Estou na minha sala e são dez horas da manhã, e o calendário está bem na minha frente. Segunda-feira, 5 de agosto de 1991. Há horas que olho para ele e para os ponteiros do relógio, e não sei o que fazer. Na verdade, sei, mas tenho medo. O que esperava que acontecesse ainda não aconteceu, e também não sei se vai acontecer.
Como sempre, levantei às seis e desci às sete. D. Beth chegou às oito e estranhou, e perguntou se tinha acontecido alguma coisa. Normalmente, nunca chego na minha sala antes das nove. Tomo café no apartamento e faço a inspeção diária do hotel. Subo ao último andar e vou descendo. Verificando como está cada setor e como estão sendo realizadas as tarefas. É uma rotina, e faço isso todos os dias. O hotel tem vinte andares e a inspeção demora duas horas. Das sete às nove. Às sete estou na Copa do Andar Executivo e às nove estou na Portaria Social. Analiso o livro das reclamações e passo na Recepção. Verifico o mapa das reservas e subo para a minha sala. Leio os jornais e começo, então, a trabalhar com D. Beth.
Faço isto há três anos, todos os dias. Mas hoje não fiz. Não passei em nenhum setor, nem despachei com D. Beth. Já fumei mais de meio maço de cigarros e não li nenhum jornal. Estou sentado desde que cheguei e a minha preocupação é o telefone. O aparelho do ramal. Estou aqui há mais de três horas, só esperando escutar o toque da campainha. Disse a D. Beth para atender todas as chamadas e deixar livre o meu ramal. A chamada que me interessa só pode chegar através dele.
Talvez seja bobagem esperar uma coisa que não vai acontecer. Mas, como gostaria que acontecesse, ainda espero que aconteça. Pego o maço de cigarros e leio pela enésima vez o nome da marca, como se as letras da palavra Marlboro tivessem o poder de fazer tocar a campainha. Mas ela não toca e só me resta esperar. E espero. Acendo mais um cigarro e puxo uma tragada profunda, e continuo esperando. Nada mais posso fazer. Mas, ansioso como estou, tudo me serve de pretexto para acreditar que a campainha vai tocar. É o fumo do cigarro que sobe na vertical e, de repente, revolteia no ar e eu penso que é o sinal que faltava, são os pardais que voam na praça e, de repente, pousam nas árvores e eu penso que é agora que o ramal vai chamar, é a cadeira que estala e eu penso que o barulho repentino é o sinal da chamada, é o coração que dispara e eu penso que a velocidade das batidas prenuncia o toque da campainha, são os telefones de D. Beth que tocam na sala dela e eu tenho certeza que houve engano nos ramais e ela vai transferir a ligação. Basta o mais ínfimo acidente mudar o equilíbrio do silêncio ou das imagens, e logo me convenço que a chamada, finalmente, vai ser feita. Mas não vai. Pelo menos, ainda não foi. E talvez nem seja. Eu é que gostaria que fosse. Por isso, estou tão ansioso e imagino tudo isto.
Puxo outra tragada e olho, mais uma vez, o telefone. Estou debruçado na mesa e ele está bem na minha frente. Tão perto que, ao primeiro toque da campainha, basta estender a mão e colocar o fone no ouvido, e escutar a voz que me interessa.
Na verdade, não tenho necessidade de estar assim. Bastaria pegar o telefone e, ao invés de esperar, eu mesmo fazer a ligação. Seria muito mais fácil e muito mais prático. E talvez fosse até a coisa certa. Assim como eu estou ansioso, quem sabe a minha ligação também não está sendo esperada com a mesma ansiedade? Olho o telefone e estendo a mão, mas paro o gesto. Se o pegar e discar, três coisas podem acontecer. A pessoa certa não atender, a pessoa certa atender e não poder conversar ou a pessoa certa atender e não querer conversar. Qualquer destas hipóteses é possível. Só que, em qualquer delas, eu serei o perdedor. E não quero, nem posso perder. Por isso, prefiro ser chamado. Quando for chamado, a pessoa que quero escutar também quererá falar comigo.
Acendo outro cigarro e olho o relógio. Onze e doze. Há mais de quatro horas que o ramal devia ter chamado e ainda não chamou. Xingo um palavrão e olho pela janela. Pousado no galho de uma árvore, um bem-te-vi olha para mim. Ora com um olho, ora com o outro. Olho-o durante algum tempo e ele não pára de me olhar. Puxo uma tragada e sopro o fumo na direção da janela, mas o bem-te-vi não se assusta. É tão grande a insistência com que me olha que sou obrigado a imaginar que está querendo me dizer alguma coisa. E se o olhar significar, liga, liga agora? Continuo olhando e penso, se ele parar de me olhar, vou ligar. Da forma como aquele bem-te-vi olha para mim, tenho certeza que o olhar só pode significar isto. Fixo os olhos no olho dele e seguro o telefone. Pronto a tirar o fone do gancho no instante em que ele parar de me olhar. A descoberta desta certeza me deixa tão tenso que os músculos do braço começam a doer, mas não me importo. O importante, agora, é que o bem-te-vi pare de me olhar. Esqueço a dor e concentro-me. E ficamos assim, o bem-te-vi olhando para mim e eu olhando para ele e querendo que ele não me olhe. Passa muito tempo e os nós dos dedos ficam brancos, tal a força com que seguro o telefone. Mas também não me importo. O que importa, agora, é impor a minha vontade àquele bem-te-vi. E concentro-me ainda mais. Por mais forte que seja, ele não tem a minha força de vontade, nem espera, como eu, uma ligação tão importante.
Um ônibus pára de repente debaixo da janela e o chiado dos freios assusta o bem-te-vi, e ele foge. Desesperado, deixo cair o braço na mesa. Não posso mais fazer a ligação. Se ela tivesse que ser feita o ônibus não teria parado debaixo da janela e o chiado dos freios não teria assustado o bem-te-vi. Ou, então, eu teria interpretado o olhar dele de outra forma. Quando um ônibus parar debaixo da janela e o chiado dos freios assustar o bem-te-vi, será hora de ligar. Mas, como não interpretei desta forma, agora não posso mais ligar. E continuo esperando.
Olho o relógio. Onze e trinta e sete. Será que a pessoa certa estará no lugar certo? Se a pessoa certa não estiver no lugar certo o telefone nunca chamará. Quando penso isto o coração bate em falso e a vista parece escurecer. Sei que é só mais uma hipótese. Mas, pensando bem, é a mais lógica. Se a pessoa certa estivesse no lugar certo já há muito teria feito a ligação. Como não fez, acendo um cigarro e puxo uma tragada, e continuo o pensamento, como não fez, só pode ter acontecido alguma coisa. A conclusão é tão clara e evidente que me sinto até mais tranqüilo. A ligação não foi feita porque a pessoa certa não está no lugar certo. Não foi a pessoa que não quis ligar, as circunstâncias é que não a deixaram ligar.
Recosto-me na cadeira e respiro aliviado. A capacidade de ter certezas é que me torna invencível. Se a realidade me sufoca, são as certezas que não deixam que me destrua. Tão logo me convenço que não foi Andréa que não quis ligar, tudo muda. O sol que entra pela janela brilha mais e até os pássaros que pousam nas árvores começam a cantar. Totalmente tranqüilo chamo D. Beth.
- Por favor, pergunte ao Sr. Ferraz por quê que aquela recepcionista nova não veio trabalhar.
D. Beth olha-me, mas não diz nada. Sai e fecha a porta. Recosto-me na cadeira e olho à volta. As plantas dos vasos precisam ser mudadas e o retrato do fundador da companhia está fora do lugar, mas nada disso importa. O que importa, agora, é a certeza de estar certo. Andréa só não telefonou porque não veio trabalhar. Segundos depois, o interfone toca.
- O Sr. Ferraz manda dizer que a moça tá trabalhando. Começou hoje de manhã, conforme o senhor tinha mandado.
O choque paralisa-me e mal escuto a voz de D. Beth.
- Por quê que o Sr. Ferraz não avisou?
- Vai ver, o senhor não mandou que ele avisasse.
Desligo o interfone e olho pela janela. Um bem-te-vi está pousado no mesmo galho. Filho da puta. Se tivesse uma espingarda matava o desgraçado. |