CUNHA DE LEIRADELLA

A SOLIDÃO DA VERDADE

ROMANCE

II PARTE - A SOLIDÃO

Dezanove

Já era madrugada e o tempo tinha melhorado, e só uma garoa fina escorria pelo vale. A janela continuava aberta e o quarto já não estava tão abafado, nem tão quente, nem cheirava tanto a fumo de cigarro e a suor. Estávamos sentados na cama e bebíamos cerveja e fumávamos, e eu estava bem e estava calmo e Andréa também parecia satisfeita. O cabelo continuava úmido e colado na cabeça, e a pele do rosto lembrava um pedaço de cartolina amarrotada. Mas os olhos brilhavam, apesar das olheiras profundas e quase pretas, e o sorriso era aberto e tranqüilo. Recostava-se na cabeceira da cama e tinha o cinzeiro entre as coxas, e os pêlos do sexo mal se viam, amassados pelo vidro. O ar refrigerado continuava desligado e nenhum pássaro piava na árvore, junto da janela, nem os sapos coaxavam na represa. Recostei-me nos travesseiros e Andréa bebeu um gole e puxou uma tragada, e esmagou o cigarro no cinzeiro.

- Nunca me senti assim.

Respira fundo e recosta a cabeça na cabeceira da cama, e fecha os olhos.

- Assim tão bem.

- Eu também não.

Andréa passa a mão na minha coxa e o toque é sereno e tranqüilo. Confiante. Puxo uma tragada e esmago o cigarro no cinzeiro, e fecho os olhos. Estou bem e estou calmo, e não me importo com o que ainda possa acontecer.

- Sabe?

A voz de Andréa é apenas um murmúrio, mas o toque da mão na minha coxa continua confiante.

- Foi bom a gente ter vindo.

Abro os olhos, mas não respondo. Não preciso dizer nada. Agora, são os nossos corpos que conversam. Coloco a mão por cima da mão dela, e ficamos assim, eu, olhando os nossos corpos refletidos no espelho, e Andréa, de olhos fechados e segurando o copo entre os seios. As pálpebras estão tão escuras quanto as olheiras e, por cima do seio esquerdo e no pescoço, aparecem manchas arroxeadas. Lembro da minha boca passeando no corpo dela e ela arfando, e uma ternura enorme escorre no meu peito.

- Nunca pensei que pudesse ser assim.

Andréa aperta o copo contra o peito e aconchega-o entre os seios.

- Sexo nunca foi uma coisa boa pra mim.

Naquele quarto já tinham sido feitas muitas coisas e outras tantas tinham acontecido como conseqüência das primeiras. E todas foram descobertas importantes. Tínhamos entrado ali tateando, sem saber quais as portas que podiam ser abertas. Muitas nos espantaram e algumas chegaram a ferir, mas conseguimos abrir todas e o nosso mundo começou a tomar forma.

- Sempre foi um troço sujo. Você foi o primeiro homem com quem gozei de verdade.

Cala-se e respira fundo, e as pálpebras começam a tremer. Não sei o que a faz ficar assim, mas não quero que continue. Abraço-a, mas ela solta-se.

- Deixa. É melhor.

Olha o teto e fica calada alguns instantes.

- Eu não sei falar de sexo. Acho até que nem sei direito como é que faz.

Encaixa o copo entre as coxas e cruza as mãos nos seios, e a mancha por cima do esquerdo parece ainda maior e mais arroxeada.

- Tive dois homens na minha vida e só deitei com um deles, uma vez.

Fecha os olhos e respira fundo, e deixa cair as mãos nas coxas.

- Fora disso, sempre gozei sozinha. Naquela noite, lá no carro, você não viu, mas eu me masturbei. É isso que mais faço.

Respira fundo outra vez e faz uma pausa, e fixa os olhos no espelho.

- Quando já não agüento mais, me masturbo.

Tateia o cinzeiro, à procura do cigarro. Acendo um e dou-lho, mas ela não fuma.

- Tinha dezesseis anos quando tive o primeiro namorado.

Fecha os olhos e faz uma pausa, e recosta a cabeça na cabeceira da cama.

- Mas nunca gostei dele.

Cala-se e puxa uma tragada profunda, e sopra o fumo com força.

- Eu te disse que nunca tinha gozado debaixo de ninguém. E nunca gozei mesmo. Mas já deitei debaixo de um homem, uma vez. Tinha treze anos.

A cinza do cigarro cai na coxa, mas Andréa parece nem sentir.

- E foi péssimo.

Faz uma pausa e fixa os olhos no espelho, e é através dele que me olha.

- Foi meu pai.

As palavras estrondam no meu cérebro e levo algum tempo para assimilar o que escutei, e Andréa continua na mesma posição. Só os olhos estão cerrados e as lágrimas escorrem pelas faces. Não digo nada. Não sei o que dizer. Puxo-a para mim e abraço-a, e ela deixa cair a cabeça no meu peito. Não se mexe, nem soluça. Apenas chora.

 
 
 

Cunha de Leiradella
Casa das Leiras
São Paio de Brunhais
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