustou não foi a mentira. Foi não saber o motivo. E se Andréa me tivesse mentido por já não gostar mais de mim?

 
 
 

Cunha de Leiradella
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