CUNHA DE LEIRADELLA

brandos costumes
(no país dos)

COMÉDIA EM 1 ACTO - Adaptação feita para a Associação Cultural da Juventude Povoense do Texto Manera, Doutor, Manera, Vencedor do Concurso Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte” 1984

PERSONAGENS 

Almeno. Entre quarenta e cinco e cinqüenta anos. Advogado. 

Inês. Entre quarenta e quarenta e cinco anos. Esposa de Almeno. 

Lita. Entre vinte e vinte e cinco anos. Filha de Almeno e Inês. Estudante universitária, na área de Saúde. Solteira. 

Olga. Entre sessenta e setenta anos. Mãe de Inês. Viúva. 

Maria. Entre trinta e trinta e cinco anos. Empregada da casa. Mora com os patrões. Solteira.

Picuinha . Entre trinta e trinta e cinco anos. Assaltante. Casado.

Firula. Entre vinte e cinco e trinta anos. Assaltante. Solteiro.

CENÁRIO ÚNICO

A ação passa-se na sala do apartamento da família. Móveis e decoração classe média típica. Entre os detalhes que o cenógrafo julgar necessários para compor o ambiente, não deverá faltar um interfone de parede.

ACTO ÚNICO

O interfone toca. Sentada no sofá, Olga, que tinha acabado de pegar o maço de cigarros, surpreende-se com o toque.

Olga - Quem será? Será o...

Lita (Que ia saindo, pára) - O Beto não é. Tá a viajar.

Almeno (A Inês, que vem entrando com um copo de água e uma caixa de comprimidos nas mãos) - Esse inútil ainda tem coragem de vir aqui? (A Lita.) - Eu já disse...

Lita (A Almeno) - O Beto nunca te pediu dinheiro nem emprego, ok? E não é inútil, não senhor. Tu é que...

O interfone volta a tocar. Olga, atenta ao interfone, guarda o maço de cigarros.

Inês (Cortando) - Lita!

Inês coloca o copo de água e a caixa de comprimidos em cima da mesa de centro.

Lita - É assim mesmo! Pro papá só serve quem diz amém com ele.

O interfone toca outra vez.

Inês - Maria, vê quem é.

Olga - Se calhar, é coisa urgente.

Almeno (Olhando o relógio de pulso) - A estas horas?

Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Está?

Lita - Ó papá, e coisa urgente tem horas?

Almeno - Maria, pergunta quem é.

Maria (No interfone) - Quem é?

Olga - Nesta casa, o que mais há é sabe-tudo. Só falta é acertar no euro milhões. O resto...

Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Quem?

Inês - Quem é, Maria?

Maria (No interfone) - Só um bocadinho. (A Inês.) Diz que...

Almeno (A Maria) - Cuidado! Não abras sem ver quem é. Agora, até cá na Póvoa há assaltos.

Inês - Pode ser uma visita, Almeno.

Almeno - Visitas? (Olhando o relógio de pulso) A esta hora?

Lita - E visitas...

Lita cala-se ao escutar o tom de espanto de Maria no interfone.

Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - O quê? Um...

Almeno - Ó Inês, a esta hora ninguém visita ninguém. É hora de jantar.

Maria (A Inês) - Diz que é um telegrama.

Almeno (A Inês) - Telegrama? Telegrama de quem? Eu não tou à espera de nenhum telegrama.

Lita - E telegrama espera-se, papá?

Almeno (A Maria, sentando-se) - Vê bem quem é.

Olga (Ao mesmo tempo) - Nesta casa espera-se de tudo.

Inês Mamã! (A Almeno.) - Pode ser alguma coisa importante.

Almeno - Que coisa importante, Inês? Se ainda fosse reunião do...

Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Só um bocadinho.

Lita - Ó papá, deixa lá o partido. Partidos nós já tamos todos.

Inês (Ao mesmo tempo, a Almeno) - Pode ser do escritório. Você não disse que o juiz...

Almeno (Cortando) - Inês, pelo amor de Deus, o juiz manda telegramas? Juiz manda prender. Quando manda.

Maria (No interfone) - Só um bocadinho. Só um bocadinho. (A Inês.) Diz que é urgente.

Olga (A Inês) - Se calhar, morreu a tia Micas.

Almeno (A Olga) - Lá tá a senhora a dizer asneiras.

Olga - Asneiras é...

Inês (Ao mesmo tempo) - Parece que é urgente, Almeno.

Lita - Mamã, desde quando telegrama não é urgente?

Maria - Abro, D. Inês?

Almeno (A Maria) - Não. Primeiro vê de onde é.

Lita - E telegrama se vê de onde é, papá?

Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - De onde é?

Olga (A Inês) - Se calhar, é da tia Micas. (A Lita.) Tenho quase a certeza que é da tia Micas. Ainda ontem sonhei com ela e com água parada. E sonhar com água parada...

Lita - Ó vó, pelo amor de Deus!

Maria (No interfone) - Só um bocadinho. (A Inês) Diz que é de fora.

Olga (A Inês) - É da tia Micas. Só pode ser. Água parada...

Almeno (A Olga) - A senhora e os seus sonhos.

Inês (A Almeno) - Se é de fora...

Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Só um bocadinho. Só um bocadinho, tá bem?

Olga (A Almeno, ao mesmo tempo) - São mais certos os meus sonhos do que as certezas de muita gente.

Lita - Ó vó! Calma!

Maria (A Inês, ao mesmo tempo) - Diz que, se não quiser receber, que vai embora.

Almeno (A Inês) - Mas de quem será esse telegrama? Do doutor Mafra não é. Se fosse reunião da distrital, ele telefonava.

Olga - É da tia Micas, tenho a certeza!

Inês - Mamã, se fosse da tia Micas...

Lita - Mamã, telegrama pode ser de qualquer um, merda!

Inês - Lita!

Almeno (A Inês) - Será que é mesmo dos correios? Hoje, não se pode acreditar em ninguém.

Lita - Ó papá, e telegrama vem de onde, hã?

Maria - (No interfone, ao mesmo tempo) É mesmo dos correios?

Almeno - Mas que merda!

Inês - Almeno!

Almeno - Não era pra perguntar. Era pra ver.

Maria (A Almeno) - Diz que é dos correios, sim senhor.

Olga (A Inês) - Só pode ser da tia Micas. Há quanto tempo é que a prima Ló diz que ela tá no vai-não-vai?

Inês - Mamã!

Lita (A Almeno) - Eu vou ver.

Maria (No interfone) - Só um bocadinho. (Lita levanta-se.) Só um bocadinho, que a menina vai ver.

Almeno (A Maria) - Mas que merda! Isso não era pra falar!

Lita (Na janela, a Almeno) - O carro é dos correios.

Almeno - Tens a certeza?

Lita - Papá, aquela corneta pintada vê-se a léguas. E são dois.

Almeno - Carros? Dois carros?

Lita - Carteiros, papá. Dois carteiros.

Almeno (A Inês) - Dois carteiros? Dois carteiros só pra um telegrama?

Lita (Sentando-se) - Papá, de noite até os carteiros têm medo. Depois que te tiraram da Câmara, não és o primeiro a dizer que só há gatunos por aí?

Almeno (Com ênfase) - Sou! E disso ninguém pode du...

Inês (A Almeno, cortando) - Almeno! (A Maria) Abre, Maria.

Maria (No interfone) - Abriu? É no quinto andar. (Coloca o interfone no gancho. A Inês.) Já tão a subir.

Almeno (A Inês) - De quem será o telegrama?

Maria pega o copo de água e a caixa de comprimidos e entra na cozinha.

Lita - Papá, telegrama pode ser de qualquer um!

Olga (A Lita) - Tenho a certeza que é da tia Micas. Só pode ser!

Almeno - A senhora sempre tem a certeza.

Olga - E tenho mesmo. Mas antes não tivesse.

Lita - Ó vó, outra vez!?!

Olga - Não fui eu que comecei.

Inês - Basta, mamã! A senhora já não se o que queria? Disse, não disse?

Olga - Não disse, não, minha filha. Não disse, mas, um dia, ainda vou dizer.

Almeno - Por que é que não diz agora?

Inês - Almeno!

Almeno - Sempre a ameaçar, a ameaçar, parece até lombriga, merda!

Inês - Almeno, olha os teus modos!

Olga (A Almeno, ao mesmo tempo) - Deixe estar que, um dia, ainda digo.

Lita - Calma, vó!

A campainha toca. Maria aparece na porta da cozinha. Almeno levanta-se.

Almeno (A Maria) - Deixa, que eu atendo. (Maria fecha a porta.) Quem é?

Homem (Voz off) - É o telegrama.

Almeno - Pra quem?

Lita - Ó papá, só pode ser pra nós, fogo!

Homem (Voz off, ao mesmo tempo) - Pró dono da casa.

Inês - Almeno, é pra você.

Olga (A Lita) - Queres apostar que é da tia Micas?

Lita - Ó vó! (A Almeno.) Abre lá, papá! Pode ser coisa séria.

Inês - Abre, Almeno.

Almeno abre a porta, mas deixa-a presa na corrente de segurança.

Homem (Voz off) - Bilhete de identidade, faz favor.

Almeno - Bilhete de identidade? Bilhete de identidade pra quê?

Homem (Voz off) - Pra ver se é mesmo o senhor.

Inês - Tá certo, Almeno.

Almeno tira a corrente de segurança. Dois homens empurram Almeno e entram. Um deles fecha a porta. Inês e Lita levantam-se, assustadas.

Almeno - Mas o que é isto!?!

Homem 1 - Casjequingue!

Almeno - Cas quê?

Homem 1 - Cas...

Homem 2 (Cortando, ao Homem 1) - Entrega!

Homem 1 (Entregando um impresso de telegrama a Almeno) - Faz favor!

Homem 2 (Ao mesmo tempo, apontando um revólver) - Chiu!

Olga - Ai, meu Deus!

Homem 2 Chiu! (Lita levanta-se. A Lita.) - Sente-se!

Inês e Lita sentam-se.

Olga - Eu sabia! Eu sabia!

Lita - Calma, vó! É só um assalto.

Almeno (A Olga, ao mesmo tempo) - A senhora... A senhora sabe sempre.

Homem 1 (A Olga e Lita) - Ó, não ouviu? É um casjequingue. E nós cá somo... (Aponta o outro homem.) Ele é o Picuinha e eu sou o Firula.

Almeno (Deixando cair o telegrama no chão) - Mas os senhores...

Picuinha Tudo calado! (Empurra Almeno com o revólver.) - Pra lá. Vamos!

Almeno senta-se.

Olga (A Lita, ao mesmo tempo) - Chama a guarda, Lita!

Inês - Mamã!

Lita (Apontando o revólver de Picuinha) - Ó vó, não tás a ver...

Picuinha - Calados, todos! Agora... (Firula faz gestos com a boca, como se falasse, mas não emite nenhum som.) O quê? (Firula continua com os mesmos gestos.) Tá o quê? (Firula continua com os mesmos gestos.) Fala, merda!

Firula - Ó Picu, tu não mandou calar todos?

Picuinha - Eu mandei calar, mas foi eles, porra!

Firula - Ai foi eles? Tá bem, tá bem. Eu pensei que era todos. Podemos começar?

Picuinha - Começa. (Firula ajeita as calças na cintura e pigarreia.) Anda, merda!

Firula (Sorrindo) - Boa noite, pessoal.

Picuinha - E é assim?

Firula - Então não é?

Picuinha - Ó, caralho, onde tá o...

Firula - Foda-se! (Tira o revólver do bolso e sorri.) Boa noite, pessoal. (Ninguém responde. A Picuinha.) Será que eu falei muito baixo, Picu?

Picuinha (A todos) - Ó pessoal, olha que o meu amigo é um gajo fixe e só quer fazer isto como manda a sapatilha, tá bem? (A Firula.) Então!?! (Firula ajeita as calças na cintura e pigarreia.) Vai, porra!

Firula (Sorrindo, mais alto) - Boa noite, pessoal. (Ninguém responde. A Picuinha.) Será que tá tudo surdo?

Picuinha - Surdo, o caralho! (Ameaça com o revólver) Que merda é esta? Aqui ninguém tem educação?

Almeno - Boa noite.

Picuinha - Isso, meu!

Inês - Boa noite.

Lita - Boa noite.

Picuinha - Muito bem! (A Firula.) Agora, vamos lá. (Almeno faz o gesto de se levantar. A Almeno.) Ó meu, onde é que...

Almeno senta-se.

Firula - Foda-se, Picu, assim não dá! (Aponta Olga.) Aquela ali, ó... Depois, diz que a gente é que não tem educação.

Picuinha - Ó Firu, cala-te!. (A Olga.) Ó senhora, que merda! (A Firula.) Vamo lá!

Firula (Sorrindo, mesmo tom, a Olga) - Boa noite. (Olga não responde. A Picuinha.) Assim não dá, Picu.

Picuinha (A Olga) - Ó dona, não tá a ver a educação do home, merda?

Almeno, por meio de gestos mudos, diz a Firula que Olga não escuta bem.

Firula (A Almeno, acenando com a cabeça) - Xacomigo! (Grita no ouvido de Olga.) Boa noite!

Olga - Sai, porco-sujo!

Firula Mas que ca... (Aponta Almeno.) - Foi o home que falou.

Olga (A Almeno, tentando levantar-se) - Eu não permito...

Picuinha (Obrigando Olga a sentar-se) - Ó, minha senhora, pelo amor de Deus!

Olga (Continuando) - ...que o senhor diga que eu sou surda. (A Picuinha.) Eu não sou surda, ouviu!?!

Inês - Mamã!

Almeno - A senhora e os seus telegramas da tia Micas.

Picuinha - Ó meu...

Olga (A Almeno) - O senhor não presta. Tudo lhe serve pra me achincalhar!

Firula (A Picuinha) - Achin o quê?

Picuinha - Essa passou-me ao lado. (A Olga.) Pra quê, o quê?

Olga - Achincalhar. Ou o senhor não sabe nem português?

Picuinha - Mas o que é isso!?! Eu nasci em Braga. Na rua de São Victor!

Olga - E daí? Eu no Porto.

Firula (A Olga) - Óqui, ó...

Almeno (A Picuinha) - Achincalhar, quer dizer, ridicularizar, humilhar, aviltar, chacotear, rebai...

Firula (A Almeno) - Cala essa boca! Ou pensa que a gente veio aqui pra ser vacalhado?

Almeno - Mas eu só queria...

Inês - Almeno!

Almeno - Mas eu só queria ajudar, Inês!

Firula - Ajudas assim, não! Ajudas assim, não, que tava era a vacalhar.

Picuinha (A Almeno) - Ó meu, o senhor é home de bem, a gente também é home de bem, vacalhação, não.

Almeno - Mas eu só tava...

Olga (A Almeno) - Bem feito!

Inês - Mamã!

Olga (A Inês) - Bem feito, sim! Sempre a cagar postas de pescada, que Deus me perdoe... Bem feito! Só é pena eu não poder falar agora.

Inês - Mamã, por favor!

Picuinha (A Inês) - Ó dona, pelo amor de Deus! (A Olga.) Se é só pra falar, a senhora fala. Fala, mas fala rapidinho. Fala rapidinho, que a gente ainda tem mais jequingues pra fazer.

Olga - Ai pode falar?

Firula - Nós somo home de educação, que é que pensa?

Olga - Ai é? Então, deixa comigo!

Inês -Mamã!

Picuinha (A Inês) - Ó dona, valha-me Deus, valha!

Lita (A Almeno, quase gritando) - Papá! (A Inês.) Mamã, olha como o papá tá a ficar roxo, roxo!

Inês - Ó Almeno...

Almeno - É a burrice da sua...

Olga (Cortando, a Inês) - Ai é assim? (A Almeno.) Pois agora é que eu vou falar mesmo!

Firula - Fala, dona. Fala, que a gente ainda tem mais jequingues pra fazer hoje.

Picuinha (A Olga) - Mas vai rapidinho, tá bem?

Almeno (A Picuinha) - Ela não tem nada pra falar.

Olga (A Almeno) - Ai não tenho? Não tenho?

Lita - Ai vó, deixa-te de fitas!

Almeno (A Picuinha, apontado Lita) - Eu não disse? (A Inês.) Eu bem sei o que ela precisava. (A Olga.) Agora, quem vai falar sou eu. Ou a senhora pensa que eu não sei dos seus podres? Hã?

Inês - Almeno!

Picuinha (A Inês) - Ó dona, puta que pariu!

Almeno (A Picuinha) - Eu sei, e sei muito bem! (A Inês.) Enquanto tu ficas aí a dar uma de boa filha, ai coitada da mamã, tão sozinha, tão calada... (A Picuinha) O filho do padeiro, o Ismael, ó, ó...

Olga - O senhor não pode...

Almeno - Ai não posso? (A Inês.) Tás a ver? Quem é que tem podres aqui dentro?

Olga - Mas, graças a Deus, eu não corto na casaca!

Almeno - Ai não corta? Inês, diz lá agora. Diz!

Inês - Mamã! Almeno! Por favor!

Almeno - Diz lá, Inês. Diz lá!

Inês - Almeno, pelo amor de Deus!

Almeno (A Olga) - Tá a ver? Falou? Falou o quê, hã?

Lita - Agora é que eu quero ver, avó!

Olga - Falei e repito! O senhor não presta! Não presta, nunca prestou e nunca vai prestar!

Firula - Valeu, dona! Gostei!

Almeno - Não presta!?! Eu presto e muito! A senhora tá na minha casa porque eu deixo!

Olga - Ai deixa?

Firula (A Olga) - Vai, vai! Chega-lhe!

Olga - E o que eu pago aqui dentro? Não vale nada?

Almeno - E a senhora paga o quê? A senhora paga é nada! A senhora não paga nada nem nunca pagou!

Olga - Ai não pago? Cretino!

Almeno - Cretino, não! Cretino, não, ouviu!?!

Inês - Mamã! Almeno!

Olga - Cretino, sim, e muito cretino! E pra onde é que vai a minha reforma? Quem é que paga a luz, quem é que paga o telefone, quem é que paga a...

Almeno (Cortando) - Cretino, não! E, além do mais, isso foi um acordo que a gente fez.

Inês - Almeno, pelo amor de Deus!

Picuinha (A Inês) - Ai, ai, ai, ai , ai! (A Almeno.) Vai, meu!

Lita (A Picuinha) - Gostei. (A Almeno.) Dá-lhe, velho! (A Olga.) Vó, agora eu quero ver!

Almeno (A Picuinha) - E acordo é acordo, não é? (A Olga.) Acordo é acordo, ouviu, sua... Ou só porque, agora, que tem visitas, tá-se praí a armar?

Picuinha - Calma, meu. Calma, que a gente não tem nada com isso.

Almeno - Tá certo, o negócio é particular e os senhores não têm nada a ver. (A Olga.) Se eu fosse a senhora, sabe o que eu fazia?

Olga - E fazia o quê?

Inês - Almeno! Mamã!

Picuinha (A Inês) - Não escutou que o negócio é particular, não?

Almeno - Ele tá certo, Inês. O negócio é particular. (A Olga.) Se eu fosse à senhora, sabe o que eu fazia?

Olga - E fazia o quê? Nunca fez nada! Nem sequer...

Inês - Mamã, assim também não!?!

Lita (A Inês) - Relaxa, mamã!

Inês - Lita!

Firula (A Picuinha, apontando Lita) - Boa, gostei.

Picuinha - Firu, não comeces. O negócio é deles, tá?

Firula - Mas já não tava... Pensei que...

Picuinha - Cala a boca e fica na tua. Briga de rico, cuidado.

Almeno (A Lita) - Onde é que eu ia?

Lita - Ias...

Firula (A Almeno) - Ia numa de negócio particular. Se tu fosse ela e ela fosse tu...

Picuinha (A Firula) - Ó Firu, não te metas. Já te avisei, porra!

Firula (Apontando Almeno) - Mas foi ele que perguntou.

Picuinha (Apontando Lita) - Mas perguntou pra ela.

Almeno (A Inês) - Onde é que eu ia mesmo? Ai já sei! (A Olga.) Se eu fosse à senhora, sabe o que eu fazia? Sabe o que eu fazia mesmo? Saía desta casa amanhã de manhã!

Olga - Amanhã? Eu saio e é já!

Firula (A Olga) - Não sai, não! E já, jamé!

Picuinha (A Olga) - Sai depois, tá ok?

Olga (A Picuinha) - Ok. (A Almeno.) Mas que eu saio, eu saio!

Almeno - Sai nada!

Olga - Ai não saio!?! (Levanta-se.) Olhe como eu saio!

Picuinha (A Olga) - Sente-se! (A Almeno.) Mas que merda, ó meu!

Almeno - Sai nada!

Firula (A Almeno) - Ó, caralho, então ela não disse que saía?

Almeno - Sai nada! Eu já vi esse filme, ó...

Olga (Levantando-se. num gesto brusco) - Seu... Seu...

Lita - Força, vó! Vai! Vai!

Picuinha (Obrigando Olga a sentar-se) - Depois, a senhora sai, tá?

Olga - Tá. Mas que eu saio, eu saio!

Almeno (A Picuinha) - Sai nada! Isso é que nem cão rafeiro. Só ladra.

Olga (Apoplética) - O... O... O...

Lita - Ó vó! Gaguejar agora!?!

Inês (A Almeno) - Tás a ver o que fizeste?

Almeno - Eu? Ela é que diz que sai e eu é que...

Inês (Levantando-se e apontando Olga, ainda ofegante) - Até tá a passar mal.

Almeno - Tá a passar mal? Quem tá a passar mal sou eu! E há muitos e muitos anos!

Inês (Com ênfase) - Se a mamã for embora, eu também vou!

Almeno - Ai é? Pois já vais tarde!

Inês - Desgraçado!

Almeno (A Picuinha) - Tá a ver? Que família de merda!

Picuinha - Ó, quem disse que eu já vi esse filme?

Lita (Ao mesmo tempo) - Força, velho! Força, que eu tou contigo!

Inês - Tás nada! Filha minha, se eu sair, sai comigo, e ponto final!

Lita - Mas nem morta! Sem mesada, daqui não saio, daqui ninguém me tira.

Inês - Sai, sim! Sai, e sai já!

Firula - Que merda é esta!?! Sai já, o caralho! Daqui ninguém sai!

Olga (A Almeno) - Tá a ver, seu desgraçado? Tá a ver o que é que você fez? Infeliz!

Olga levanta-se e tenta bater em Almeno. Almeno revida. Inês atraca-se com Almeno. Lita tenta separá-los. Tumulto. Picuinha dá um murro na mesa.

Picuinha - Chega, porra! Pára já essa merda! (A briga pára.) Mas que porra de casa é esta? Ninguém tem educação, puta que pariu? (Silêncio constrangido. A família senta-se. A Firula.) Tás a ver? Tás a ver isto? E, depois, dizem que a educação vem do berço. Vem do berço, mas é o caralho, é que vem!?!

Almeno (Levantando-se, enérgico) - Os senhores não podem...

Picuinha - Qual é, meu? Não foi nós que armou o cagalhão aqui dentro, tá bem?

Firula - Tá certo! Nós chegou aqui numa boa e começamos numa boa. (A Inês.) Foi ou não foi numa boa?

Picuinha (A Firula) - Eles brigam que nem cães e nós é somo marginal. (A Almeno.) Educação é coisa muito séria. Ou pensa que educação é o quê?

Almeno (Sentando-se, solene) - Os senhores têm razão e peço que nos desculpem. Na verdade, todos nós nos excedemos.

Firula (A Almeno) - Vacalhação, não! Vacalhação, não!

Picuinha - Qual é, Firu? O home...

Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, porra!

Almeno - Mas eu não...

Firula - Excedemos é a sua mãe, tá bom? Nós chegou aqui numa boa, começamos numa boa e não vacalhamos ninguém.

Picuinha - Deixa de ser burro, pá! O home...

Firula - Vacalha também, não! Vacalha também, não, que eu fico fodido!

Picuinha - Que vacalha, o quê, pá! Não viste que o home tava era a pedir desculpa? Deixa de ser burro, pá!

Firula - Tás a ver? Tás a ver? Depois, diz que eu não avisei!

Picuinha (A Almeno) - O senhor desculpe, mas aqui o Firu...

Firula - Vacalhação, não! Tou-te a avisar!

Picuinha - Mas ninguém tá a vacalhar, Firu!

Firula - Tou-te a avisar! Põe-te a pau!

Picuinha - Tu é mesmo burro, pá!

Firula - Tás a ver? Tás a ver? Depois, diz que eu não te avisei!

Picuinha - Ó Firu...

Firula - Tu sabe muito bem que eu sou home com educação.

Picuinha - Bah, vamos mas é trabalhar.

Firula - É melhor, é! Mas se vacalhar outra vez, eu fodo-te! Tou-te a avisar!

Picuinha (A Almeno) - Tá a ver? Burrice chegou ali, ó...

Firula (Correndo para Picuinha) - Eu avisei-te, caralho!

Picuinha - Pára, porra! (Firula pára instantaneamente.) Vamos trabalhar ou não, caralho? (A Inês.) Onde tá a Maria?

Almeno (A Inês) - Tás a ver? Tás a ver? Essa nunca me enganou!

Inês - Mas, Almeno...

Almeno - Não ouviste? Até sabem o nome dela!

Firula (A Picuinha) - E não é Maria? (A Inês.) Que eu saiba, em casa de rico, as criadas são todas Marias. Maria disto, Maria daquilo, mas todas Marias. Aqui não é assim?

Inês (Solene) - Aqui é da família.

Lita (A Firula) - Mas chama-se Maria.

Almeno (A Inês) - Tu devias era tê-la despedido quando eu disse.

Inês - Mas tu nunca disseste, Almeno.

Firula (A Inês) - Ó...

Almeno - Disse, sim senhor!

Firula (A Almeno) - Ó...

Inês - Não disseste, não senhor!

Almeno - Claro que disse!

Picuinha (A Inês) - Desempata. Disse ou não disse?

Almeno (A Picuinha) - Disse, sim! E não foi só uma vez!

Lita (A Picuinha) - Não disse, não.

Picuinha (A Almeno) - Tá a ver? A menina diz que...

Lita (Continuando) - A mamã é que queria mandá-la embora.

Olga (A Picuinha) - A comida dela é uma porcaria.

Lita (Continuando) - Mas o papá é que nunca deixou.

Almeno - Eu nunca deixei? Mas o que é isso, Lita?

Lita Fogo! (A Picuinha.) - Sabe o que é que ele dizia? Inês, perfeito só Deus!

Picuinha - Deus do céu!

Almeno - Por favor, minha filha, não desmintas o teu pai.

Lita - Ai papá, e tu não desmentes até o dentista da mamã?

Olga - É isso mesmo. Ele nunca acreditou nas tuas cáries, minha filha. Diz que tu e o dr. Mendes, ó...

Inês - Mamã, por favor!

Olga - Pergunta-lhe! E é por culpa dele que...

Almeno (A Olga, cortando) - Minha culpa? Culpa de quê?

Olga - Quem foi que abriu a porta?

Almeno - E quem foi que disse que o telegrama era da tia Micas?

Inês - Mamã! Almeno!

Olga - O senhor não presta!

Almeno - A senhora não pode...

Olga - Posso, sim! Posso, sim! O senhor não presta mesmo!

Almeno (Começando a levantar-se) - A senhora...

Olga (A Picuinha, apontando Almeno) - Olhe! Olhe! Olhe!

Picuinha (A Almeno) - Mas que merda! O senhor não diz que é home com educação, porra!?!

Almeno (Sentando-se) - Foi ela que começou. Ou o senhor não viu?

Lita - Isso, velho! Força!

Picuinha (A Lita) - Ó, menina...

Firula (Ao mesmo tempo) - Picu.

Picuinha (Continuando) - ...assim, também não. (A Almeno) Com calma, meu, com calma!

Firula - Picu, porra! Vamos ao jequingue ou...

Picuinha (Cortando) - Porra, Firu, vai te catar!

Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, que eu fico fodido!

Picuinha - Ai Firu, vai à merda! (A Inês.) Onde tá a Maria?

Olga - Ela tá...

Firula (A Olga) - Qual é, dona! O Picu perguntou a ela.

Picuinha (A Inês, ao mesmo tempo) - Como é que é? Vai falar ou...

Inês - Ela tá na cozinha.

Firula - Tás a ver, Picu? (Põe as mãos nos quadris e imita Inês.) Ela tá na cozinha. Pobre é mesmo uma merda. Ou tá na choça ou na cozinha.

Picuinha (A Inês) - Chama por ela. Chama por ela, que nós já tamos atrasados. (Inês levanta-se.) Quieta!

Inês (Sentando-se) - Mas eu só ia...

Firula - Não ia, não!

Picuinha - Chama daí mesmo.

Almeno - Que é que há, mulher? Chama lá!

Olga (A Almeno) - Machão! (A Picuinha.) É um infeliz.

Almeno (A Olga, levantando-se) - Olhe aqui, sua... Eu não admito...

Picuinha (Obrigando Almeno a sentar-se) - Porra, meu!

Firula (A Picuinha) - Olha, só! Ele não ademete...

Picuinha - Ademete? Admite, seu burro!

Firula - Isso, não! Vacalhação, não!

Picuinha - Porra, Firu, qual é? Foi a brincar, merda!

Firula - A brincar ou não, eu não ademeto...

Picuinha - Admi...

Firula (Avançando para Picuinha) - Eu avisei-te! Eu avisei-te, caralho!

Picuinha (Gritando) - Pára, porra! (Firula pára instantaneamente.) Vamos trabalhar.

Firula - É melhor, é! (A Inês.) Como é? Onde tá a Maria?

Inês (Chamando) - Maria! Ó, Maria!

Almeno - Mais alto, mulher!

Olga (A Picuinha, apontando Almeno) - Olhe! Olhe! Olhe!

Picuinha - Ó, meu, o senhor é home inteligente, nós somo burro...

Firula - Nã! Nã! Burro...

Picuinha - Cala essa boca, merda!

Firula - Burro, não! Burro, não, que eu já avisei! (Empurra Picuinha e grita.) Burro, não! Burro, não!

Picuinha - Cala essa boca ou queres acordar todo mundo, seu animal?

Firula (Mesmos gestos e mesmo tom de voz) - Eu já avisei! Eu já avisei!

Picuinha - Firu, porra! (Gritando.) Fecha a matraca e senta-te!

Firula - Mas eu avisei!

Picuinha - Senta-te!

Firula - Mas tu sabe que...

Picuinha - Senta-te, caralho! (Firula senta-se. A Inês.) Onde tá a Maria? Ela é surda ou quê?

Inês - Deve tar no quarto.

Olga (A Picuinha, apontando Almeno) - Deve tar a...

Lita (Cortando, a Picuinha) - Quer que eu a vá chamar?

Picuinha - Vai. Mas cuidado. Nada de gritos.

Lita levanta-se e abre a porta da cozinha.

Lita - Maria! (Maria não responde. Picuinha, gesticulando, manda chamar mais alto) - Tás a ouvir, Maria? Anda cá!

Maria (Voz off) - Já vou!

Lita (Sentando-se) - Diz que já vem.

Picuinha - Atenção! Quando ela entrar, quero todo mundo quieto e calado. (Encosta-se na parede, junto da porta da cozinha, com o revólver na mão.) Ó Firu, então como é?

Firula - Tu não mandou todos ficar...

Picuinha - Ficar o quê, merda! Pega o fugante e anda cá! (Firula levanta-se e coloca-se do outro lado da porta, com o revólver apontado na direção de Picuinha.) Vira-me essa merda pra lá!

Firula - Mas se eu virar, a Maria...

Picuinha - Chiu!

Maria (Entrando, a Lita) - A menina chamou?

Firula (A Maria, apontando o revólver) - Cala essa boca!

Maria (Olhando Picuinha e Firula) - Que é que vocês tão a fazer aqui?

Almeno (A Inês) - Eu não disse!?! Tás a ver como ela os conhece?

Maria - D. Inês, a senhora deixou estes...

Almeno - Tás a ver, Inês? Tás a ver!?!

Maria (A Firula, apontado o revólver) - Vira essa coisa pra lá.

Picuinha - Escuta aqui, ó santinha.

Maria - Quem disse que eu sou santinha? O meu nome é Maria, tás a ouvir?

Almeno - Maria, esses teus amigos...

Maria - Meus amigos? Eu não tenho amigos destes. (A Firula, apontando o revólver.) Eu já disse pra virar essa coisa pra lá!

Firula - Ó santinha...

Maria - Eu já disse que o meu nome é Maria, ouviu, seu badameco?

Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, que...

Picuinha (A Firula) - Fecha a matraca!

Firula - Mas ela tá a vacalhar!

Picuinha - Nem mais um pio! (A Maria.) Ó Maria...

Inês - Maria, é um assalto!

Maria - Assalto? Isto? A senhora tá a brincar, D. Inês.

Lita - Não, tá, não, Maria. Eles são assaltantes a sério.

Maria - A sério? (Aponta Picuinha e Firula) Estes? Coitados!

Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Tás a ver isto?

Maria (A Firula) - Tás a ver o quê, seu badameco?

Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, tou-te a avisar! (A Picuinha.) Tás a ver? Depois, diz que eu é que sou choné!

Picuinha - Ó, Maria...

Maria (A Lita) - Se isto é assaltante...

Lita - São assaltantes, sim.

Firula - Jequeringues, se faz favor.

Lita - Jé...

Maria -  Vagabundos, menina!

Firula (A Maria) - Vagabundos, o caralho! (A Picuinha.) Tás a ver?

Picuinha - Firu, porra!

Firula - Foi ela que começou. Ela é que tá a vacalhar.

Picuinha - Vacalhar, nada! (A Maria.) Ó, Maria, por que é que tu, em vez de te armares aos cágados, não ajudas a tua gente?

Almeno (A Inês) - Viste? Eu não disse? Se calhar, ela conhece-os, ó...

Firula (A Maria) - É Isso mesmo! Tu devia era ajudar a nós!

Maria (A Picuinha) - Minha gente? Vê mas é se te enxergas, sua besta!

Firula - Vê lá como é que falas! Besta, não! Besta é a tua mãe!

Picuinha (A Firula) - Fecha a matraca, já disse!

Firula - Ela é que vacalhou. (Aponta Olga.) Eu não sou surdo como aquela.

Olga - Eu não sou surda, seu...

Firula (Apontando Almeno) - Mas o home...

Olga (Apontando Almeno) - Aquele?

Picuinha (A Olga) - Puta que pariu! Cale-me essa boca! (A Firula.) E tu, senta-te!

Firula (Apontando Maria) - Mas ela chamou-te besta.

Picuinha - Ai porra, chamou foi a ti!

Firula - A mim? (Avança para Maria.) Chamaste-me besta, desgraçada?

Picuinha (Segurando Firula) - Pára com essa merda, porra!

Firula - A mim ninguém vacalha.

Picuinha - Fecha a matraca, caralho!

Firula - Vacalha, não!

Olga (A Firula) - Nem pode!

Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Tás a ver? (Aponta Olga.) Até ela tá comigo!

Picuinha - Cala a boca, já disse! (A Olga.) E a senhora, dona, quer levar uma porrada ou quê?

Maria - E quem vai dar?

Picuinha - Eu.

Firula (A Picuinha) - Xacomigo. Eu dou.

Picuinha - Cala essa boca, caralho! (A Maria.) Eu é que dou.

Maria - Até quero ver!

Olga - Maria, pelo amor de Deus, olha a minha coluna!

Almeno (A Picuinha) - Devia era dar mesmo.

Olga (A Almeno) - O senhor não presta!

Almeno (A Picuinha, apontando Olga) - Foi ela que começou!

Picuinha (A Olga) - Ó dona...

Inês (Ao mesmo tempo) - Maria...

Maria - Não há perigo, D. Inês. Isto aqui é cão sem dono.

Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Tás a ver isto? Chamou de cão!

Picuinha - Ó, Maria, mais respeito, porra! Vamos tratar isto com educação. Nós ainda não vacalhou ninguém, pois não? (Empurra Maria.) Senta-te lá. Senta.

Maria - Não me empurres!

Firula (A Picuinha) - Dá-lhe uma puta. (Aponta Olga.) Não ias dar naquela? Dá nessa.

Maria - E quem é home aqui pra me dar?

Almeno - Maria, por favor, estes senhores...

Picuinha - Ó, Maria, não tás a ver a educação do home?

Maria - Home? E onde tá o home?

Almeno (A Maria) - Mais respeito, sim? Isto aqui não é casa da sogra!

Olga - Eu não lhe permito...

Almeno - A senhora sabe que mais? Cala a boca e vai à merda.

Inês - Almeno!

Olga - Calo, se eu quiser. E não vou à merda. À merda vai você!

Inês - Mamã!

Olga (Continuando) - E a Maria tá mais que certa. O senhor nunca foi homem!

Almeno - Alto lá!

Inês - Mamã, a senhora não pode...

Olga - Claro que eu posso! E alto lá, nada!

Almeno - Ofensas, não! Ofensas, não!

Olga (A Picuinha) - Posso falar?

Picuinha - Fala. Fala, mas rápido. (Aponta o relógio de pulso.) Rápido, que a gente tá, ó...

Olga (A Inês) - Há quanto tempo esse homem não te procura?

Almeno - A senhora não pode...

Lita (Batendo palmas) - Isso, vó! Dá-lhe!

Inês Lita! (A Olga.) - Mamã, a senhora não pode...

Lita - Ó mamã, relaxa!

Olga (A Inês) - Mas foste tu que me disseste, minha filha!

Inês - Mas não era prá senhora contar!

Lita - E o que é que tem, mamã? Lembras-te do Tó, aquele namorado que eu deixei? Deixei por isso mesmo. Era uma no mês e sabe Deus. (A Almeno.) Então, velho, não dás mais no couro, hã?

Inês - Lita!

Almeno (Ao mesmo tempo) - Ó minha filha, isso é coisa que se diga?

Lita - Ai papá! Coisa que se diga é outra coisa! (A Olga.) Vai, vó!

Firula (A Maria, apontando Almeno) - Quer dizer que ele...

Almeno (A Firula) - O senhor não pode...

Firula - Hã, hã, não sou eu que não posso! Eu posso e muito. Dou três por noite.

Picuinha - Porra, Firu, tem senhoras aqui, caralho!

Firula (Desmunhecando) - Mas não sou eu que sou, ó...

Maria (A Picuinha, apontando Firula) - Ele tá certo.

Almeno - Maria, eu proíbo-te...

Firula (A Picuinha) - Ele, o quê?

Almeno levanta-se e avança para Maria.

Picuinha (Gritando) - Segura o home, Firu!

Firula segura Almeno.

Maria (A Firula) - Deixa! Deixa-o vir! Ou pensas que eu tenho medo? Eu não tenho medo de frouxo!

Almeno - Eu proíbo-te...

Firula (A Almeno) - Ó, sapudo, tu não proebe nada, tás a ouvir? Senta-te. Senta-te, caralho!. (Almeno senta-se.) Proebe. Proebe merda nenhuma!

Picuinha (A Firula) - Que proebe o quê, seu animal?

Firula (Avançando para Picuinha) - Eu já te avisei! Eu já te avisei, caralho!

Maria (Gritando) - Pára!

Firula pára instantaneamente.

Picuinha - Ó Firu!

Firula - Quem mandou parar? (A Picuinha.) Foi...

Picuinha - Eu? Tu és burro?

Firula (Avançando para Picuinha) - Vacalha, não! Vacalha, não, que eu já te avisei!

Maria (Gritando) - Pára!

Firula pára instantaneamente.

Lita - Dá-lhe, Maria!

Firula (A Lita) - Ó...

Maria (A Firula) - Cala a boca! (A Inês.) E a senhora, D. Inês, quer saber, mesmo, o marido que tem? Hã?

Almeno (Levantando-se) - Cala-te, Maria! Eu proíbo...

Firula - Tu proe...

Maria - Cala essa boca, já disse!

Lita - Vai, Maria! Força!

Olga - Força, Maria! Vai, tou contigo!

Inês - Lita! Mamã!

Almeno avança para Maria. Picuinha segura-o e obriga-o a sentar-se.

Picuinha - Ó, meu, parece que tens pregos no cu, merda!

Almeno - Maria...

Lita - Vai, Maria!

Olga - Vai! Força!

Firula (A Maria) - Vai logo, ó...

Maria (A Firula) - Cala essa boca! (A Inês.) D. Inês...

Almeno - Maria...

Picuinha - Ó meu! (A Maria.) Vais ou não vais?

Maria - Cala-te também! (A Inês) Logo que eu vim trabalhar práqui, toda a santa noite esse home me procurava no quarto.

Olga (Batendo palmas) - Eu sabia! Eu sabia!

Inês - Mamã!

Maria - Mas não dava nada. Mole, mole, tesão, nenhum.

Almeno (Cortando, gritando) - É mentira, Inês!

Maria - É tão verdade, D. Inês, que eu até sei que ele tem um sinal abaixo do umbigo e outro nas entrepernas. Tem ou não tem?

Olga (Batendo palmas) - Eu sabia! Eu sabia!

Almeno (Com menos força) - É mentira, Inês!

Maria - Tem os sinais ou não tem, D. Inês?

Lita (A Maria) - Tem, sim! Tem, sim! O do umbigo eu vi!

Inês Lita! (A Almeno.) - Desgraçado! (Dá-lhe uma bofetada.) E nunca mais apareças à minha frente, tás a ouvir?

Lita sobe na cadeira e bate palmas.

Picuinha (A Lita) - Ó, menina, assim também já é vacalhar demais! Sente-se. (Lita senta-se.) Isso.

Olga (A Inês) - Viste? Viste? Por isso é que esse desgraçado dizia que perfeito só Deus. (Aponta Maria.) E olha que ela nem sequer sabe cozinhar.

Maria (A Olga) - Eu não sei cozinhar? Quem é que...

Picuinha - Calma, Maria! Calma, que a senhora só...

Maria - Não te metas! (A Olga.) Quem é que disse que eu não sei cozinhar? Hã? (Pega uma cadeira e bate com ela no chão, cadenciando as sílabas.) EU-QUE-RO-SA-BER-QUEM-É-QUE-NÃO-SA-BE-CO-ZI-NHAR!

Picuinha - Ó, Maria, barulho, assim, também não, merda?

Maria (Continuando, mesmos gestos e tom) - EU-QUE-RO-SA-BER!

Picuinha - Porra, Firu, cala-me essa gaja!

Firula tenta segurar Maria. Ela bate-lhe com a perna da cadeira na canela.

Firula - Ai! (Pulando num pé só.) Ai! Ai! Ai! (Senta-se no chão e esfrega a canela.) Ai! Ai!

Maria - Queres mais? Anda! Anda, se tu és home!

Picuinha (A Maria) - Calou!

Maria - Anda tu também. Anda!

Picuinha (Gritando a plenos pulmões) - Calou, caralho!

Maria (Largando a cadeira) - Isso, burro! Berra. Berra, que os vizinhos são moucos! (Picuinha cala-se e fica rígido.) Burro!

Picuinha (Como se estivesse gritando, mas sem emitir nenhum som) - Cala essa boca, senão eu mato um, caralho! Firu! (Firula não percebe.) Firu! Ó Firu!

Maria (A Firula) - Olha o teu amigo ali a chamar.

Firula (A Picuinha) - Que tás a falar? Pareces um palhaço.

Picuinha (Gritando) - Palhaço, não, caralho! Palhaço, não!

Firula - Então deixa-te de palhaçadas. Quem faz palhaçada é palhaço.

Picuinha - Se me chamas outra vez palhaço, eu fodo-te!

Firula - levanta-se.

Maria (A Firula) - Isso, eu quero ver!

Inês - Maria, pelo amor de Deus!

Maria - Ai D. Inês, o que é isso? São dois rafeiros. Só ladram. (A Firula.) Então? Ficas-te?

Firula - Ficar o quê? Não há nada pra ficar.

Maria - Ai não há? (Aponta Picuinha.) Então ele diz que te fode e tu deixas?

Firula - Foda-se, é verdade! (Agarra Picuinha.) Repete lá isso! Repete, se tu és home!

Picuinha (Soltando-se) - Eu? Eu não disse nada, porra!

Maria - Disseste, sim!

Picuinha - Não disse, não!

Firula (A Maria) - Ele disse que não disse.

Maria - Tu és mesmo palhaço, hã?

Firula - Não comeces! Não comeces, senão...

Maria - Começo, sim! Ele diz que te fode e tu, ó... Como é? Ficas-te?

Firula - Tu fodes mesmo, Picu?

Picuinha - Ó pá, tu não tás a ver que ela só quer atiçar?

Firula - Mas tu fodes ou não fodes?

Maria - Fode, sim!

Picuinha - Não fodo, não!

Firula (A Maria) - Ele diz que não fode.

Picuinha (A Firula) - É tramóia dela, seu burro!

Maria (A Firula) - Tás a ver? E ainda te chama burro!

Firula (A Picuinha, gritando) - Eu não sou burro!

Firula atraca-se com Picuinha. Brigam. Almeno tenta apanhar os revólveres. Maria é mais rápida e pega-os.

Lita (Batendo palmas, a Picuinha) - Dá-lhe! Dá-lhe!

Almeno (Sentando-se, a Lita) - Não te metas. A briga não é nossa.

Olga (A Almeno) - Deixe a menina, não tamos numa ditadura. E a briga é de nós todos, sim senhor! Tamos numa democracia socialista, ouviu?

Almeno - A senhora cale essa boca.

Olga - Calo nada! Calo nada! Quer ver? (Sobe na cadeira e bate palmas. A Picuinha.) Dá-lhe! Dá-lhe!

Almeno levanta-se e agarra Olga. Tira-a de cima da cadeira. Inês levanta-se também e segura Almeno. Os três se engalfinham. Lita sobe na cadeira e bate palmas.

Lita - Dá-lhe, mamã! Isso, vó! Chega-lhe, velho!

Maria olha as duas brigas durante algum tempo, e, de repente, dá um murro na mesa.

Maria (Gritando) - Parou! (As brigas param.) Isto tem de ser uma casa de respeito. (Todos se sentam, em silêncio.) Numa casa sem respeito eu não trabalho.

Picuinha - Ó Maria...

Firula - Nós só tava a aquecer. Não tava, Picu?

Inês - Maria...

Lita - Ó Maria, não nos deixes!

Maria - Vou pensar.

Picuinha - Ó Maria, ó...

Maria entra na cozinha, levando os revólveres.

Inês (A Almeno) - Vês? Vês o que fizeste?

Almeno - E que é que eu fiz? Ela é que é amiga deles e eu é que...

Picuinha - Mais respeitinho, ó meu! A Maria é uma pessoa cem por cento, ouviu?

Olga (A Almeno) - Se o senhor fosse homem de verdade...

Lita - A Maria tava satisfeita e não ia embora, não é, avó?

Picuinha (De repente, gritando) - Puta que pariu, Firu!

Firula - Vacalha, não! Vacalha, não, que...

Picuinha - Vacalha, o caralho! Vai mas é buscar a Maria, senão ela...

Firula (Sem se mexer) - Porra, é verdade!

Picuinha - Corre, caralho! (Firula corre e entra na cozinha.) Pega os fugantes, ouviste?

Um tempo. Picuinha, meio sem jeito, tenta arrumar um pouco a sala.

Picuinha (A Inês) - A senhora desculpe, mas não foi por mal. Nós não vinha pra isto. Nós vinha era pra fazer um trabalhino limpo, bem feito, sem gritaria, numa boa, tá a ver? E eu fico até fodido porque, mesmo que nós não tenha culpa, é por estas e por outras que todos dizem mal da nossa profissão. Que nós não presta, que nós não tem moral, que nós dá mau exemplo, que nós é marginal, que nós devia era tar morto e tudo mais. Mas nós só leva a culpa, a senhora viu, não viu? Nós vem aqui numa boa e o que é que acontece?

Olga (Apontando Almeno) - Se não fosse aquele...

Almeno - E a senhora? Não fez nada?

Picuinha (A Almeno) - Ó meu! (A Inês.) Mas eu garanto à senhora que não volta a acontecer. Não volta mesmo. Quando nós voltar, eu faço questão que a senhora veja o que é um trabalhinho bem feito. Eu garanto à senhora que a senhora não vai se arrepender, a senhora vai ver.

Inês - E vão voltar, é?

Picuinha (Acenando com a cabeça) - Mas só prá senhora ver o que é um trabalhinho bem feito, tá certo?

Lita (A Picuinha) - Eu adorei! Só me assustei quando ele te pegou à batatada.

Almeno - Lita!

Lita - Ó papá, tu também apanhaste da avó!

Picuinha (A Almeno) - Deixa, meu, deixa que a menina sabe o que diz. (A Lita.) Mas não faz mal. Hoje o Firu chegou-me, amanhã chego eu a ele e fica tudo numa boa. O Firu é meio assim, mas, no fundo, no fundo, é bom rapaz. Olhe, um coração... Se tiver que apagar um, apaga logo, só pra não ver sofrimento. (Procura cigarros nos bolsos da camisa.) Olhe, não parece, mas é gente finíssima.

Lita (Percebendo os gestos de Picuinha) - Quer um cigarro?

Picuinha - E pode-se fumar aqui?

Lita - Hum, hum. (A Almeno) Papá, um cigarro. (Almeno faz de conta que não escuta.) Papá!

Contrariado, Almeno pega o maço e oferece. Picuinha tira um cigarro.

Picuinha (A Lita, apontando Almeno) - Pode-se fumar mesmo?

Lita - Claro que se pode fumar.

Picuinha - Mas não tem uma lei que...

Lita (Apontando Almeno) - Qual lei, qual quê! Ele é advogado.

Picuinha - Ai então a guarda... (A Almeno, apontando o cigarro.) Pode dar-me...

Lita - Papá, isqueiro!

Contrariado, Almeno acende o cigarro de Picuinha. Picuinha senta-se.

Lita - Vais nessa, vó?

Olga - Ai se não vou!

Contrariado, Almeno oferece o maço e Olga pega um cigarro. Almeno acende-o.

Lita - Mamã?

Inês - Quero, sim.

Almeno - Mas tu não fumas, Inês!

Inês - Mas, agora, eu quero!

Contrariado, Almeno oferece o maço e Inês pega um cigarro. Almeno acende-o.

Lita - Ó velho, e eu? Esqueceste-te?

Contrariado, Almeno oferece o maço e Lita pega um cigarro. Almeno acende-o.

Lita - E o teu? Ficas assim?

Almeno acende um cigarro e todos fumam, em silêncio. Um tempo. De repente, Picuinha levanta-se, corre para a porta da cozinha e abre-a.

Picuinha (Gritando) - Firu! Ó Firu! (A Inês.) A senhora desculpe, mas é que o Firu pode tar...

Firula (Voz off, rouca) - O que é que é?

Olga (A Lita) - Ai coitado. O que será que ele tem?

Picuinha - Precisas...

Firula (Voz off, ainda mais rouca) - Não!

Lita (Ao mesmo tempo, a Olga) - Ó vó, o que é que achas que ele pode ter!?!

Picuinha fecha a porta da cozinha, senta-se e apaga o cigarro no cinzeiro. Todos fazem o mesmo.

Picuinha (A Almeno) - O senhor é home, o senhor sabe como é que é... O Firu... (Almeno, num gesto repentino, levanta-se.) Ó meu, que é que foi? O Firu só...

Almeno - Assim, também já é demais, Inês!

Lita - Ó papá, relax!

Olga - O senhor é o único que não pode falar nada.

Almeno - Como não posso? Isto é a minha casa e é uma casa de família!

Olga - Foi uma casa de família!

Inês - Almeno! Mamã!

Almeno - Inês, nem dá pra acreditar. Eu tou na minha casa, eles ofendem-me, fumam os meus cigarros, comem a minha criada...

Inês - Almeno!

Olga (Ao mesmo tempo) - Pois é, se o senhor soubesse comê-la...

Inês - Mamã!

Picuinha (Ao mesmo tempo) - Ó meu, que é que se passa?

Lita - Calma, papá! Se a violação é inevitável, pronto, relaxa e goza.

Inês - Lita, minha filha!

Almeno (A Picuinha) - A minha casa é uma casa de respeito.

Olga - Foi uma casa de respeito!

Inês - Mamã!

Picuinha (A Almeno) - Ó meu, corta essa! Quem foi o primeiro a querer provar a febra da Maria, hã? (A Olga.) Não foi ele?

Olga - Esse é um fingido! Nem come nem palita os dentes.

Almeno avança para Olga. Picuinha segura-o.

Picuinha - Calma, meu!

Picuinha obriga Almeno a sentar-se. Depois senta-se e todos se ajeitam nas cadeiras. Um tempo. Apesar do silêncio, começa a notar-se uma certa descontração no ambiente.

Lita (A Picuinha) - Que cena é essa de ser ladrão? Dá pra viver ou... Tou a perguntar porque no outro dia foi à faculdade um tipo fazer uma palestra sobre violência, drogas, pobreza, essas coisas. Mas da maneira que o gajo falou, notava-se que não entendia nada, nadinha. Era rico.

Picuinha - Olhe, menina, pra viver dá. Mas a concorrência é muito grande. Toda a gente rouba. Governo, políticos, bancos, é tanto roubo, menina, que quem menos rouba somos nós. (Pequena pausa. Ajeita-se na cadeira.) Um dos maiores problemas da nossa profissão, é não termos acesso à insaider tradingue...

Lita - Insai...

Picuinha (Cortando) - Informação privilegiada. Pra roubar legalmente. Mas uma pessoa vinga-se. Ai vinga. Já que não temos insaider tradingue, pegamos de carjequingue, que é roubo violento de carro, pegamos de casjequingue, que é roubo violento de casa, pegamos de banjequingue, que é roubo violento de banco, pegamos de boljequingue, que é roubo violento de bolsa, pegamos de tudo que é jequingue. E lá vamos indo, cantando e rindo, como diz o outro

Lita - Ai então foi por isso que vocês começaram com aquele casjequingue.

Picuinha - Foi, foi.

Lita - Eu até pensei que isso fosse língua lá do leste, ou coisa assim, e que vocês fossem...

Picuinha (Cortando) - Nada. Nós somos portugueses, menina. Mas, olhe, se a gente falar só português, hoje em dia, ninguém nos entende. Nesta casa até que nos entenderam. Porque, menina, ele há casas por aí que até o gato mia inglês e o cão ladra americano.

Lita - Não sabia.

Picuinha  - Ai há, há. Menina, as coisas tão de tal maneira que, muitas vezes, até passamos vergonha. Se a gente gritar assalto, todo mundo ri. E de maneira que, agora, nós só vamos de jequingues. E a inveja? Todo mundo morre de inveja. Eu vejo na minha profissão. A menina sabe por que é que a polícia descobre o que descobre? Porque se alguém faz um bom trabalho, logo os invejosos denunciam. Isto é uma tristeza, menina.

Lita - Mas essa vida de assaltante, pelo menos, não tem a ver com emoção, aventura, essas coisas, ou é uma chatice igual à nossa?

Picuinha - Olhe, menina, no fundo, no fundo, tudo é chatice.

Lita - Mas não tem perigos, tiros...

Picuinha - Ai tem. Às vezes, tem.

Lita - Cadeia...

Picuinha - Ai a choça faz parte. E merdação, menina, merdação toda a gente tem. (Aponta Almeno.) Ele não se amerda no tribunal? Nós amerda nos jequingues. É igual. (A Olga) A senhora nem magina o trabalho que deu descobrir o nome dele, ver se era só um apartamento por andar, dar um carjequingue no carro dos correios e pegar o impresso do telegrama. E pra quê? Diga. Pra quê? (Faz um gesto largo.) Pra isto?

Olga - É. A vida tá ruim pra todos.

Lita - Mas dá pra desenrascar, não dá? Quer dizer, umas pelas outras...

Picuinha - É. Umas pelas outras dá. Mas olhe, chapa ganha, chapa gasta. Só no supermercado a minha Rosa deixa os olhos da cara. E, isto, sem falar na renda, na farmácia, na roupa...

Lita - Mas não há essas de curtes, snifes (faz o gesto) prá veia, essas cenas?

Picuinha - Menina, dar uma passa num charro, quem não dá?

Lita - Isso é. Às vezes, há horas...

Almeno - Lita!

Inês - Minha filha!

Olga (A Almeno e Inês) - Deixem a menina! Ou nunca ouviram dizer que charro até cura o cancro?

Lita Vó! (A Picuinha) - Mas quer dizer que...

Inês começa se mexendo na cadeira, olhando a porta do quarto. Almeno observa-a.

Picuinha - Olhe, menina, um charrinho, isso até há. Agora, curtes, snifes, prá veia, essas cenas, só mesmo quem tem dinheiro. Só rico é que pode pagar. Agora, família igual a esta, briga, vacalhação, merdação, um a foder o outro, isso é tudo igual. Escrito e escarrado. Só não é preto no branco, porque nós grita na rua, de graça, e vocês paga pra gritar nos consultório, a menina percebeu?

Inês, de repente, levanta-se. Almeno levanta-se também e força-a a sentar-se.

Almeno - Não!

Inês (Debatendo-se) - Deixa-me!

Picuinha - Ó meu!

Almeno - Não vais!

Inês (Soltando-se) - Vou, sim!

Lita - Mamã! Que bicho é que te mordeu?

Inês - Eu quero...

Almeno (Segurando Inês e tapando-lhe a boca) - Não queres, não!

Picuinha - Porra, meu, o que é que é isso? Onde tá a educação, merda?

Inês solta-se e levanta-se. Almeno força-a a sentar-se.

Almeno - Porra, Inês!

Lita - Papá, o que é isso!?!

Olga (Levantando-se e avançando para Almeno) - Desgraçado! (Dá uma bofetada em Almeno.) Larga a minha filha, seu desgraçado!

Almeno (Atracando-se com Olga) - Cala essa boca, sua velha! Bruxa!

Olga (Gritando) - Socorro! Assassino!

A porta da cozinha abre e Firula entra, correndo, ainda puxando as calças na cintura.

Firula - O que é que foi, Picu? É a guarda, caralho?

Picuinha - Qual guarda, qual o quê!?! Não tás a ver ali o home?

Firula - Passou-se? (Firula acena com a cabeça.) Dá uma puta e pronto.

Picuinha avança para Almeno, que larga Olga.

Olga (Recompondo-se) - Violador!

Inês (A Lita) - Eu não aguento mais.

Almeno - Aguentas! Aguentas, sim!

Lita (Ao mesmo tempo) - Mas o que é que foi, mamã?

Inês - Eu quero...

Almeno (Avançando para Inês) - Não queres, não! Não queres, não!

Picuinha - Mas que merda! (A Firula.) Firu, segura o raio do home.

Firula agarra Almeno pelo pescoço.

Almeno (Debatendo-se e gritando) - Não queres, não! Não queres, não!

Picuinha - Porra, Firu, segura-o bem!

Firula - Xacomigo! (Aperta o pescoço de Almeno até ele mal poder respirar.) Tá bem assim? (Almeno debate-se com fúria.) Tá bem assim, merda?

Picuinha - Tá. Mas segura-o!

Firula - Xacomigo!

Lita (A Inês) - O que é que tu queres, mamã?

Inês - Eu quero ir no quarto de banho!

Almeno debata-se com tanta força, que quase se solta.

Almeno - Não queres, não! Não queres, não!

Picuinha - Porra, Firu! Tu és home ou quê, merda?

Firula aperta o pescoço de Almeno, que fica sem ar.

Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Sou muito home!

Olga (Tentando bater em Almeno) - Canalha! Sádico!

Picuinha (Afastando Olga) - Assim, também já é demais.

Inês corre e entra no quarto.

Picuinha (Correndo atrás de Inês) - Guenta aí, Firu! Segura o home!

Almeno debate-se, mas Firula imobiliza-o.

Olga (A Almeno) - Homem desnaturado!

Lita - Ó papá, até pareces maluco!

Almeno debate-se com fúria.

Firula - Olha que eu dou-te uma puta!

Olga (A Almeno) - Criminoso! (A Firula.) Dá-lhe! Dá-lhe mesmo!

Firula (A Almeno) - Tás a ver? Depois, não te queixes!

Inês grita no quarto e Almeno quase se solta.

Almeno (A Lita) - Tás a ver? Tás a ver a tua mãe? Eu sabia!

Firula imobiliza Almeno e Inês grita de novo. Olga e Lita levantam-se.

Olga (Gritando) - Queres ajuda, minha filha?

Inês (Voz off, rouca) - Não!

Almeno consegue soltar-se e corre para o quarto. Firula corre atrás e agarra-o.

Firula - Porra, meu! Vê se te atinas!

Inês grita outra vez. Um grito longo, relaxado.

Lita (Sentando-se) - Senta-te, vó. A mamã abriu as comportas.

Almeno e Firula rolam pelo chão, embolados.

Lita - Coitado do papá. Já não dá mais no couro.

Olga - Nunca deu.

Lita - Nunca?

Olga - Quer dizer, uma vez parece que deu. Pelo menos, tu tás cá.

Almeno consegue soltar-se, corre para o quarto e tenta abrir a porta.

Firula (Correndo atrás de Almeno, gritando) - Picu! (Agarra Almeno.) Ó Picu, caba logo, que o home tá-se a passar!

A porta da cozinha abre e Maria entra.

Maria (A Firula)  - Mas que porra de merda é esta, que já nem se pode ver telenovela?

Almeno (Apontando Firula) - Foi ele que...

Firula (Largando Almeno) - Foi eu, não!

Lita (A Maria) - Foi a mamã.

Maria - O que é que ela tem?

Lita - Tinha!

A porta do quarto abre e Picuinha entra.

Almeno (A Maria, apontando Picuinha) - Esse homem é um devasso!

Picuinha - Eu? (A Maria.) Maria...

Firula (Ao mesmo tempo, a Almeno) - Vacalha, não! Vacalha, não que senão...

Maria (Gritando) - Calem a boca! Todos!

Almeno (Apontando Picuinha) - Maria, esse homem...

Maria - Cale a boca, não ouviu?

A porta do quarto abre e Inês entra.

Maria - A senhora tá bem, D. Inês?

Inês Eu? Ai Maria, tou no céu!

Almeno (Ao mesmo tempo) - Eu sabia, Inês! Eu sabia!

Inês - Se sabia, por que é que não soube? Soubesse!

Maria (A Inês) - E tão a brigar por causa disso, D. Inês!?!

Inês (Apontando Almeno) - Ele é que tá a brigar. Eu tou ótima!

Almeno - Inês, eu não admito...

Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Agora é ele que não ademete.

Almeno (A Firula) - Cala a boca, sua besta!

Firula (Avançando para Almeno) - Vacalhação, não! Vacalhação...

Maria (Gritando) - Sentem-se todos, porra! (A Inês.) A senhora tá mesmo bem, D. Inês?

Inês - Ai Maria, tou mais do que bem. Lavei a alma!

Maria - Tá a ver, Dr. Almeno? Quem o manda não entender de almas?

Olga (A Maria) - Esse homem só entende de maldades.

Almeno - E a senhora entende de quê? O Ismael que o diga.

Olga - Homem sem moral! Canalha!

Inês - Almeno, cala essa boca! Mamã!

Lita - Guenta, velho! Dá-lhe, vó!

Olga - Dou mesmo! (Grita.) Homem sem moral! Canalha!

Picuinha (A Firula) - Puta que o pariu! Que puta de barraca!

Firula - Vambora, Picu! Vambora, que deste mato não sai cachorro, caralho!

Picuinha - Não é cachorro que sai do mato, seu burro, é coelho.

Firula - Não comeces! Não comeces, que eu já avisei!

Maria (A Picuinha e a Firula) - Calem a boca!

Picuinha - Ó, Maria...

Maria - Cala a boca, já disse!

Picuinha - É que nós já tamos de saída. Ainda temos um lojequingue...

Maria - Vais-te calar ou não?

Olga começa escorregando na cadeira.

Lita (Gritando) - Vó!

Inês (Ao mesmo tempo) - Mamã!

Maria (Ao mesmo tempo) - D. Olga! (Segura Olga e senta-a.) O que é que a senhora tem?

Olga - Eu também tenho alma, Maria.

Maria - Não me diga que a senhora...

Olga - Claro que eu digo! (Agarra Picuinha.) Eu também quero lavar a alma!

Picuinha (Tentando afastar Olga) - O que é que é isso? Chega pra lá! Foda-se!

Lita - Lava, vó! Pega, pega no sabão!

Picuinha (Soltando-se e correndo para junto de Maria) - Ó, Maria, pelo amor de Deus, safa-me!

Olga corre atrás de Picuinha e os dois ficam correndo em volta da mesa.

Olga - Eu também tenho alma! Eu também tenho alma!

Picuinha - Firu, segura a velha! Segura a velha, Firu!

Firula (A Maria, apontando Picuinha) - Passou-se?

Picuinha - Ó Maria, pelo amor de Deus!

Olga (Gritando) - Eu vou lavar! Eu vou lavar!

Lita (Subindo na mesa e batendo palmas) - Lava! Lava mesmo, vó!

Olga (Mesmo tom) - Eu vou lavar! Eu vou lavar!

Inês - Lava, mamã! (Sobe na mesa e bate palmas) Salta nele! Lava tudo!

Lita - Anda, papá!

Inês - Vem, Almeno! Deixa de ser careta, merda!

Firula - Ó meu, não vai proveitar?

Maria - Ou vai agora ou nunca.

Almeno - tem uma leve hesitação, mas levanta-se, corre e apanha o telegrama no chão, junto da porta. Olga agarra Picuinha, arrasta-o para o quarto e fecha a porta.

Picuinha (Voz off, gritando) - Socorro! Ó da guarda! Chama a guarda, Firu!

Almeno sobe na mesa e abraça Inês e Lita. Maria e Firula abraçam-se também.

Todos (Gritando, em coro, Almeno agitando o telegrama) - Ó mar salgado, quanto do teu sal são correios de Portugal! Ó mar salgado, quanto do teu sal são correios de Portugal!

ENQUANTO APAGA A LUZ EM RESISTÊNCIA

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