CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Vinte e cinco

Ontem pedi Andréa em casamento. Pode não ter sido a hora certa e pode não ter sido o lugar certo, mas tenho certeza que foi a coisa certa. Ainda não sei o que vai ser o meu futuro, mas, agora, sei o que quero que ele seja. E esta foi a minha grande descoberta. Saber, exatamente, o que quero, como quero, e por que quero.

Foi uma revelação. Um segundo antes ainda não sabia e, no segundo seguinte, estava tudo definido. Foi como se tivesse nascido, de fato, na tarde daquela quarta-feira, 31 de julho de 1991. Na verdade, o medo só apavora quando a gente tem até medo de ter medo. E eu não tenho mais medo. Nem mais medo de ter medo. Agora, eu tenho certeza do que sou e sei o que quero, como quero, e por que quero. Quero Andréa e vou casar com ela, porque a presença dela me protege.

Estávamos na Casa dos Contos e eu tinha pedido uma garrafa de Colares quando Andréa perguntou o que íamos comemorar. Não respondi e ela riu e pegou nas minhas mãos.

- Ah, Eduardo, me diz. Sempre que você pede esse tal de Colares, a gente comemora alguma coisa. Da última vez foi o Green Park, da primeira foi o Ipê Amarelo, em outubro foi não sei o quê, e ainda teve mais outra, não teve, não?

Cruzou as mãos debaixo do queixo e os seios apoiaram-se na mesa. Lembrei deles caídos no lençol e as minhas mãos tremeram e quiseram pegar neles.

- Vá, me conta. Quê que nós vamos comemorar hoje, hem?

Acendi um cigarro. Não tinha vontade de fumar, mas precisava ocupar as minhas mãos. Os seios de Andréa não estavam mais apoiados na mesa. Ainda estavam caídos no lençol e as minhas mãos pegavam neles. Puxei uma tragada profunda e soltei o fumo devagar. O rosto de Andréa estava magro e cansado, e, com o cabelo preso no alto da cabeça, parecia ainda mais magro e mais cansado. Continuávamos jantando todas as noites na Casa dos Contos ou na Brunella, mas deitávamos cedo. Andréa não estava habituada a trabalhar e já, por diversas vezes, tinha chegado atrasada.

- Fala, Eduardo. Não tá vendo que eu tou curiosa, não?

- Hoje, nós não vamos comemorar nada. Hoje, nós vamos festejar.

- Vamos festejar? Vamos festejar o quê?

- Vamos festejar o nosso casamento.

Andréa riu.

- Festejar o nosso casamento? Você tá brincando.

- Não tou, não.

Andréa continuou rindo.

- Você tá querendo me dizer que tá me pedindo em casamento, aqui na Casa dos Contos? É isso?

- É. Você não quer, não?

Andréa não respondeu. Tirou o cigarro da minha mão e recostou-se na cadeira, e puxou uma tragada profunda.

- Você só pode tar brincando, Eduardo.

- Não tou brincando, não, Andréa. Nós vamos nos casar.

Andréa colocou o cigarro no cinzeiro e não disse nada. Pegou o copo e bebeu um gole, e ficou com ele na frente do rosto, como se me olhasse através do vidro embaciado. Mas não olhava. Os olhos estavam fixos num ponto qualquer atrás de mim. Ficou assim algum tempo e eu peguei o meu copo também. Mas não bebi. Não entendia aquele silêncio e sabia que o conhaque ia amargar. Andréa colocou o copo na mesa e empurrou, devagar, a garrafa para cima da mureta. Empurrou-a até à borda e cruzou as mãos debaixo do queixo. A garrafa ficou com metade do fundo fora da tábua e Andréa olhava-a fixamente. Como se estivesse esperando que escorregasse e caísse ou fosse uma bola de cristal. Um caminhão passou, sacolejando, e a mureta estremeceu e a garrafa caiu e fez um ploft surdo na calçada. Andréa continuou imóvel, olhando a tábua da mureta, e eu debrucei-me na mesa e peguei nas mãos dela.

- Você não quer casar comigo, não?

Andréa, num gesto brusco, levantou-se.

- Vou no banheiro.

Afastou a cadeira e seguiu por entre as mesas. Tinha uma maneira própria de andar. Os braços caídos ao longo do corpo e abanando, e as pernas arqueadas, como se os tênis tivessem saltos e o chão fosse de borracha. Era isso que fazia os seios balançarem. As mesas estavam todas ocupadas e os homens, e algumas das mulheres, voltaram as cabeças. Deviam ser os seios, balançando. Sorri e olhei o copo, e tive certeza que o conhaque não ia mais amargar. Bebi e não amargou. Chamei um garçom e mandei trazer o vinho. Fosse qual fosse a razão daquele silêncio, agora não estava mais preocupado. Andréa não tinha recusado o meu pedido. Não tinha aceitado, mas também não tinha recusado. Portanto, o mundo que se fodesse e todo mundo fosse à merda.

Tínhamos voltado do Ipê Amarelo há dois meses e estava tudo bem. Saíamos todas as noites e eu estava bem e estava calmo, e só pensava na hora de encontrá-la. Na primeira noite que Andréa saiu sem sutiã nem jantamos. Como sempre, fomos para a Praça do Papa e eu deitei a cabeça no colo dela. Não me masturbei, nem ela me masturbou, mas gozei. Quando Andréa abriu a blusa e os seios encostaram na minha cara e eu levantei as mãos e peguei neles, a nuca estalou e a vista escureceu e o sexo explodiu. Andréa riu e abraçou-me, e ficamos assim até à hora de voltar. Não tinha mais fome e Andréa também não quis jantar. Já tinha deitado a cabeça no colo dela muitas vezes, mas nunca daquele jeito. Era como se voltasse a ser menino.

No último fim de semana ficamos no Green Park. Foi a primeira vez que dormimos juntos depois que voltamos do Ipê Amarelo, e há muito eu queria vê-la nua. Mas não sabia como ela reagiria. Felizmente, na sexta-feira Andréa percebeu. Passamos as noites de sexta para sábado e de sábado para domingo, e foi já na madrugada de domingo, quando Andréa adormeceu, que eu lembrei do casamento e tive certeza que seria a solução definitiva. Não falei com Andréa no Green Park. Achei que não era o lugar certo. Eu não a queria só porque tinha seios grandes. Eu a queria também por isso, mas, agora, não era só por isso.

Dois dias depois da ida ao Green Park o Sr. Ferraz procurou-me.

- Sr. Eduardo, se o senhor autorizar, eu vou mudar o horário da Recepção. O senhor veja. Se a maior parte dos setores começa os turnos às oito, por quê que na Recepção não pode ser igual? As meninas vão ficar mais satisfeitas e vai ser melhor pra todo mundo, o senhor não acha, não? Assim, todo mundo sai às seis.

O Sr. Ferraz era meu amigo e talvez soubesse que eu saía com Andréa. Mas quem mais me espantou foi D. Beth. De um dia para o outro deixou de usar os tailleurs bem cortados e sapatos de salto alto e maquiagem, e apareceu com calças jeans e blusas estampadas. E, depois da nossa vinda do Ipê Amarelo, apesar de eu nunca ter comentado, colocava, todos os dias, um botão de rosa cor de chá na minha mesa. Para mim, foi uma situação embaraçosa. E comentei com Andréa. Mas ela riu e disse que era natural D. Beth fazer isso. Afinal, eu era o gerente geral do hotel. Não pensei mais no assunto até que, na semana passada, D. Beth fez até uma coisa que nunca tinha feito. Era aniversário do chefe do Escritório e ela, ao invés de deixar o convite no tabuleiro dos despachos, junto com a sugestão do presente a ser comprado, entrou na minha sala, sorridente, como se o aniversário fosse dela.

- Eu acho que o senhor devia ir à festinha de Seu Rui, Sr. Eduardo. Desta vez, ele não convidou só o pessoal do Escritório, não. Convidou também o Sr. Ferraz e as meninas. O senhor não vai querer ir, não?

Fui. Era a primeira vez que ia à casa de alguém e gostei de ter ido. Andréa foi com o Sr. Ferraz e as colegas, e encontramo-nos lá. Quando cheguei o Sr. Rui fez um brinde e pediu licença para colocar Andréa do meu lado, e pediu para tirar uma fotografia junto de nós. Todos aplaudiram e o Sr. Rui gastou dois filmes, tirando fotos de todo mundo ao nosso lado. Antes de cortar o bolo o Sr. Ferraz fez um discurso sobre a beleza do amor. O Sr. Ferraz era solteiro e Andréa me tinha dito que vivia com um fiscal da Prefeitura há mais de vinte anos. Não citou os nossos nomes, mas todos aplaudiram, e o Sr. Rui tirou as mesas e as cadeiras e ligou o som, e pediu-me que dançasse com Andréa. Não adiantou dizer que não sabia. D. Beth juntou-nos e todos gritaram dança, dança, e eu tive que dançar. Era a primeira vez que dançava e gostei da brincadeira. Na verdade, não gostei só da brincadeira. Gostei de tudo e prometi a mim mesmo nunca mais faltar a nenhuma daquelas festas.

Provei o vinho. Tinha descoberto aquele Colares na Casa dos Contos por acaso. Tínhamos voltado do Ipê Amarelo naquele domingo e eu queria comemorar, e o garçom trouxe o Colares por engano. Garrafeira, tinto, safra 1975, uma das melhores dos últimos trinta anos. Comprei as oito garrafas do estoque e pedi que as guardassem. Seriam usadas em ocasiões especiais. Como a de ontem. Bebi outro gole e olhei o fundo da varanda. Andréa caminhava por entre as mesas e os seios balançavam. De novo cabeças de homens e mulheres se voltaram, e olhos a seguiram. Mas ela não olhou para ninguém. Sentou-se e sorriu, e apontou a garrafa.

- Já trouxeram?

- Eu que pedi.

Enchi os copos e ela acendeu um cigarro, e bebeu.

- Adoro vinho. Adoro mesmo.

Bebi também e enchi os copos. Andréa tinha soltado o cabelo e ele caía pelos ombros e pelas costas, e contrastava com o tecido branco da blusa. O rosto continuava cansado, mas ela já sorria e parecia satisfeita.

- Vamos jantar agora?

- Vamos. Mas, antes, eu queria te fazer uma pergunta.

Debrucei-me na mesa e peguei na mão dela.

- Por quê que você foi no banheiro naquela hora, hem? Eu pensei que você fosse responder.

Andréa riu.

- Por quê que eu fui no banheiro? Ora, Eduardo...

Calou-se e recostou-se na cadeira, e acendeu um cigarro e puxou uma tragada.

- Sabe? Você dizer que quer casar comigo, assim de repente, foi uma coisa que me deixou assim...

Fez uma pausa e sorriu, e apertou a minha mão.

- Que me fez bem, sabe como?

Embora só restassem quatro garrafas, ontem tomamos duas. Mas valeu a pena. Agora, tenho certeza que Andréa também quer casar comigo.

 
 
 

Cunha de Leiradella
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