Não posso afirmar que Andréa esteja diferente. Mas que não está igual aos outros dias, disso eu tenho certeza. É a primeira vez que a vejo de saia e blusa, sem decote, e maquiada. E, talvez por isso, pareça diferente. Ou, então, sou eu que a vejo diferente, não sei. Seja como for, alguma coisa, hoje, destoa da Andréa que eu conheço.
Cheguei às sete em ponto e ela ainda não estava na calçada. Não chamei. A mãe poderia atender e eu não saberia recusar, se me convidasse para entrar. Mas não a conheço e não me sentiria à vontade. Acendi um cigarro e Andréa desceu pouco depois. Trazia uma rosa na mão e o cabelo preso com uma fita, e um crucifixo de prata com a corrente por cima da gola da blusa. Não gostei do batom, não gosto de batom, mas não disse nada. Se estava usando, alguma razão devia ter. Às vezes, eu também sentia necessidade de mudar. E também trocava de roupa. Só que nunca me senti melhor por causa disso. Joguei o cigarro pela janela e liguei o motor, e Andréa entrou no carro e beijou-me.
- Preocupa, não. Este batom não deixa marca.
Não respondo, ainda pensando no batom e na roupa diferente, e ela ajeita-se no assento.
- Vamos, hoje, pro Dona Derna?
Continuo calado, não conheço o Dona Derna, e ela coloca a rosa no painel.
- Não. Deixa. Vamos prá Casa dos Contos. Você gosta mais de lá.
Sentamos no salão, na mesa mais afastada, no fundo, junto da parede, e Andréa chamou um garçom e pediu um cardápio. Estranhei. Era a primeira vez que não sentávamos na varanda e era também a primeira vez que Andréa pedia um cardápio na Casa dos Contos. Não sei que comida Andréa vai escolher, mas já que está sendo uma noite diferente, escolho também um vinho diferente.
- Traz um Barolo.
Andréa pára de ler o cardápio e olha-me.
- Quê que é isso?
- É um vinho italiano.
- Oba. Adoro vinho italiano. Adoro mesmo.
Continua lendo o cardápio e pede estrogonofe de galinha e uma porção de batata frita com ketchup, como entrada. Não gosto de estrogonofe, nem de ketchup, mas não me importo. O importante é Andréa ficar satisfeita. O garçom anota o pedido e afasta-se, e Andréa pega na minha mão.
- Adoro batata frita com ketchup. Adoro mesmo. Adoro ketchup.
Pega a rosa e encosta-a nos lábios. O crucifixo brilha sobre o tecido preto da blusa e o rímel acentua a sombra escurecida das olheiras. Lembro-me da noite anterior e não me sinto bem. A culpa é minha se Andréa está, hoje, tão diferente. Ela nota o meu olhar e afasta a rosa dos lábios.
- Por quê que tá me olhando assim?
Não respondo e ela coloca a rosa na mesa e apoia o queixo na mão.
- Não me olha assim. Me deixa encabulada.
- Tou me lembrando de ontem.
Num gesto brusco, Andréa tira a mão da minha e espalma-a no peito, por baixo do seio direito. Penso que vai coçar e estendo o braço para impedir, mas ela não coça. Apenas deixa a mão espalmada em cima da blusa. Fica assim algum tempo e desfaz o laço da fita e solta o cabelo sobre os ombros. Guarda a fita na bolsa e debruça-se na mesa, e o crucifixo escorre pelos seios e encosta na toalha.
- Desculpa. Hoje eu não tou bem.
- Eu sei.
- Quê que você sabe?
Quero pedir-lhe perdão pelo que fiz ontem à noite, mas o tom agressivo da voz me assusta e bloqueia. Andréa endireita o corpo e olha-me fixamente.
- Diz. Quê que você sabe?
Continuo sem responder e ela pega a bolsa e tira o maço de cigarros e o isqueiro, e acende um. Puxa algumas tragadas, profundas e seguidas, e esmaga o cigarro no cinzeiro, e olha as paredes do salão. Parece assustada. Mas não pode estar assustada. A não ser que o que eu fiz a tenha magoado muito mais do que penso. Mas se for isso, então, acabou tudo. Andréa só aceitou as flores por aceitar e, daqui a pouco, vai levantar e vai embora. Sem saber o que fazer, penso, rapidamente, como poderei ainda desculpar-me, e o garçom traz as batatas fritas e o ketchup e o vinho, e Andréa, felizmente, se transforma e esquece o meu silêncio. Polvilha as batatas com sal e espalha ketchup, e concentra-se na comida.
- Não vai querer, não? Tão ótimas.
- Tou sem fome.
Bebo o meu vinho e encho o copo e bebo mais, e Andréa termina de comer.
- Adoro batata frita com ketchup. Adoro ketchup.
Sorri e pega a rosa e aspira o perfume, e encosta as pétalas nos lábios. Pego o copo e bebo mais um gole, e penso que o momento chegou.
- Sabe? Ontem...
As mãos de Andréa crispam-se e a rosa cai na mesa, e os olhos fixam-se nos meus. Olho o crucifixo encostado nos seios e lembro deles nus, e a garganta aperta e os ouvidos começam a zumbir.
- Eu não...
Calo-me. Sei o que quero dizer, mas não consigo falar. Tenho medo que as palavras não digam o que eu tenho que dizer e que Andréa se levante e vá embora. É um medo idiota, sei que é um medo completamente idiota, mas apavora-me, e a garganta aperta mais e os ouvidos são enxames de besouros. Fecho os olhos, e parece que escuto Andréa suspirar. Mas não escuto. Quem suspira sou eu. Abro os olhos e ela continua na mesma posição, e a imobilidade e o silêncio me assustam. Será que vai levantar e vai embora? Pego o cigarro e puxo uma tragada profunda e esmago-o no cinzeiro, e peço a Deus que me ajude.
- Sabe? Depois daquilo do carro...
Calo-me, sem saber mais o que dizer, e Andréa baixa a cabeça e olha a rosa, caída sobre a toalha.
- Eduardo, o que eu fiz...
Cala-se também e cobre o rosto com as mãos, e fica assim. Sei que está magoada e tem razão. O que ela fez não me dava direito de fazer o que eu fiz. Se estivesse no lugar dela eu também estaria magoado. Também teria saído do carro e também estaria esperando que me pedissem perdão. Quero tirar as mãos dela do rosto, para que me olhe e veja o quanto entendo aquela mágoa, e o garçom traz o estrogonofe. Não comemos, nem falamos, e o silêncio apavora-me. E se Andréa se levantar agora e for embora? Ainda estou pensando isto e Andréa já está de pé e sai correndo, atropelando mesas e cadeiras. Corro também, mas só a alcanço do outro lado da rua, já fazendo sinal para um táxi. Mando o motorista seguir e levo-a para o carro, e ela a joga-se no assento e bate a porta, sem falar. Piso no acelerador e os pneus cantam no asfalto, e não olho cruzamentos, nem sinais. Sigo reto e só paro no alto da Praça do Papa, as mãos retesadas e tremendo, e milhões de besouros zoando nos ouvidos. E um nó tão apertado na garganta que mal me deixa respirar.
- Quê que você quer, hem? Que eu peça perdão, é?
A voz de Andréa entra nos meus ouvidos como fogo e os besouros enlouquecem e aumentam a zoeira, e o nó da garganta aperta tanto que parece que vou morrer. Mas eu não quero, nem posso morrer. Não agora, com Andréa olhando para mim como se eu fosse um inimigo. Ou um carrasco. Finco as mãos no volante e reteso todos os músculos, e as palavras conseguem abrir caminho na garganta.
- Andréa, quem tem que pedir perdão não é você. Sou eu. Eu é que...
Calo-me, assustado com o espanto do rosto dela. Mas tenho que continuar. Se não continuar, Andréa logo lembrará do que aconteceu e não me deixará terminar.
- Eu não devia ter puxado o seu sutiã. O fato de você ter aberto a blusa...
Para meu espanto, Andréa nem me deixa terminar. Atira-se no meu colo e abraça-me, e ri às gargalhadas. Não sei por que Andréa ri, mas rio também. É bom rir, mesmo que não se saiba do que se ri. |