CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Vinte e seis

Ontem briguei com Andréa. Andréa está muito diferente. Continuamos saindo, continuamos indo para a Praça do Papa e jantamos todas as noites na Casa dos Contos ou na Brunella, mas Andréa está muito diferente. Ontem disse que estávamos brigando à toa e que tudo aquilo era bobagem, mas eu sei que não estávamos brigando à toa e que nada daquilo era bobagem. Andréa é que está muito diferente.

Sábado fez três meses que fomos ao Ipê Amarelo. E o dia, por acaso, coincidiu com o meu aniversário. Nunca comemorei aniversários. Nunca tive com quem comemorar. Em Portugal, meu pai vinha da Espanha em outubro e só voltava em março, e, no Rio de Janeiro, nunca tive uma mulher. Por isso, se Andréa não tivesse feito tanta questão, o dia 16 de novembro, para mim, só seria lembrado pelo Ipê Amarelo. Mas Andréa fez questão e comemoramos. Com um jantar.

Eu preferia a Casa dos Contos. Na Casa dos Contos Andréa foi Ana Carolina, foi Walkiria e foi Inêz de Castro. E voltou a ser Andréa. Mas Andréa preferiu o Dona Derna. Não conhecia o Dona Derna e não gosto de lugares que não conheço. Na Casa dos Contos ou na Brunella, pelo menos, sei onde estou e sei o que fazer, se precisar fazer alguma coisa. Nunca precisei, mas o fato de conhecer o lugar me faz sentir seguro. É como se as paredes me protegessem e as mesas e as cadeiras fossem minhas. Sei que é bobagem, mas cada um é como é e eu só consigo ser assim. Mas Andréa queria um jantar diferente, num lugar diferente, e fomos ao Dona Derna.

Nunca lhe tinha dado perfumes. Andréa não usava. Mas era uma oportunidade de relembrar o fim de semana do Ipê Amarelo. Pelo menos, enquanto Andréa usasse, ambos lembraríamos. Comprei dois no Central Shopping e voltei para o hotel. Logo que cheguei, o Sr. Ferraz me chamou. Andréa pedia que lhe ligasse. Liguei da Recepção e foi a mãe que atendeu. Andréa tinha ido ao cabeleireiro e não iria almoçar. Mais tarde ligaria. Não gostei de passar o almoço sem a ver, mas não fiquei preocupado. Estava bem e estava calmo, e, agora, aquele jantar também era importante para mim. Andréa não esqueceria a nossa primeira noite. Passei o dia no hotel e, à tarde, Andréa telefonou.

- Oi. Sou eu.

- Quê que houve? A sua mãe disse...

- Tive cuidando do jantar.

- Foi na Casa dos Contos?

- Que Casa dos Contos, Eduardo? Dá licença de eu te fazer uma surpresa? A gente se encontra no Dona Derna, às oito. Já reservei a mesa e escolhi tudo, viu?

Tive que rir. Nunca tinha visto Andréa tão decidida e satisfeita.

- Ok, tudo bem. Às oito a gente se encontra no Dona Derna.

- Sabe onde é? Fica na Rua Tomé de Souza...

- Eu me viro, pode deixar.

Cheguei às oito horas em ponto. A mesa ficava no fundo do salão, junto da parede, em frente à porta, e tinha um castiçal com uma vela azul. Pedi um conhaque e o garçom acendeu a vela. Estava bem e estava calmo, e gostei do ambiente. As outras mesas não tinham velas e a lembrança de Andréa me comoveu. Todas as mesas e cadeiras são iguais, e todos os restaurantes se parecem. Mas, naquele momento, o Dona Derna era diferente.

Peguei um cheque, não tinha outro papel, e anotei, jantar nesta mesma mesa no aniversário de Andréa, com a mesma comida e o mesmo vinho, e uma vela cor de rosa. Pedi outro conhaque e acendi um cigarro, e esperei. Se Andréa não tivesse aparecido na minha vida, será que Deus poderia justificar o meu nascimento, já que não me coube decidi-lo? Ou eu nasci, justamente, para que Andréa aparecesse naquele 31 de julho e tudo isto pudesse acontecer? Era bobagem. Era bobagem, mas eu estava bem e estava calmo, e era bom pensar bobagem.

Andréa chegou às oito e meia. Assustei quando a vi. Eu e todo mundo. Não olhei todas as mesas, mas, nas mais próximas, todos pararam de falar. Era a primeira vez que via Andréa de vestido e sapatos de salto alto, e ela estava deslumbrante. Os seios sobravam no decote e o cabelo, caído pelos ombros, reverberava na luz e saltava no branco do vestido. Levantei-me e fui buscá-la, e tive certeza que todos me invejaram. Sorri, orgulhoso. Só por aquele momento já valia a pena ter ido ao Dona Derna.

Sentamo-nos e o maitre cumprimentou Andréa, como se já a conhecesse, e perguntou se podia mandar servir ou preferíamos tomar aperitivos. Pedi o vinho. Andréa recostou-se na cadeira e acendeu um cigarro, e olhou as outras mesas. O salão estava cheio e todos olhavam para ela. E com razão. Era a mulher mais bonita da noite e o frisson que tinha provocado na entrada, ainda permanecia. Peguei-lhe nas mãos e ela olhou-me e sorriu, e os dentes brilharam no contraste cintilante do batom. Não gosto de batom, mas, naquele momento, até ele me pareceu indispensável. O garçom trouxe o vinho e serviu. Era um Bairrada, Carvalho, Ribeiro & Ferreira, branco, garrafeira 1980. Perguntei quem tinha escolhido e ele sorriu e voltou-se para Andréa.

- Escolha da senhora.

Andréa riu.

- Tá vendo como eu também já sei escolher? Safra e tudo? Tá vendo?

Provei o vinho. Realmente, extraordinário. O garçom encheu os copos e colocou a garrafa no balde de gelo, e afastou-se. Andréa levantou o copo e brindou.

- Ao seu aniversário.

Levantei o meu e brindei também.

- À nossa primeira noite.

Andréa esmagou o cigarro no cinzeiro e pegou na minha mão.

- Já adivinhou o presente que eu vou te dar? Surpresa, surpresa, não sei se vai ser, não, mas que você vai gostar, isso eu garanto.

Sorri, feliz. O presente não importava, o que importava, realmente, era Andréa estar ali.

- Eu também tenho um presente pra você.

Andréa afastou o castiçal e debruçou-se na mesa. Os seios sobraram no decote e a minha mão encostou neles. A pele estava quente e úmida, e a minha garganta formigou. Andréa cobriu a minha mão com as dela e os dedos afundaram no decote.

- Quê que é? Fala. Tou curiosa.

- Primeiro, quero ver o seu jantar. Não foi você que escolheu, não?

Andréa chamou o garçom e pediu que servisse.

- Você vai adorar, você vai ver.

O garçom trouxe a comida e Andréa mostrou o arranjo.

- Sabe o quê que é isto? Linguado com molho de vieiras. Adoro linguado. Adoro mesmo.

Terminamos o jantar já passava das onze horas. Nunca tinha comido linguado com molho de vieiras e, embora sempre achasse a comida um mero acompanhamento do vinho, aquele linguado estava ótimo. Parabenizei Andréa pela escolha e pedi uma Aguardente Velha, reserva. Um restaurante que tinha um Bairrada, garrafeira 1980 da Carvalho, Ribeiro & Ferreira, também teria uma Aguardente Velha, reserva, do mesmo engarrafador. E tinha. Andréa também quis. Pedi duas e o garçom limpou a mesa. Andréa colocou as mãos na cintura e sorriu.

- Cadê o meu presente? Hoje eu mereço, não mereço, não?

Olhei os seios saltando do decote e imaginei-os nus, caídos no lençol.

- Quer agora?

Andréa riu.

- Pode dar? A minha surpresa não pode, não, viu?

Entreguei-lhe o embrulho e Andréa nem desfez o laço. Arrancou a etiqueta e rasgou o papel, e leu o nome dos perfumes.

- L’Interdit, Fidji. Pôxa, Eduardo. Adorei. Adorei mesmo. Mas pra quê dois?

- Um pra de dia e outro pra de noite.

- Você quer que eu use no trabalho? Um perfume francês?

- E quê que tem? As francesas não usam, não?

Andréa riu e colocou os perfumes na mesa. Levantou-se e abraçou-me e beijou-me, como se estivéssemos na Praça do Papa.

- É só a primeira parte, viu?

Nunca pensei que Andréa fosse capaz de me beijar na frente de todo mundo, mas beijou e o beijo me fez sentir ainda melhor. Agora, não havia mais que duvidar. Aquele beijo selava o nosso compromisso e Andréa tinha aceitado o meu pedido.

Tomamos os conhaques e saímos, e nem perguntei para onde ela queria ir. Se aquele beijo tinha sido a primeira parte da surpresa, a segunda seria só conseqüência. Entrei na Rua Espirito Santo e desci reto, e só parei o carro na porta do Green Park. Ficamos a noite toda e foi o melhor presente de aniversário que já tive. Meu pai vinha da Espanha em outubro e eu ficava sem a minha mãe até março. Por isso, nunca gostei de aniversários. Nem de festas. Principalmente do Natal. Mas o presente de Andréa resgatou todos os aniversários e todos os Natais que nunca tive.

Só que Andréa não usou os perfumes. Nem de dia, no trabalho, nem de noite, quando saíamos. Continuava não usando sutiã e dizia que era ótimo, mas não usava os perfumes. Não falei nada, mas me perguntava por quê. Era uma coisa boba, sei que era uma coisa muito boba, mas queria que ela usasse. Ou, então, que me dissesse o motivo. O importante não é o que se faz ou deixa de fazer, o importante é por que se faz ou não se faz. Se Andréa me tivesse dito por que não usava os perfumes não haveria problema. Mas ela não usava, nem dizia, e isso me emputecia.

Dei-lhos no sábado, no Dona Derna, e passou domingo, passou segunda, passou terça, passou quarta, passou quinta e passou sexta, e ela ainda não usou. Nem me disse por quê. E isso me faz mal. Sei que é uma bobagem, mas não posso evitar. E me faz ainda mais mal porque, quanto mais vontade tenho de saber, mais medo tenho de perguntar. Tenho certeza que Andréa vai mentir. Se não precisasse mentir já me teria dito a verdade.

O que me emputece não é o fato de Andréa não usar a merda dos perfumes. O que me emputece é o pouco caso que ela faz. Se me dissesse, nem que fosse, ó, não uso porque não quero, pronto, acabava o problema. Mas Andréa não diz nada e é isso que me emputece.

Foi por isso que brigamos. Estávamos jantando na Brunella e Andréa não parava de rir, contando as mentiras que inventava, sempre que as colegas queriam saber os presentes que eu lhe dava. A conversa de Andréa não tinha nada demais, mas eu não estava bem e aquelas gargalhadas me deixavam ainda pior. Era como se as mentiras que ela contava às colegas fossem contadas a mim. Nem comi. Mandei o garçom levar o prato e bebi o resto do conhaque. Andréa parou de rir e olhou-me, mas não deixou de comer. A preocupação dela não era eu, era a comida, puta merda. Puto com tudo e, principalmente, comigo, por não deixar de pensar na merda dos perfumes, chamei o garçom e pedi outro conhaque. Duplo.

- Quê que você tem, hem? Não comeu, não falou...

Debruçou-se na mesa e os seios saltaram do decote. Mas, naquele momento, nada me diziam. Nem os via. Acendi um cigarro e puxei duas tragadas profundas.

- Por quê que você não usou os perfumes?

Pela reação, pareceu que não esperava a pergunta. Abriu a boca e os olhos esgazearam-se, e recuou na cadeira, como se tivesse levado um choque. Ficou assim algum tempo, mas conseguiu recompor-se.

- Ora, Eduardo. Mas que pergunta mais boba.

- Se é uma pergunta boba, então você pode responder. Ou não?

Andréa não respondeu. Baixou a cabeça e fixou os olhos na toalha. Insisti.

- Se é bobagem, não custa responder. Ou custa?

A merda daqueles perfumes fodia-me a paciência, mas Andréa continuou sem responder. De repente, fechou os olhos e começou a coçar o peito, por baixo do seio direito. Estava com uma blusa sem mangas e o seio quase saía pela cava, de tanta força e tanta raiva. Mas as minhas mãos, nem sei por quê, nem tremeram.

- A minha pergunta te injuriou tanto assim, é?

Andréa coçava cada vez com mais força e com mais raiva. Foda-se. A minha raiva também era tanta que até as minhas mãos se espantaram e procuraram acalmar-me. Espalmaram-se na mesa e seguraram a toalha, e não me deixaram levantar. Filhas da puta. Xinguei o palavrão entre os dentes e apertei os dedos até os nós ficarem brancos. Filhas de uma puta. Na hora que mais precisava de ajuda até elas me abandonavam. O garçom trouxe o conhaque e apontou a garrafa de cerveja. Abanei a cabeça e ele afastou-se. Bebi um gole e a boca amargou. Foda-se.

- E então? Não vai responder, não?

Andréa continuou coçando. O seio parecia uma bola, ora saltando no decote, ora na cava. Puxei uma tragada profunda e bebi o resto do conhaque, e esmaguei o cigarro no cinzeiro e acendi outro. Foda-se.

- Como é? Tou esperando. Você não disse que era uma pergunta boba?

Andréa parou de coçar e, num gesto brusco, tirou o cigarro da minha mão e puxou uma tragada profunda. Soprou o fumo com força e puxou outra, e ia puxar a terceira, quando peguei o cigarro de volta e esmaguei-o no cinzeiro.

- Fala, merda.

Andréa continuou calada. Recostou-se na cadeira e cobriu o rosto com as mãos. A fralda da blusa saía do cós das calças e o cabelo emaranhava-se nos braços e nos ombros. Olhei-a durante algum tempo e pensei se era melhor chamar o garçom e pedir outro conhaque ou levantar e ir embora. Estava oco, vazio, e, qualquer coisa que fizesse, seria melhor do que ficar ali olhando para ela. Mas não tive coragem e não fiz nada, e me senti um cocô. Andréa tirou as mãos do rosto e ajeitou o cabelo, e debruçou-se na mesa.

- Nós tamos brigando à toa, Eduardo.

Os seios saltavam do decote, mas nem eram mais seios. Eram duas bolas de carne que nada me diziam. Andréa pegou nas minhas mãos e entrelaçou os dedos nos meus.

- Eu adoro os presentes que você me dá, Eduardo. Adoro mesmo. Juro que adoro.

Fez uma pausa e puxou as minhas mãos, e encostou-as nos seios.

- Não vê as rosas? Você sempre me dá e eu adoro. Adoro mesmo. Juro. Adoro tanto que nem levo pra casa. Deixo na Recepção pra todo mundo ver.

Tirei as mãos e espalmei-as na mesa. Era a única coisa que podia fazer, já que não era capaz de me levantar e ir embora.

- Eu não tou falando das rosas. Eu tou falando dos perfumes, merda. Se você não gostou ou não queria usar, por quê que não falou? Será que custava tanto me dizer, puta merda?

Andréa fincou os cotovelos na mesa e apoiou a testa nas mãos. Ficou assim algum tempo e recostou-se na cadeira.

- Se eu dissesse que não gostei, quê que você ia fazer?

- Eu? Nada.

- Quê que há, Eduardo? Dois perfumes franceses...

- Não fazia nada, já disse.

- Não ia ficar puto, não?

- Andréa...

Andréa debruçou-se na mesa e pegou nas minhas mãos.

- Mas eu gostei, Eduardo. Sinceramente. Adorei. Adorei mesmo. Juro que adorei.

- Se você gostou, então por quê que não...

Nem terminei. Andréa levantou as minhas mãos e beijou-as. Mas aquele era um dos momentos em que as palavras viram ruídos e não se escutam, só se ouvem. Tirei as mãos e recostei-me na cadeira, e pensei no que Andréa tinha dito e tinha feito. Tinha adorado e tinha beijado as minhas mãos. Só que não tinha respondido. Tinha-se justificado, mas não tinha respondido. E eu sabia por quê. As pessoas só se justificam quando precisam de mentir. Olhei-a. Tinha baixado a cabeça e olhava as mãos caídas na toalha. Passou-se algum tempo e ela continuou imóvel e calada e a imobilidade e o silêncio incomodaram-me, e eu pensei coisas que não gostei. E se, de repente, Andréa fizesse, exatamente, o que eu não fora capaz de fazer? Se se levantasse e fosse embora? Eu iria atrás e pediria que voltasse ou ficaria ali e deixaria que fosse? Lembrei das vias-sacras e dos cinemas e dos filmes no meu quarto, e a garganta apertou e os ouvidos começaram a zumbir. O coração disparou e um suor frio escorreu pelas costas, e as pálpebras umedeceram. Andréa tinha tapado o rosto com as mãos e o cabelo caía na toalha. Espalmei as minhas mãos no meio da mesa e fiquei olhando para ela, pedindo a Deus que a fizesse entender aquele gesto. Passaram-se alguns minutos e Andréa não se mexeu, nem disse nada. Nem sequer viu as minhas mãos estendidas, só esperando as mãos dela. A garganta apertou tanto que doeu e os ouvidos rebentaram. Finquei as mãos na mesa e segurei-me como pude, e Andréa tirou as mãos do rosto e entrelaçou os dedos nos meus.

- Você ainda quer casar comigo, Eduardo?

Não respondi. Não podia. Se abrisse a boca ou ia gritar ou chorar. E eu nunca tinha chorado. E o grito, eu tinha certeza, nunca mais pararia. Andréa levantou as minhas mãos e beijou a ponta dos dedos.

- Eu te quero muito, Eduardo. Mas ainda não tou habituada. Nunca ninguém gostou assim de mim e isso me assusta, você entende? Às vezes, não sei nem o que fazer.

Calou-se e beijou as palmas das minhas mãos, e encostou-as nos seios.

- Por favor, deixa eu me habituar.

Não disse nada. Ainda não podia. Fechei os olhos e fiz de conta que o calor dos seios era o perfume L'Interdit. Às vezes, eu também me assustava e também não sabia o que fazer.

 
 
 

Cunha de Leiradella
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