CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Quatro

O que Belo Horizonte mais tem são bares e botecos. A Serra do Curral Del Rey não tem dunas, nem tem mar, mas as calçadas das ruas da Savassi fervilham de gente, como as praias de Copacabana ou Ipanema. E os destinos são iguais. Em Belo Horizonte, ou no Rio de Janeiro, os motéis funcionam dia e noite.

A Casa dos Contos fica na Rua Rio Grande do Norte, quase esquina da Rua Santa Rita Durão, e nada tem de especial, a não ser a minha mesa, na varanda, voltada para a rua, e uma freqüência que não muda. Por isso, vou lá todas as noites. Depois que saio dos cinemas é lá que terminam as minhas vias-sacras. Mas nunca sentei na mesa de ninguém, nem nunca ninguém sentou na minha mesa. Sempre entro só, sento só e saio só.

Não conheço nenhum garçom. A maior parte dos fregueses faz questão de chamar os garçons pelo nome e em voz alta. Eu não consigo. Não os conheço. Mas, mesmo que conhecesse, não chamaria. Às vezes, quando alguém grita um nome, fico pensando no que poderia acontecer se fizesse a mesma coisa. Provavelmente, não aconteceria nada e talvez o garçom ficasse até satisfeito. Já me perguntei muitas vezes por que não faço como os outros, e não sei responder. Na verdade, gostaria de fazer. Mas, na hora, não consigo. O fato de chamar um garçom pelo nome não nos tornaria mais amigos. Apenas fingiria uma intimidade inexistente.

Já não lembro como descobri a Casa dos Contos. Mas deve ter sido por acaso. Foi sempre por acaso que tudo aconteceu na minha vida. Foi por acaso que vi a minha mãe tomando banho, foi por acaso que o meu pai voltou da Espanha antes do Natal e nos viu juntos, foi por acaso que a minha prima me arrastou até ao quarto e foi por acaso que vim para Belo Horizonte gerenciar o Mangabeiras Palace Hotel. E foi por acaso, também, que Andréa entrou na minha sala. A única coisa que não me acontece por acaso é viver só.

Às vezes, penso que nunca deveria dizer a verdade. Dizer a verdade é tão fácil quanto ficar louco. E é fácil ficar louco. Basta dar um grito e o grito não parar. Não sei. Sinceramente, não sei, mas tenho certeza que é por isso que nunca gritei pelos garçons da Casa dos Contos. Talvez o grito não parasse.

Vou lá todas as noites. Mas só vou porque não tenho outro lugar para onde ir. Se não for para a Casa dos Contos terei que ir para o meu quarto, e não gosto do meu quarto. Mas, na verdade, a Casa dos Contos e o meu quarto são iguais. A única vantagem da Casa dos Contos é que não posso ligar o vídeocassete e masturbar-me. De resto, nada muda. Na Casa dos Contos, ou no meu quarto, o ar que me cerca nunca é compartilhado com ninguém.

Às vezes, ainda penso pedir às mulheres que venham sentar na minha. Apesar de não conhecer nenhuma delas, tenho certeza que muitas sentariam. E, mesmo sabendo o motivo do meu convite, tenho certeza que a maior parte não riria. Se lhes dissesse que só queria olhar os seios tenho certeza que deixariam. Do jeito que sentam naquelas mesas, aquelas mulheres também vão para a Casa dos Contos como eu vou. Esperando que apareça alguém que tenha um colo e elas possam deitar nele.

Mas, apesar de todas estas certezas, nunca me aproximei de nenhuma. Nunca tive coragem. E, como nunca as procurei, elas também nunca vieram ao meu encontro. Por isso, continuamos como sempre estivemos. Cada um sentado na sua mesa e, entre nós, o medo abismal da rejeição.

Hoje é sábado e estou na Casa dos Contos, como sempre. São onze horas da noite e faz meia hora que saí do cinema Regina, na Rua da Bahia. Mas, hoje, a Casa dos Contos mudou. Estou bem e estou calmo, e estou gostando do que penso. Andréa começa a trabalhar segunda-feira e estou pensando no momento de encontrá-la. Não a vi mais depois da entrevista, mas só tenho pensado nela. E tenho pensado tanto que quase nem entrei no Regina. Mas foi bom ter entrado. Pela primeira vez não me masturbei dentro de um cinema.

Não sei o que vai acontecer segunda-feira. Só sei que não paro de pensar. Se hoje fosse domingo e já fosse madrugada, faltariam somente algumas horas. Mas é sábado e faltam ainda duas noites e um dia, e não sei o que fazer. Poderia voltar para o hotel e, amanhã, ir a Ouro Preto ou Tiradentes. Ou a qualquer outro lugar. Mas não tenho sono e sei que não vou adormecer, e também não quero viajar. Poderia esperar na porta da casa dela. Seria fácil. Andréa mora na Rua Ramalhete e o bairro Anchieta fica perto. Só que ela pode chegar acompanhada e talvez não goste de me ver, ou pode não ter saído e não a verei do mesmo jeito. Bebo o resto do conhaque e olho o copo vazio. Se Andréa estivesse aqui não teria necessidade de pensar em nada disto. Estaríamos conversando e, depois, sairíamos por aí. Ou ficaríamos aqui mesmo. O importante seria Andréa estar comigo.

Chamo um garçom e peço outro conhaque. Provavelmente, Andréa já nem lembra mais de mim. Ou, se lembra, talvez esteja até rindo do que lhe disse. Olho o relógio. Onze e vinte. Ou, então, está num motel, com algum dos namorados. Ela disse que não tinha namorado, mas tenho certeza que mentiu e, agora, estão na cama e estão nus e ambos gozam e são felizes. O garçom traz o conhaque. Bebo-o de um gole e peço outro. Acendo um cigarro e puxo uma tragada e fecho os olhos e Andréa está na minha cama e os seios estão caídos no lençol e ela vira de costas e diz, são seus, e eu enterro a cara neles e também fico feliz.

- Qual é, pô? Quer acabar, acabou, foda-se.

Os seios de Andréa se desfazem e eu xingo um palavrão e abro os olhos, e duas mesas além da minha estão duas moças e dois rapazes, e a moça que está de costas diz, quê que é isso, gente, isso é bobagem, e o rapaz que está de frente diz, não é bobagem, não, é isso mesmo, e levanta-se e diz à moça que está de frente, é isso que você quer, então tá, foda-se, e a moça que está de costas pega na mão da moça que está de frente e diz, Andréa, por favor, reconsidera, e olha o rapaz que levantou, e ele joga algumas notas na mesa e pega o maço de cigarros e diz, ah, Fifina, deixa pra lá, não tou nem aí, quer acabar, acabou, foda-se, e vai embora, e a moça e o rapaz que estão de costas levantam-se também e seguem atrás dele, e a moça que está de frente encolhe os ombros e sorri e eu gosto do sorriso, e estou bem e estou calmo, e sou o homem que quero ser.

A moça tem os cotovelos fincados na mesa e o queixo apoiado nas mãos, e um cigarro queima no cinzeiro, ao lado de um copo de Campari. Não usa batom ou qualquer outra maquiagem e não parece ter mais de vinte anos, e o cabelo é liso, muito comprido e cor de cobre, e cai-lhe sobre os ombros como um véu. Iluminado pela luz crua das lâmpadas, brilha como fogo, e ela usa uma camiseta e uma jaqueta de jeans, e os seios são grandes e redondos, e estofam a malha branca da camiseta. Quero sentar na mesa dela, mas não sei como fazer. Nunca sentei na mesa de ninguém. Olho o cigarro e ele continua queimando no cinzeiro, e olho o copo de Campari e o gelo continua derretendo. Se pegar primeiro no cigarro, levanto e vou sentar na mesa dela. Se pegar primeiro no copo, levanto e vou embora. Bebo um gole e peço a Deus que me ajude, e a moça estende a mão e pega no cigarro. Mas ainda estou levantando e um sujeito chega e encosta na mesa.

- Sozinha assim, gatinha?

Tenho vontade de pegar o filho da puta e jogá-lo na calçada, mas ela não dá tempo.

- Sai daqui, idiota.

O sujeito olha-a, espantado, e sai sem dizer nada. Xingo a minha indecisão e sento-me e penso voltar para o hotel, e ela levanta-se e pega a bolsa, e vem em direção à minha mesa. Senta-se e abre a bolsa, e tira um maço de Marlboro.

- Me empresta seu isqueiro?

A minha mão treme tanto que não consigo acendê-lo, e ela pega-o e acende o cigarro. Puxa uma tragada profunda e fecha os olhos, e sopra o fumo com força.

- Eu vi o que você fez. Obrigada.

Sem saber o que fazer, chamo um garçom. Ela coloca o cigarro no cinzeiro e ajeita o cabelo, e o garçom aproxima-se. Peço um conhaque e um Campari e ela levanta a mão, num gesto rápido.

- Campari, pra mim, não. Odeio Campari. Sempre odiei, mas sempre tive que tomar.

Pega o meu copo e olha o resto do conhaque.

- Quê que é isto?

- Conhaque.

- Peça dois.

Cala-se e olha-me durante alguns instantes, e encolhe os ombros.

- A vida da gente é muito estranha. Ou a gente faz e se arrepende, ou a gente não faz e se arrepende do mesmo jeito.

Não respondo, não sei o que responder, como também não soube responder quando Andréa saiu da minha sala, e o garçom afasta-se, e ela olha-me e sorri. Depois, apoia os cotovelos na mesa e cruza as mãos debaixo do queixo, e os seios encostam no tampo e arredondam-se. Olho-os e a garganta aperta e as mãos tremem, e tenho medo que ela note. Cruzo as mãos no colo e procuro disfarçar, e ela fica olhando para mim. Pouco depois o garçom traz os conhaques e ela pega o copo e bebe um gole.

- Taí. Gostei do seu conhaque.

Pega o cigarro e puxa uma tragada, e esmaga-o no cinzeiro. Bebo um gole e olho-a. Os olhos são grandes e marrons, e o rosto já não tem vincos. Ela olha-me também e ri. Acendo um cigarro e puxo uma tragada, mas o fumo amarga e rasca na garganta. Chamo um garçom e peço um maço de Marlboro. Ela olha o maço de Benson e abana a cabeça.

- Você é sempre assim?

Não respondo. Gostaria de lhe dizer quem sou, mas tenho medo que se levante e vá embora. Ela pega o meu cigarro e roda-o entre os dedos, e puxa uma tragada.

- Bom, este seu cigarro. Por quê que pediu Marlboro?

Continuo calado e ela ri e puxa outra tragada, e fica olhando para mim, enquanto solta o fumo, devagar, pelo nariz e pela boca. Puxa mais uma tragada e coloca o cigarro no cinzeiro.

- Se eu não sentasse na sua mesa, você teria sentado na minha?

Levo algum tempo para responder e ela não tira os olhos dos meus.

- Diga.

- Não sei. Acho que não.

- Mas gostaria?

Gostaria, mas não respondo. Não sei como dizer-lhe. Ainda tenho medo que se levante e vá embora. Ela debruça-se na mesa e os seios estofam a malha da camiseta, e a minha garganta aperta e a boca fica seca. Ela sorri e estende o braço, a mão quase toca nos meus dedos.

- Diga. Você gostaria?

Olho a mão, quase tocando a ponta dos meus dedos, e, de repente, a garganta abre e a palavra sai sem esforço.

- Gostaria.

- Então por quê que não sentou? Devia ter sentado.

Não respondo. Não tenho coragem de contar-lhe sobre o cigarro e o Campari. Pego o copo e bebo um gole, e ela recosta-se na cadeira e tira um cigarro do meu maço e acende-o e puxa uma tragada, e bebe o resto do conhaque.

- Peça outro pra mim.

O garçom traz o maço de Marlboro. Peço mais dois conhaques e ficamos calados, imóveis, apenas olhando um para o outro. O garçom traz os conhaques e eu já não tenho mais medo. Ainda não sei o que vai acontecer, mas já não tenho mais medo. Abro o maço de Marlboro e acendo um cigarro e puxo uma tragada, e o fumo é muito mais gostoso do que o Benson. Sorrio, satisfeito com a troca. Ela ainda está olhando para mim e, de repente, fecha os olhos e, num gesto brusco, começa a coçar o peito, por baixo do seio direito. Coça com tanta força que as unhas enterram na carne e arrepelam a malha da camiseta. Lembro das vias-sacras e das minhas mãos furiosas, e tenho vontade de segurar aquela mão. Coloco o cigarro no cinzeiro e estendo o braço, mas o gesto acaba ali. Ela pára de coçar e abre os olhos, e olha-me como se nada tivesse acontecido. Pega o meu cigarro e puxa uma tragada e sopra o fumo com força, e puxa outra e esmaga o cigarro no cinzeiro.

- E você?

É a primeira vez, em muitos anos, que me sinto junto de alguém. E é a primeira vez, também, que sinto alguém junto de mim. E isso me faz bem.

- Quer ficar aqui?

- Você quer?

Ela abana a cabeça e pega a bolsa. Pago a conta e saímos.

- Quer ir pra onde?

Ela encolhe os ombros e pega na minha mão. Estou bem e estou calmo e, agora, estou feliz. Seguro a mão dela e atravessamos a rua, e entramos no carro. Agora, Belo Horizonte já não me agride, nem sufoca. Ainda não me abriga, nem protege, mas já não me agride, nem sufoca. Subo a Rua Rio Grande do Norte e dobro à esquerda, na Avenida Getúlio Vargas. Já fiz este caminho muitas vezes, mas é a primeira vez que o faço acompanhado. Ela está calada e tem os olhos fechados e a mão no meu joelho, e eu gosto do calor daquela mão. O sinal fecha no cruzamento da Avenida Afonso Pena. Sinto vontade de fumar, mas não acendo o cigarro. Tenho medo que o gesto desfaça o equilíbrio que nos envolve. O sinal abre e subo a Avenida Afonso Pena. Não sei que horas são e não me importo. O importante não é mais o tempo que passou. Nem, sequer, o que há de vir. O importante, agora, é o tempo que passa. A verdade é só o momento que passa. Paro o carro no alto da Praça do Papa e olho-a, e ela abre os olhos e olha-me também. Ajeita-se no assento e pega na minha mão, e olha a praça descendo pela encosta.

- Você gosta daqui?

- Gosto. Me dá paz.

Ela puxa a minha mão para o colo e fica olhando a cidade iluminada. A praça está deserta e nada se move à nossa volta. Recosto a cabeça no assento e fecho os olhos, e não sei em que pensar. Mas não me importo, estou feliz. Agora, o tempo somos nós. Sem passado e sem memória, apenas acontecendo. Penso muito na morte e tenho medo de morrer. Mas, se morresse agora, nem morreria. Não se morre feliz. Sinto o corpo dela encostar-se no meu e a cabeça deita no meu ombro.

- Eu sou Andréa. E você?

Escuto o que diz, mas não sei o que pergunta. Estou feliz. Pela primeira vez pensei na morte e não senti medo de morrer. Ela levanta a minha mão e abre-a, e passa os dedos no rosto.

- Como é seu nome?

- Eduardo.

- Eduardo de quê?

- Da Cunha Júnior.

Lembro dos quatro na mesa da Casa dos Contos e as palavras soam, outra vez, nos meus ouvidos. Quer acabar, acabou, foda-se. Abano a cabeça com força e a imagem desfaz-se. Mas o eco continua. Quer acabar, acabou, foda-se.

- Não gosto do seu nome. É o nome que ele dizia.

- Ele não vai mais dizer.

Cala-se e encosta os lábios na minha mão. Ainda tenho os olhos fechados e não quero abri-los. Estou feliz e é bom estar feliz.

- Queria que fosse Ana Carolina.

- O quê?

- O seu nome.

- Por quê?

Não respondo. Não sei se posso responder. Ela desce a minha mão devagar, alisando o queixo e o pescoço, e aperta-a contra os seios.

- Diga.

Os seios arfam e são macios, e o gesto me faz bem.

- Era o nome da minha mãe.

Ela não responde, mas aperta mais a minha mão. Escorrego o corpo no assento e deito a cabeça no colo dela. Ela cobre a minha cabeça com as mãos e acaricia o meu cabelo. Não sei quanto tempo ficamos assim. Mas, de madrugada, a minha cabeça ainda estava deitada no colo dela e ela ainda acariciava o meu cabelo. Não falamos mais, nem nos beijamos. Apenas ficamos assim. E, quando o dia nasceu, ela beijou a minha testa.

- Eu sou Ana Carolina.

Não respondi. Não podia. A garganta apertava e um nó fechava a minha voz. Mas estava bem e estava calmo, e era bom estar ali. Ana Carolina apertou a minha cabeça contra os seios e encostou os lábios no meu cabelo. Se fosse a minha mãe teria feito a mesma coisa.

 
 
 
 

Cunha de Leiradella
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