Quando Andréa entrou no quarto eu já tinha bebido duas garrafas de cerveja e já tinha arrumado a minha mala. Estava recostado na cabeceira da cama e a boca amargava, de tanto fumo de cigarro. Não sabia que horas eram, nem queria saber. Agora, era indiferente que Belo Horizonte estivesse a meia ou a mil horas de distância. E se estivesse a um milhão seria até melhor. Pelo menos, não haveria mais regresso. Nem mais nada. Tudo ficaria sepultado naquele quarto e o dia 31 de julho estaria tão distante que nem constaria mais no calendário. Nem eu teria que pensar.
Andréa abriu a janela e debruçou-se no parapeito. O sol batia-lhe na cabeça e o cabelo faiscava. Ficou debruçada algum tempo e voltou-se. Desviei os olhos. Não queria que ela notasse o meu olhar e pensasse que me tinha arrependido. Eu não estava arrependido. Estava oco. Vazio. Pode parecer até contraditório, mas era assim que eu estava. A descoberta de que nada do que tinha como certo era real não me deu raiva. Apenas me esvaziou. Respirei fundo e a cinza do cigarro tremeu e ameaçou cair nas calças. Foda-se. As calças que se fodessem e eu também.
Andréa pega uma cerveja no frigobar e encosta-se na janela, e a cinza do cigarro cai e suja as calças e o lençol. Foda-se. Andréa esvazia o copo e enche-o e bebe mais, e debruça-se no parapeito. A brasa do cigarro já queima junto do filtro e a pele dos dedos começa a ficar quente. Foda-se. Os dedos que se fodessem e eu também. Andréa afasta-se da janela e pára junto dos pés da cama.
- Quê que você tem, hem? Tá puto por quê? Só porque eu não fiz o que você mandou, é?
Não respondo. O cigarro apagou e a pele dos dedos já não arde.
- Sabe de uma coisa? Você é um idiota. Aliás, não é você que é idiota, eu é que sou idiota.
Cala-se e volta para junto da janela.
- Odeio que me obriguem. Prefiro que me batam. Pra me obrigar, bastou meu pai, entendeu?
Escuto um ploft surdo na calçada e um, foda-se, sibilado entre os dentes. A garrafa de cerveja tombou do parapeito da jardineira e Andréa afasta-se da janela, e eu deixo amolecer o corpo e fecho os olhos. Estou cansado.
- E se eu tiver mentido? Como é que você vai saber quem eu sou, hem? Adivinhando, é?
Agora, a voz de Andréa chega de muito longe. De tão longe, que nem sei se é a voz dela. E nem me importo. Estou cansado. Muito cansado. De repente, todos os músculos doem e o corpo pesa toneladas, e só quero adormecer. Estou cansado. Muito cansado. Tão cansado que nem as minhas mãos podem ajudar-me. Deixo escorregar o toco do cigarro por entre os dedos e a cabeça cai sobre o peito. Tudo que fizemos e dissemos foi inútil, e só restou este cansaço e esta vontade de dormir. E um desejo enorme de ficar só. Algo dentro de mim tinha quebrado. Ainda não sabia o que era, mas alguma coisa se partira e os cacos chocalhavam. Podia ser o encanto do que tinha sido feito, podia ser a verdade do que tinha sido dito, podia ser até o meu medo de morrer. Podia ser qualquer coisa. Mas, fosse o que fosse, agora, uma coisa eu sabia. Se Andréa saísse do quarto e fosse embora, não a chamaria de volta. Talvez, depois, me arrependesse e passasse até o resto da vida pedindo que voltasse. Mas, neste momento, não me importo. Estou cansado. Muito cansado. Neste momento, o que eu quero é silêncio. E sono, para poder adormecer.
- Eduardo.
Muitas vezes pensei que tivesse chegado ao cu do mundo. Mas não tinha. Se alguma vez cheguei, então, agora, estava era no cu do cu do cu do mundo. Sinto o colchão afundar do lado da janela e sei que Andréa sentou na cama. Mas continuo como estou. Cansado. Muito cansado.
- Eduardo, escuta.
Eduardo. A minha mãe nunca me chamou Eduardo. Quando eu deitava a cabeça no colo dela ela me chamava, meu menino, meu menino. A mão de Andréa passa, devagar, na minha coxa.
- Por quê que você fez aquilo, hem?
Sinto vontade de lhe perguntar a mesma coisa, mas não pergunto. Estou cansado. E só de pensar que tenho que abrir a boca e mexer a língua, fico ainda mais cansado. Tão cansado que nem sinto a mão de Andréa na minha coxa.
- Uma vez você me disse que cada um tinha direito de ter razão, lembra?
Lembro. Lembro, caralho. Mas também lembro de muitas outras coisas, puta merda. Andréa passa a mão na minha cara, tateando. Mas o contato é só contato, não lhe dou nenhum significado e ele não tem mais significado. Agora, gostaria é de chorar. Mas não vou chorar. Sei que não vou chorar. Não sei chorar. Nunca chorei. Nem quando saí da minha casa e a minha mãe não veio despedir-se. Engulo em seco e a garganta aperta e dói, e parece que a pele vai rasgar. Os cacos ainda chocalham e não sei como juntá-los.
- Eduardo.
Os dedos continuam tateando no meu rosto, mas o contato é só contato e os sons que dizem o meu nome também são apenas ruídos. Iguais aos que eu escutava nos montes, quando os outros deitavam com as namoradas debaixo dos silvedos e riam ao me verem afastar, subindo pelas encostas. Nestas duas noites, pela primeira vez, gostei de deitar com alguém. E de tanto precisar de Andréa cheguei até a pensar que ela também precisava de mim. Mas enganei-me. Enganei-me e, agora, não há mais o que fazer. Estou cansado. Muito cansado. Os cacos continuam chocalhando e o ruído bate no meu cérebro como se a cabeça fosse oca. Andréa encosta as palmas das mãos na minha cara e a pele parece que arde, de tão quente.
- Abre os olhos.
O calor é quente, mas nem o sinto. Agora, já não sinto mais nada.
- Eu tou pedindo, Eduardo.
Não vou abrir. Não quero abrir. Se abrir, vou ter que te ver e não quero mais te ver. E se eu tiver mentido? Como é que você vai saber quem eu sou, hem? Adivinhando, é? Não fui que disse isto, não, Andréa.
Não sei quanto tempo se passou, mas não dormi. Sei que não dormi. Apenas esqueci o tempo. Mas também não importa saber se dormi ou não. Agora, só importa saber que ainda estou aqui e o meu corpo começa a tomar forma. De cima para baixo. Como se estivesse sendo lavado e a água, ao escorrer, diluísse a pressão que me prendia. É uma sensação estranha, mas boa. À medida que os sentidos despertam, parece que os cacos se juntam e eu tomo conhecimento do meu corpo e de tudo que me cerca. Primeiro, o cabelo e a testa. Depois, os olhos e os ouvidos e a boca, e, quando a lassidão chega ao pescoço e se espalha pelos ombros e pelos braços, e escorre pelo peito e pelas costas, a pressão acaba e os ouvidos param de zumbir, e a garganta abre e pára de doer e o ar entra livre nos pulmões. Respiro fundo e a pressão desce mais, como se alguém a empurrasse, e passa pelos quadris e pelas pernas, e, quando chega aos pés, os dedos começam a formigar e a mexer. Agora, já sei onde estou e como estou. Estou no Ipê Amarelo e estava com Andréa.
Presto atenção aos ruídos, a todos os ruídos, e tudo está silencioso. Os besouros sumiram dos ouvidos e os cacos juntaram-se e deixaram de chocalhar. Não sei como aconteceu, mas não me importo. Agora, que já estou começando a ficar bem, o importante é ficar calmo. Respiro fundo e abro os olhos, e o sol flameja no cabelo de Andréa, deitada no meu colo. Um pássaro azul esvoaça junto da árvore e pousa nas grades da jardineira. As penas brilham e ele alisa-as com o bico e olha-me, e eu penso que gostaria de ser pássaro. Mas a cabeça de Andréa está encostada no meu peito e um perfume suave sobe do cabelo, e eu penso também que gostaria que ela me quisesse. Fecho os olhos e não quero pensar mais nada. A felicidade não existe. A gente é que teima em ser feliz.
- Eduardo.
Abro os olhos e o pássaro azul já voou. É livre e pode fazer o que quiser. Estar onde quiser. Mas o que é ser livre, afinal? Voar como os pássaros ou nadar como os peixes?
- Já acordou?
O cabelo de Andréa brilha, batido pelo sol e espalhado no meu peito, e eu penso em voar como os pássaros ou nadar como os peixes. E nem vôo, nem nado. Apenas estou aqui. Andréa levanta a cabeça e olha-me, e os olhos estão tristes. Como os meus devem estar.
- Eu sei que você não acredita em signos.
Não. Não acredito, não. Não posso acreditar. Se os astros influíssem, mesmo, na nossa vida, eu não estaria como estou. Você não disse que o meu regente era Marte, o deus da guerra? Deus da guerra, o caralho.
- Sabe? Entre Escorpião e Câncer a paixão é sempre dolorosa.
Andréa cala-se e eu também não digo nada. A vida é uma merda. Ou a gente fala ou a gente escuta. Só que quem fala não escuta e quem escuta não fala. Olho a janela e o sol já bate no espelho da penteadeira e reflete-se nas portas do armário. Não sei que horas são, nem quando sairemos daqui, e não quero saber. Este quarto já não é o nosso quarto. E talvez nunca tenha sido. Não gosto do que penso e fecho os olhos, e as minhas pálpebras estrelam de pontos brancos, mas o que pensei é verdade e não adianta enganar-me. Este quarto nunca foi o nosso quarto. É apenas um quarto e qualquer um pode estar nele. Até nós. Abro os olhos e olho o cabelo de Andréa, ainda espalhado no meu peito, e as raízes louras já se notam. A minha mãe nunca pintou o cabelo. Nunca pintou, mas também me deixou só. Não gosto do que penso e fecho os olhos outra vez, mas a lembrança permanece e um arrepio me faz estremecer. Andréa abraça-me com mais força e aninha a cabeça no meu peito.
- Tá com frio?
Não respondo e, não sei por quê, abraço-a também. Estar só não é só estar sozinho. Nós ainda estamos juntos e não estamos mais juntos. Passa-se algum tempo e Andréa parece ter adormecido. Abro os olhos e o sol não bate mais no espelho da penteadeira. Não sei onde bate, mas não quero levantar-me. Nesta cama, pelo menos, o corpo de Andréa ainda está comigo, e em Belo Horizonte nada me espera. Fecho os olhos e tento não pensar no meu quarto, à noite, no hotel, e a mão de Andréa passa no meu rosto.
- Tá vendo como eu sou? Você devia ter arrumado outra mulher.
A garganta aperta e os ouvidos zumbem de repente, e não sei o que dizer-lhe.
- Sabe? Você precisa pintar o cabelo. Tá ficando muito louro. |