Olga -
Quem será? Será o...
Lita (Que ia saindo, pára) - O Beto não é. Tá a viajar.
Almeno (A Inês, que vem entrando com um copo de água e uma caixa de
comprimidos nas mãos) - Esse inútil ainda tem coragem de vir aqui? (A Lita.) - Eu já disse...
Lita (A Almeno) - O Beto nunca te pediu dinheiro nem emprego, ok? E
não é inútil, não senhor. Tu é que...
O interfone volta a tocar. Olga, atenta ao interfone, guarda o maço
de cigarros.
Inês (Cortando) - Lita!
Inês coloca o copo de água e a caixa de comprimidos em cima da mesa
de centro.
Lita - É assim mesmo! Pro papá só serve quem diz amém com ele.
O interfone toca outra vez.
Inês - Maria, vê quem é.
Olga - Se calhar, é coisa urgente.
Almeno (Olhando o relógio de pulso) - A estas horas?
Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Está?
Lita - Ó papá, e coisa urgente tem horas?
Almeno - Maria, pergunta quem é.
Maria (No interfone) - Quem é?
Olga - Nesta casa, o que mais há é sabe-tudo. Só falta é acertar no
euro milhões. O resto...
Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Quem?
Inês - Quem é, Maria?
Maria (No interfone) - Só um bocadinho. (A Inês.) Diz que...
Almeno (A Maria) - Cuidado! Não abras sem ver quem é. Agora, até cá
na Póvoa há assaltos.
Inês - Pode ser uma visita, Almeno.
Almeno - Visitas? (Olhando o relógio de pulso) A esta hora?
Lita - E visitas...
Lita cala-se ao escutar o tom de espanto de Maria no interfone.
Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - O quê? Um...
Almeno - Ó Inês, a esta hora ninguém visita ninguém. É hora de
jantar.
Maria (A Inês) - Diz que é um telegrama.
Almeno (A Inês) - Telegrama? Telegrama de quem? Eu não tou à espera
de nenhum telegrama.
Lita - E telegrama espera-se, papá?
Almeno (A Maria, sentando-se) - Vê bem quem é.
Olga (Ao mesmo tempo) - Nesta casa espera-se de tudo.
Inês Mamã! (A Almeno.) - Pode ser alguma coisa importante.
Almeno - Que coisa importante, Inês? Se ainda fosse reunião do...
Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Só um bocadinho.
Lita - Ó papá, deixa lá o partido. Partidos nós já tamos todos.
Inês (Ao mesmo tempo, a Almeno) - Pode ser do escritório. Você não
disse que o juiz...
Almeno (Cortando) - Inês, pelo amor de Deus, o juiz manda
telegramas? Juiz manda prender. Quando manda.
Maria (No interfone) - Só um bocadinho. Só um bocadinho. (A Inês.)
Diz que é urgente.
Olga (A Inês) - Se calhar, morreu a tia Micas.
Almeno (A Olga) - Lá tá a senhora a dizer asneiras.
Olga - Asneiras é...
Inês (Ao mesmo tempo) - Parece que é urgente, Almeno.
Lita - Mamã, desde quando telegrama não é urgente?
Maria - Abro, D. Inês?
Almeno (A Maria) - Não. Primeiro vê de onde é.
Lita - E telegrama se vê de onde é, papá?
Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - De onde é?
Olga (A Inês) - Se calhar, é da tia Micas. (A Lita.) Tenho quase a
certeza que é da tia Micas. Ainda ontem sonhei com ela e com água
parada. E sonhar com água parada...
Lita - Ó vó, pelo amor de Deus!
Maria (No interfone) - Só um bocadinho. (A Inês) Diz que é de fora.
Olga (A Inês) - É da tia Micas. Só pode ser. Água parada...
Almeno (A Olga) - A senhora e os seus sonhos.
Inês (A Almeno) - Se é de fora...
Maria (No interfone, ao mesmo tempo) - Só um bocadinho. Só um
bocadinho, tá bem?
Olga (A Almeno, ao mesmo tempo) - São mais certos os meus sonhos do
que as certezas de muita gente.
Lita - Ó vó! Calma!
Maria (A Inês, ao mesmo tempo) - Diz que, se não quiser receber, que
vai embora.
Almeno (A Inês) - Mas de quem será esse telegrama? Do doutor Mafra não
é. Se fosse reunião da distrital, ele telefonava.
Olga - É da tia Micas, tenho a certeza!
Inês - Mamã, se fosse da tia Micas...
Lita - Mamã, telegrama pode ser de qualquer um, merda!
Inês - Lita!
Almeno (A Inês) - Será que é mesmo dos correios? Hoje, não se pode
acreditar em ninguém.
Lita - Ó papá, e telegrama vem de onde, hã?
Maria - (No interfone, ao mesmo tempo) É mesmo dos correios?
Almeno - Mas que merda!
Inês - Almeno!
Almeno - Não era pra perguntar. Era pra ver.
Maria (A Almeno) - Diz que é dos correios, sim senhor.
Olga (A Inês) - Só pode ser da tia Micas. Há quanto tempo é que a
prima Ló diz que ela tá no vai-não-vai?
Inês - Mamã!
Lita (A Almeno) - Eu vou ver.
Maria (No interfone) - Só um bocadinho. (Lita levanta-se.) Só um
bocadinho, que a menina vai ver.
Almeno (A Maria) - Mas que merda! Isso não era pra falar!
Lita (Na janela, a Almeno) - O carro é dos correios.
Almeno - Tens a certeza?
Lita - Papá, aquela corneta pintada vê-se a léguas. E são dois.
Almeno - Carros? Dois carros?
Lita - Carteiros, papá. Dois carteiros.
Almeno (A Inês) - Dois carteiros? Dois carteiros só pra um telegrama?
Lita (Sentando-se) - Papá, de noite até os carteiros têm medo. Depois
que te tiraram da Câmara, não és o primeiro a dizer que só há
gatunos por aí?
Almeno (Com ênfase) - Sou! E disso ninguém pode du...
Inês (A Almeno, cortando) - Almeno! (A Maria) Abre, Maria.
Maria (No interfone) - Abriu? É no quinto andar. (Coloca o interfone
no gancho. A Inês.) Já tão a subir.
Almeno (A Inês) - De quem será o telegrama?
Maria pega o copo de água e a caixa de comprimidos e entra na
cozinha.
Lita - Papá, telegrama pode ser de qualquer um!
Olga (A Lita) - Tenho a certeza que é da tia Micas. Só pode ser!
Almeno - A senhora sempre tem a certeza.
Olga - E tenho mesmo. Mas antes não tivesse.
Lita - Ó vó, outra vez!?!
Olga - Não fui eu que comecei.
Inês - Basta, mamã! A senhora já não se o que queria? Disse, não
disse?
Olga - Não disse, não, minha filha. Não disse, mas, um dia, ainda vou
dizer.
Almeno - Por que é que não diz agora?
Inês - Almeno!
Almeno - Sempre a ameaçar, a ameaçar, parece até lombriga, merda!
Inês - Almeno, olha os teus modos!
Olga (A Almeno, ao mesmo tempo) - Deixe estar que, um dia, ainda digo.
Lita - Calma, vó!
A campainha toca. Maria aparece na porta da cozinha. Almeno
levanta-se.
Almeno (A Maria) - Deixa, que eu atendo. (Maria fecha a porta.) Quem
é?
Homem (Voz off) - É o telegrama.
Almeno - Pra quem?
Lita - Ó papá, só pode ser pra nós, fogo!
Homem (Voz off, ao mesmo tempo) - Pró dono da casa.
Inês - Almeno, é pra você.
Olga (A Lita) - Queres apostar que é da tia Micas?
Lita - Ó vó! (A Almeno.) Abre lá, papá! Pode ser coisa séria.
Inês - Abre, Almeno.
Almeno abre a porta, mas deixa-a presa na corrente de segurança.
Homem (Voz off) - Bilhete de identidade, faz favor.
Almeno - Bilhete de identidade? Bilhete de identidade pra quê?
Homem (Voz off) - Pra ver se é mesmo o senhor.
Inês - Tá certo, Almeno.
Almeno tira a corrente de segurança. Dois homens empurram Almeno e
entram. Um deles fecha a porta. Inês e Lita levantam-se, assustadas.
Almeno - Mas o que é isto!?!
Homem 1 - Casjequingue!
Almeno - Cas quê?
Homem 1 - Cas...
Homem 2 (Cortando, ao Homem 1) - Entrega!
Homem 1 (Entregando um impresso de telegrama a Almeno) - Faz favor!
Homem 2 (Ao mesmo tempo, apontando um revólver) - Chiu!
Olga - Ai, meu Deus!
Homem 2 Chiu! (Lita levanta-se. A Lita.) - Sente-se!
Inês e Lita sentam-se.
Olga - Eu sabia! Eu sabia!
Lita - Calma, vó! É só um assalto.
Almeno (A Olga, ao mesmo tempo) - A senhora... A senhora sabe sempre.
Homem 1 (A Olga e Lita) - Ó, não ouviu? É um casjequingue. E nós cá
somo... (Aponta o outro homem.) Ele é o Picuinha e eu sou o Firula.
Almeno (Deixando cair o telegrama no chão) - Mas os senhores...
Picuinha Tudo calado! (Empurra Almeno com o revólver.) - Pra lá.
Vamos!
Almeno senta-se.
Olga (A Lita, ao mesmo tempo) - Chama a guarda, Lita!
Inês - Mamã!
Lita (Apontando o revólver de Picuinha) - Ó vó, não tás a ver...
Picuinha - Calados, todos! Agora... (Firula faz gestos com a boca,
como se falasse, mas não emite nenhum som.) O quê? (Firula continua
com os mesmos gestos.) Tá o quê? (Firula continua com os mesmos
gestos.) Fala, merda!
Firula - Ó Picu, tu não mandou calar todos?
Picuinha - Eu mandei calar, mas foi eles, porra!
Firula - Ai foi eles? Tá bem, tá bem. Eu pensei que era todos. Podemos
começar?
Picuinha - Começa. (Firula ajeita as calças na cintura e pigarreia.)
Anda, merda!
Firula (Sorrindo) - Boa noite, pessoal.
Picuinha - E é assim?
Firula - Então não é?
Picuinha - Ó, caralho, onde tá o...
Firula - Foda-se! (Tira o revólver do bolso e sorri.) Boa noite,
pessoal. (Ninguém responde. A Picuinha.) Será que eu falei muito
baixo, Picu?
Picuinha (A todos) - Ó pessoal, olha que o meu amigo é um gajo fixe e
só quer fazer isto como manda a sapatilha, tá bem? (A Firula.)
Então!?! (Firula ajeita as calças na cintura e pigarreia.) Vai,
porra!
Firula (Sorrindo, mais alto) - Boa noite, pessoal. (Ninguém responde.
A Picuinha.) Será que tá tudo surdo?
Picuinha - Surdo, o caralho! (Ameaça com o revólver) Que merda é esta?
Aqui ninguém tem educação?
Almeno - Boa noite.
Picuinha - Isso, meu!
Inês - Boa noite.
Lita - Boa noite.
Picuinha - Muito bem! (A Firula.) Agora, vamos lá. (Almeno faz o gesto
de se levantar. A Almeno.) Ó meu, onde é que...
Almeno senta-se.
Firula - Foda-se, Picu, assim não dá! (Aponta Olga.) Aquela ali, ó...
Depois, diz que a gente é que não tem educação.
Picuinha - Ó Firu, cala-te!. (A Olga.) Ó senhora, que merda! (A Firula.)
Vamo lá!
Firula (Sorrindo, mesmo tom, a Olga) - Boa noite. (Olga não responde.
A Picuinha.) Assim não dá, Picu.
Picuinha (A Olga) - Ó dona, não tá a ver a educação do home, merda?
Almeno, por meio de gestos mudos, diz a Firula que Olga não escuta
bem.
Firula (A Almeno, acenando com a cabeça) - Xacomigo! (Grita no ouvido
de Olga.) Boa noite!
Olga - Sai, porco-sujo!
Firula Mas que ca... (Aponta Almeno.) - Foi o home que falou.
Olga (A Almeno, tentando levantar-se) - Eu não permito...
Picuinha (Obrigando Olga a sentar-se) - Ó, minha senhora, pelo amor de
Deus!
Olga (Continuando) - ...que o senhor diga que eu sou surda. (A
Picuinha.) Eu não sou surda, ouviu!?!
Inês - Mamã!
Almeno - A senhora e os seus telegramas da tia Micas.
Picuinha - Ó meu...
Olga (A Almeno) - O senhor não presta. Tudo lhe serve pra me
achincalhar!
Firula (A Picuinha) - Achin o quê?
Picuinha - Essa passou-me ao lado. (A Olga.) Pra quê, o quê?
Olga - Achincalhar. Ou o senhor não sabe nem português?
Picuinha - Mas o que é isso!?! Eu nasci em Braga. Na rua de São
Victor!
Olga - E daí? Eu no Porto.
Firula (A Olga) - Óqui, ó...
Almeno (A Picuinha) - Achincalhar, quer dizer, ridicularizar,
humilhar, aviltar, chacotear, rebai...
Firula (A Almeno) - Cala essa boca! Ou pensa que a gente veio aqui pra
ser vacalhado?
Almeno - Mas eu só queria...
Inês - Almeno!
Almeno - Mas eu só queria ajudar, Inês!
Firula - Ajudas assim, não! Ajudas assim, não, que tava era a vacalhar.
Picuinha (A Almeno) - Ó meu, o senhor é home de bem, a gente também é
home de bem, vacalhação, não.
Almeno - Mas eu só tava...
Olga (A Almeno) - Bem feito!
Inês - Mamã!
Olga (A Inês) - Bem feito, sim! Sempre a cagar postas de pescada, que
Deus me perdoe... Bem feito! Só é pena eu não poder falar agora.
Inês - Mamã, por favor!
Picuinha (A Inês) - Ó dona, pelo amor de Deus! (A Olga.) Se é só pra
falar, a senhora fala. Fala, mas fala rapidinho. Fala rapidinho, que
a gente ainda tem mais jequingues pra fazer.
Olga - Ai pode falar?
Firula - Nós somo home de educação, que é que pensa?
Olga - Ai é? Então, deixa comigo!
Inês -Mamã!
Picuinha (A Inês) - Ó dona, valha-me Deus, valha!
Lita (A Almeno, quase gritando) - Papá! (A Inês.) Mamã, olha como o
papá tá a ficar roxo, roxo!
Inês - Ó Almeno...
Almeno - É a burrice da sua...
Olga (Cortando, a Inês) - Ai é assim? (A Almeno.) Pois agora é que eu
vou falar mesmo!
Firula - Fala, dona. Fala, que a gente ainda tem mais jequingues pra
fazer hoje.
Picuinha (A Olga) - Mas vai rapidinho, tá bem?
Almeno (A Picuinha) - Ela não tem nada pra falar.
Olga (A Almeno) - Ai não tenho? Não tenho?
Lita - Ai vó, deixa-te de fitas!
Almeno (A Picuinha, apontado Lita) - Eu não disse? (A Inês.) Eu bem
sei o que ela precisava. (A Olga.) Agora, quem vai falar sou eu. Ou
a senhora pensa que eu não sei dos seus podres? Hã?
Inês - Almeno!
Picuinha (A Inês) - Ó dona, puta que pariu!
Almeno (A Picuinha) - Eu sei, e sei muito bem! (A Inês.) Enquanto tu
ficas aí a dar uma de boa filha, ai coitada da mamã, tão sozinha,
tão calada... (A Picuinha) O filho do padeiro, o Ismael, ó, ó...
Olga - O senhor não pode...
Almeno - Ai não posso? (A Inês.) Tás a ver? Quem é que tem podres aqui
dentro?
Olga - Mas, graças a Deus, eu não corto na casaca!
Almeno - Ai não corta? Inês, diz lá agora. Diz!
Inês - Mamã! Almeno! Por favor!
Almeno - Diz lá, Inês. Diz lá!
Inês - Almeno, pelo amor de Deus!
Almeno (A Olga) - Tá a ver? Falou? Falou o quê, hã?
Lita - Agora é que eu quero ver, avó!
Olga - Falei e repito! O senhor não presta! Não presta, nunca prestou
e nunca vai prestar!
Firula - Valeu, dona! Gostei!
Almeno - Não presta!?! Eu presto e muito! A senhora tá na minha casa
porque eu deixo!
Olga - Ai deixa?
Firula (A Olga) - Vai, vai! Chega-lhe!
Olga - E o que eu pago aqui dentro? Não vale nada?
Almeno - E a senhora paga o quê? A senhora paga é nada! A senhora não
paga nada nem nunca pagou!
Olga - Ai não pago? Cretino!
Almeno - Cretino, não! Cretino, não, ouviu!?!
Inês - Mamã! Almeno!
Olga - Cretino, sim, e muito cretino! E pra onde é que vai a minha
reforma? Quem é que paga a luz, quem é que paga o telefone, quem é
que paga a...
Almeno (Cortando) - Cretino, não! E, além do mais, isso foi um acordo
que a gente fez.
Inês - Almeno, pelo amor de Deus!
Picuinha (A Inês) - Ai, ai, ai, ai , ai! (A Almeno.) Vai, meu!
Lita (A Picuinha) - Gostei. (A Almeno.) Dá-lhe, velho! (A Olga.) Vó,
agora eu quero ver!
Almeno (A Picuinha) - E acordo é acordo, não é? (A Olga.) Acordo é
acordo, ouviu, sua... Ou só porque, agora, que tem visitas, tá-se
praí a armar?
Picuinha - Calma, meu. Calma, que a gente não tem nada com isso.
Almeno - Tá certo, o negócio é particular e os senhores não têm nada a
ver. (A Olga.) Se eu fosse a senhora, sabe o que eu fazia?
Olga - E fazia o quê?
Inês - Almeno! Mamã!
Picuinha (A Inês) - Não escutou que o negócio é particular, não?
Almeno - Ele tá certo, Inês. O negócio é particular. (A Olga.) Se eu
fosse à senhora, sabe o que eu fazia?
Olga - E fazia o quê? Nunca fez nada! Nem sequer...
Inês - Mamã, assim também não!?!
Lita (A Inês) - Relaxa, mamã!
Inês - Lita!
Firula (A Picuinha, apontando Lita) - Boa, gostei.
Picuinha - Firu, não comeces. O negócio é deles, tá?
Firula - Mas já não tava... Pensei que...
Picuinha - Cala a boca e fica na tua. Briga de rico, cuidado.
Almeno (A Lita) - Onde é que eu ia?
Lita - Ias...
Firula (A Almeno) - Ia numa de negócio particular. Se tu fosse ela e
ela fosse tu...
Picuinha (A Firula) - Ó Firu, não te metas. Já te avisei, porra!
Firula (Apontando Almeno) - Mas foi ele que perguntou.
Picuinha (Apontando Lita) - Mas perguntou pra ela.
Almeno (A Inês) - Onde é que eu ia mesmo? Ai já sei! (A Olga.) Se eu
fosse à senhora, sabe o que eu fazia? Sabe o que eu fazia mesmo?
Saía desta casa amanhã de manhã!
Olga - Amanhã? Eu saio e é já!
Firula (A Olga) - Não sai, não! E já, jamé!
Picuinha (A Olga) - Sai depois, tá ok?
Olga (A Picuinha) - Ok. (A Almeno.) Mas que eu saio, eu saio!
Almeno - Sai nada!
Olga - Ai não saio!?! (Levanta-se.) Olhe como eu saio!
Picuinha (A Olga) - Sente-se! (A Almeno.) Mas que merda, ó meu!
Almeno - Sai nada!
Firula (A Almeno) - Ó, caralho, então ela não disse que saía?
Almeno - Sai nada! Eu já vi esse filme, ó...
Olga (Levantando-se. num gesto brusco) - Seu... Seu...
Lita - Força, vó! Vai! Vai!
Picuinha (Obrigando Olga a sentar-se) - Depois, a senhora sai, tá?
Olga - Tá. Mas que eu saio, eu saio!
Almeno (A Picuinha) - Sai nada! Isso é que nem cão rafeiro. Só ladra.
Olga (Apoplética) - O... O... O...
Lita - Ó vó! Gaguejar agora!?!
Inês (A Almeno) - Tás a ver o que fizeste?
Almeno - Eu? Ela é que diz que sai e eu é que...
Inês (Levantando-se e apontando Olga, ainda ofegante) - Até tá a
passar mal.
Almeno - Tá a passar mal? Quem tá a passar mal sou eu! E há muitos e
muitos anos!
Inês (Com ênfase) - Se a mamã for embora, eu também vou!
Almeno - Ai é? Pois já vais tarde!
Inês - Desgraçado!
Almeno (A Picuinha) - Tá a ver? Que família de merda!
Picuinha - Ó, quem disse que eu já vi esse filme?
Lita (Ao mesmo tempo) - Força, velho! Força, que eu tou contigo!
Inês - Tás nada! Filha minha, se eu sair, sai comigo, e ponto final!
Lita - Mas nem morta! Sem mesada, daqui não saio, daqui ninguém me
tira.
Inês - Sai, sim! Sai, e sai já!
Firula - Que merda é esta!?! Sai já, o caralho! Daqui ninguém sai!
Olga (A Almeno) - Tá a ver, seu desgraçado? Tá a ver o que é que você
fez? Infeliz!
Olga levanta-se e tenta bater em Almeno. Almeno revida. Inês
atraca-se com Almeno. Lita tenta separá-los. Tumulto. Picuinha dá um
murro na mesa.
Picuinha - Chega, porra! Pára já essa merda! (A briga pára.) Mas que
porra de casa é esta? Ninguém tem educação, puta que pariu?
(Silêncio constrangido. A família senta-se. A Firula.) Tás a ver?
Tás a ver isto? E, depois, dizem que a educação vem do berço. Vem do
berço, mas é o caralho, é que vem!?!
Almeno (Levantando-se, enérgico) - Os senhores não podem...
Picuinha - Qual é, meu? Não foi nós que armou o cagalhão aqui dentro, tá bem?
Firula - Tá certo! Nós chegou aqui numa boa e começamos numa boa. (A
Inês.) Foi ou não foi numa boa?
Picuinha (A Firula) - Eles brigam que nem cães e nós é somo marginal.
(A Almeno.) Educação é coisa muito séria. Ou pensa que educação é o
quê?
Almeno (Sentando-se, solene) - Os senhores têm razão e peço que nos
desculpem. Na verdade, todos nós nos excedemos.
Firula (A Almeno) - Vacalhação, não! Vacalhação, não!
Picuinha - Qual é, Firu? O home...
Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, porra!
Almeno - Mas eu não...
Firula - Excedemos é a sua mãe, tá bom? Nós chegou aqui numa boa,
começamos numa boa e não vacalhamos ninguém.
Picuinha - Deixa de ser burro, pá! O home...
Firula - Vacalha também, não! Vacalha também, não, que eu fico fodido!
Picuinha - Que vacalha, o quê, pá! Não viste que o home tava era a
pedir desculpa? Deixa de ser burro, pá!
Firula - Tás a ver? Tás a ver? Depois, diz que eu não avisei!
Picuinha (A Almeno) - O senhor desculpe, mas aqui o Firu...
Firula - Vacalhação, não! Tou-te a avisar!
Picuinha - Mas ninguém tá a vacalhar, Firu!
Firula - Tou-te a avisar! Põe-te a pau!
Picuinha - Tu é mesmo burro, pá!
Firula - Tás a ver? Tás a ver? Depois, diz que eu não te avisei!
Picuinha - Ó Firu...
Firula - Tu sabe muito bem que eu sou home com educação.
Picuinha - Bah, vamos mas é trabalhar.
Firula - É melhor, é! Mas se vacalhar outra vez, eu fodo-te! Tou-te a
avisar!
Picuinha (A Almeno) - Tá a ver? Burrice chegou ali, ó...
Firula (Correndo para Picuinha) - Eu avisei-te, caralho!
Picuinha - Pára, porra! (Firula pára instantaneamente.) Vamos
trabalhar ou não, caralho? (A Inês.) Onde tá a Maria?
Almeno (A Inês) - Tás a ver? Tás a ver? Essa nunca me enganou!
Inês - Mas, Almeno...
Almeno - Não ouviste? Até sabem o nome dela!
Firula (A Picuinha) - E não é Maria? (A Inês.) Que eu saiba, em casa
de rico, as criadas são todas Marias. Maria disto, Maria daquilo,
mas todas Marias. Aqui não é assim?
Inês (Solene) - Aqui é da família.
Lita (A Firula) - Mas chama-se Maria.
Almeno (A Inês) - Tu devias era tê-la despedido quando eu disse.
Inês - Mas tu nunca disseste, Almeno.
Firula (A Inês) - Ó...
Almeno - Disse, sim senhor!
Firula (A Almeno) - Ó...
Inês - Não disseste, não senhor!
Almeno - Claro que disse!
Picuinha (A Inês) - Desempata. Disse ou não disse?
Almeno (A Picuinha) - Disse, sim! E não foi só uma vez!
Lita (A Picuinha) - Não disse, não.
Picuinha (A Almeno) - Tá a ver? A menina diz que...
Lita (Continuando) - A mamã é que queria mandá-la embora.
Olga (A Picuinha) - A comida dela é uma porcaria.
Lita (Continuando) - Mas o papá é que nunca deixou.
Almeno - Eu nunca deixei? Mas o que é isso, Lita?
Lita Fogo! (A Picuinha.) - Sabe o que é que ele dizia? Inês, perfeito
só Deus!
Picuinha - Deus do céu!
Almeno - Por favor, minha filha, não desmintas o teu pai.
Lita - Ai papá, e tu não desmentes até o dentista da mamã?
Olga - É isso mesmo. Ele nunca acreditou nas tuas cáries, minha filha.
Diz que tu e o dr. Mendes, ó...
Inês - Mamã, por favor!
Olga - Pergunta-lhe! E é por culpa dele que...
Almeno (A Olga, cortando) - Minha culpa? Culpa de quê?
Olga - Quem foi que abriu a porta?
Almeno - E quem foi que disse que o telegrama era da tia Micas?
Inês - Mamã! Almeno!
Olga - O senhor não presta!
Almeno - A senhora não pode...
Olga - Posso, sim! Posso, sim! O senhor não presta mesmo!
Almeno (Começando a levantar-se) - A senhora...
Olga (A Picuinha, apontando Almeno) - Olhe! Olhe! Olhe!
Picuinha (A Almeno) - Mas que merda! O senhor não diz que é home com
educação, porra!?!
Almeno (Sentando-se) - Foi ela que começou. Ou o senhor não viu?
Lita - Isso, velho! Força!
Picuinha (A Lita) - Ó, menina...
Firula (Ao mesmo tempo) - Picu.
Picuinha (Continuando) - ...assim, também não. (A Almeno) Com calma,
meu, com calma!
Firula - Picu, porra! Vamos ao jequingue ou...
Picuinha (Cortando) - Porra, Firu, vai te catar!
Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, que eu fico fodido!
Picuinha - Ai Firu, vai à merda! (A Inês.) Onde tá a Maria?
Olga - Ela tá...
Firula (A Olga) - Qual é, dona! O Picu perguntou a ela.
Picuinha (A Inês, ao mesmo tempo) - Como é que é? Vai falar ou...
Inês - Ela tá na cozinha.
Firula - Tás a ver, Picu? (Põe as mãos nos quadris e imita Inês.) Ela
tá na cozinha. Pobre é mesmo uma merda. Ou tá na choça ou na
cozinha.
Picuinha (A Inês) - Chama por ela. Chama por ela, que nós já tamos
atrasados. (Inês levanta-se.) Quieta!
Inês (Sentando-se) - Mas eu só ia...
Firula - Não ia, não!
Picuinha - Chama daí mesmo.
Almeno - Que é que há, mulher? Chama lá!
Olga (A Almeno) - Machão! (A Picuinha.) É um infeliz.
Almeno (A Olga, levantando-se) - Olhe aqui, sua... Eu não admito...
Picuinha (Obrigando Almeno a sentar-se) - Porra, meu!
Firula (A Picuinha) - Olha, só! Ele não ademete...
Picuinha - Ademete? Admite, seu burro!
Firula - Isso, não! Vacalhação, não!
Picuinha - Porra, Firu, qual é? Foi a brincar, merda!
Firula - A brincar ou não, eu não ademeto...
Picuinha - Admi...
Firula (Avançando para Picuinha) - Eu avisei-te! Eu avisei-te, caralho!
Picuinha (Gritando) - Pára, porra! (Firula pára instantaneamente.)
Vamos trabalhar.
Firula - É melhor, é! (A Inês.) Como é? Onde tá a Maria?
Inês (Chamando) - Maria! Ó, Maria!
Almeno - Mais alto, mulher!
Olga (A Picuinha, apontando Almeno) - Olhe! Olhe! Olhe!
Picuinha - Ó, meu, o senhor é home inteligente, nós somo burro...
Firula - Nã! Nã! Burro...
Picuinha - Cala essa boca, merda!
Firula - Burro, não! Burro, não, que eu já avisei! (Empurra Picuinha e
grita.) Burro, não! Burro, não!
Picuinha - Cala essa boca ou queres acordar todo mundo, seu animal?
Firula (Mesmos gestos e mesmo tom de voz) - Eu já avisei! Eu já
avisei!
Picuinha - Firu, porra! (Gritando.) Fecha a matraca e senta-te!
Firula - Mas eu avisei!
Picuinha - Senta-te!
Firula - Mas tu sabe que...
Picuinha - Senta-te, caralho! (Firula senta-se. A Inês.) Onde tá a
Maria? Ela é surda ou quê?
Inês - Deve
tar no quarto.
Olga (A Picuinha, apontando Almeno) - Deve tar a...
Lita (Cortando, a Picuinha) - Quer que eu a vá chamar?
Picuinha - Vai. Mas cuidado. Nada de gritos.
Lita levanta-se e abre a porta da cozinha.
Lita - Maria! (Maria não responde. Picuinha, gesticulando, manda
chamar mais alto) - Tás a ouvir, Maria? Anda cá!
Maria (Voz off) - Já vou!
Lita (Sentando-se) - Diz que já vem.
Picuinha - Atenção! Quando ela entrar, quero todo mundo quieto e
calado. (Encosta-se na parede, junto da porta da cozinha, com o
revólver na mão.) Ó Firu, então como é?
Firula - Tu não mandou todos ficar...
Picuinha - Ficar o quê, merda! Pega o fugante e anda cá! (Firula
levanta-se e coloca-se do outro lado da porta, com o revólver
apontado na direção de Picuinha.) Vira-me essa merda pra lá!
Firula - Mas se eu virar, a Maria...
Picuinha - Chiu!
Maria (Entrando, a Lita) - A menina chamou?
Firula (A Maria, apontando o revólver) - Cala essa boca!
Maria (Olhando Picuinha e Firula) - Que é que vocês tão a fazer aqui?
Almeno (A Inês) - Eu não disse!?! Tás a ver como ela os conhece?
Maria - D. Inês, a senhora deixou estes...
Almeno - Tás a ver, Inês? Tás a ver!?!
Maria (A Firula, apontado o revólver) - Vira essa coisa pra lá.
Picuinha - Escuta aqui, ó santinha.
Maria - Quem disse que eu sou santinha? O meu nome é Maria, tás a
ouvir?
Almeno - Maria, esses teus amigos...
Maria - Meus amigos? Eu não tenho amigos destes. (A Firula, apontando
o revólver.) Eu já disse pra virar essa coisa pra lá!
Firula - Ó santinha...
Maria - Eu já disse que o meu nome é Maria, ouviu, seu badameco?
Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, que...
Picuinha (A Firula) - Fecha a matraca!
Firula - Mas ela tá a vacalhar!
Picuinha - Nem mais um pio! (A Maria.) Ó Maria...
Inês - Maria, é um assalto!
Maria - Assalto? Isto? A senhora tá a brincar, D. Inês.
Lita - Não, tá, não, Maria. Eles são assaltantes a sério.
Maria - A sério? (Aponta Picuinha e Firula) Estes? Coitados!
Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Tás a ver isto?
Maria (A Firula) - Tás a ver o quê, seu badameco?
Firula - Vacalhação, não! Vacalhação, não, tou-te a avisar! (A
Picuinha.) Tás a ver? Depois, diz que eu é que sou choné!
Picuinha - Ó, Maria...
Maria (A Lita) - Se isto é assaltante...
Lita - São assaltantes, sim.
Firula - Jequeringues, se faz favor.
Lita - Jé...
Maria - Vagabundos, menina!
Firula (A Maria) - Vagabundos, o caralho! (A Picuinha.) Tás a ver?
Picuinha - Firu, porra!
Firula - Foi ela que começou. Ela é que tá a vacalhar.
Picuinha - Vacalhar, nada! (A Maria.) Ó, Maria, por que é que tu, em
vez de te armares aos cágados, não ajudas a tua gente?
Almeno (A Inês) - Viste? Eu não disse? Se calhar, ela conhece-os, ó...
Firula (A Maria) - É Isso mesmo! Tu devia era ajudar a nós!
Maria (A Picuinha) - Minha gente? Vê mas é se te enxergas, sua besta!
Firula - Vê lá como é que falas! Besta, não! Besta é a tua mãe!
Picuinha (A Firula) - Fecha a matraca, já disse!
Firula - Ela é que vacalhou. (Aponta Olga.) Eu não sou surdo como
aquela.
Olga - Eu não sou surda, seu...
Firula (Apontando Almeno) - Mas o home...
Olga (Apontando Almeno) - Aquele?
Picuinha (A Olga) - Puta que pariu! Cale-me essa boca! (A Firula.) E
tu, senta-te!
Firula (Apontando Maria) - Mas ela chamou-te besta.
Picuinha - Ai porra, chamou foi a ti!
Firula - A mim? (Avança para Maria.) Chamaste-me besta, desgraçada?
Picuinha (Segurando Firula) - Pára com essa merda, porra!
Firula - A mim ninguém vacalha.
Picuinha - Fecha a matraca, caralho!
Firula - Vacalha, não!
Olga (A Firula) - Nem pode!
Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Tás a ver? (Aponta Olga.) Até ela tá
comigo!
Picuinha - Cala a boca, já disse! (A Olga.) E a senhora, dona, quer
levar uma porrada ou quê?
Maria - E quem vai dar?
Picuinha - Eu.
Firula (A Picuinha) - Xacomigo. Eu dou.
Picuinha - Cala essa boca, caralho! (A Maria.) Eu é que dou.
Maria - Até quero ver!
Olga - Maria, pelo amor de Deus, olha a minha coluna!
Almeno (A Picuinha) - Devia era dar mesmo.
Olga (A Almeno) - O senhor não presta!
Almeno (A Picuinha, apontando Olga) - Foi ela que começou!
Picuinha (A Olga) - Ó dona...
Inês (Ao mesmo tempo) - Maria...
Maria - Não há perigo, D. Inês. Isto aqui é cão sem dono.
Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Tás a ver isto? Chamou de cão!
Picuinha - Ó, Maria, mais respeito, porra! Vamos tratar isto com
educação. Nós ainda não vacalhou ninguém, pois não? (Empurra Maria.)
Senta-te lá. Senta.
Maria - Não me empurres!
Firula (A Picuinha) - Dá-lhe uma puta. (Aponta Olga.) Não ias dar
naquela? Dá nessa.
Maria - E quem é home aqui pra me dar?
Almeno - Maria, por favor, estes senhores...
Picuinha - Ó, Maria, não tás a ver a educação do home?
Maria - Home? E onde tá o home?
Almeno (A Maria) - Mais respeito, sim? Isto aqui não é casa da sogra!
Olga - Eu não lhe permito...
Almeno - A senhora sabe que mais? Cala a boca e vai à merda.
Inês - Almeno!
Olga - Calo, se eu quiser. E não vou à merda. À merda vai você!
Inês - Mamã!
Olga (Continuando) - E a Maria tá mais que certa. O senhor nunca foi
homem!
Almeno - Alto lá!
Inês - Mamã, a senhora não pode...
Olga - Claro que eu posso! E alto lá, nada!
Almeno - Ofensas, não! Ofensas, não!
Olga (A Picuinha) - Posso falar?
Picuinha - Fala. Fala, mas rápido. (Aponta o relógio de pulso.)
Rápido, que a gente tá, ó...
Olga (A Inês) - Há quanto tempo esse homem não te procura?
Almeno - A senhora não pode...
Lita (Batendo palmas) - Isso, vó! Dá-lhe!
Inês Lita! (A Olga.) - Mamã, a senhora não pode...
Lita - Ó mamã, relaxa!
Olga (A Inês) - Mas foste tu que me disseste, minha filha!
Inês - Mas não era prá senhora contar!
Lita - E o que é que tem, mamã? Lembras-te do Tó, aquele namorado que
eu deixei? Deixei por isso mesmo. Era uma no mês e sabe Deus. (A
Almeno.) Então, velho, não dás mais no couro, hã?
Inês - Lita!
Almeno (Ao mesmo tempo) - Ó minha filha, isso é coisa que se diga?
Lita - Ai papá! Coisa que se diga é outra coisa! (A Olga.) Vai, vó!
Firula (A Maria, apontando Almeno) - Quer dizer que ele...
Almeno (A Firula) - O senhor não pode...
Firula - Hã, hã, não sou eu que não posso! Eu posso e muito. Dou três
por noite.
Picuinha - Porra, Firu, tem senhoras aqui, caralho!
Firula (Desmunhecando) - Mas não sou eu que sou, ó...
Maria (A Picuinha, apontando Firula) - Ele tá certo.
Almeno - Maria, eu proíbo-te...
Firula (A Picuinha) - Ele, o quê?
Almeno levanta-se e avança para Maria.
Picuinha (Gritando) - Segura o home, Firu!
Firula segura Almeno.
Maria (A Firula) - Deixa! Deixa-o vir! Ou pensas que eu tenho medo? Eu
não tenho medo de frouxo!
Almeno - Eu proíbo-te...
Firula (A Almeno) - Ó, sapudo, tu não proebe nada, tás a ouvir?
Senta-te. Senta-te, caralho!. (Almeno senta-se.) Proebe. Proebe
merda nenhuma!
Picuinha (A Firula) - Que proebe o quê, seu animal?
Firula (Avançando para Picuinha) - Eu já te avisei! Eu já te avisei, caralho!
Maria (Gritando) - Pára!
Firula pára instantaneamente.
Picuinha - Ó Firu!
Firula - Quem mandou parar? (A Picuinha.) Foi...
Picuinha - Eu? Tu és burro?
Firula (Avançando para Picuinha) - Vacalha, não! Vacalha, não, que eu
já te avisei!
Maria (Gritando) - Pára!
Firula pára instantaneamente.
Lita - Dá-lhe, Maria!
Firula (A Lita) - Ó...
Maria (A Firula) - Cala a boca! (A Inês.) E a senhora, D. Inês, quer
saber, mesmo, o marido que tem? Hã?
Almeno (Levantando-se) - Cala-te, Maria! Eu proíbo...
Firula - Tu proe...
Maria - Cala essa boca, já disse!
Lita - Vai, Maria! Força!
Olga - Força, Maria! Vai, tou contigo!
Inês - Lita! Mamã!
Almeno avança para Maria. Picuinha segura-o e obriga-o a sentar-se.
Picuinha - Ó, meu, parece que tens pregos no cu, merda!
Almeno - Maria...
Lita - Vai, Maria!
Olga - Vai! Força!
Firula (A Maria) - Vai logo, ó...
Maria (A Firula) - Cala essa boca! (A Inês.) D. Inês...
Almeno - Maria...
Picuinha - Ó meu! (A Maria.) Vais ou não vais?
Maria - Cala-te também! (A Inês) Logo que eu vim trabalhar práqui,
toda a santa noite esse home me procurava no quarto.
Olga (Batendo palmas) - Eu sabia! Eu sabia!
Inês - Mamã!
Maria - Mas não dava nada. Mole, mole, tesão, nenhum.
Almeno (Cortando, gritando) - É mentira, Inês!
Maria - É tão verdade, D. Inês, que eu até sei que ele tem um sinal
abaixo do umbigo e outro nas entrepernas. Tem ou não tem?
Olga (Batendo palmas) - Eu sabia! Eu sabia!
Almeno (Com menos força) - É mentira, Inês!
Maria - Tem os sinais ou não tem, D. Inês?
Lita (A Maria) - Tem, sim! Tem, sim! O do umbigo eu vi!
Inês Lita! (A Almeno.) - Desgraçado! (Dá-lhe uma bofetada.) E nunca
mais apareças à minha frente, tás a ouvir?
Lita sobe na cadeira e bate palmas.
Picuinha (A Lita) - Ó, menina, assim também já é vacalhar demais!
Sente-se. (Lita senta-se.) Isso.
Olga (A Inês) - Viste? Viste? Por isso é que esse desgraçado dizia que
perfeito só Deus. (Aponta Maria.) E olha que ela nem sequer sabe
cozinhar.
Maria (A Olga) - Eu não sei cozinhar? Quem é que...
Picuinha - Calma, Maria! Calma, que a senhora só...
Maria - Não te metas! (A Olga.) Quem é que disse que eu não sei
cozinhar? Hã? (Pega uma cadeira e bate com ela no chão, cadenciando
as sílabas.) EU-QUE-RO-SA-BER-QUEM-É-QUE-NÃO-SA-BE-CO-ZI-NHAR!
Picuinha - Ó, Maria, barulho, assim, também não, merda?
Maria (Continuando, mesmos gestos e tom) - EU-QUE-RO-SA-BER!
Picuinha - Porra, Firu, cala-me essa gaja!
Firula tenta segurar Maria. Ela bate-lhe com a perna da cadeira na
canela.
Firula - Ai! (Pulando num pé só.) Ai! Ai! Ai! (Senta-se no chão e
esfrega a canela.) Ai! Ai!
Maria - Queres mais? Anda! Anda, se tu és home!
Picuinha (A Maria) - Calou!
Maria - Anda tu também. Anda!
Picuinha (Gritando a plenos pulmões) - Calou, caralho!
Maria (Largando a cadeira) - Isso, burro! Berra. Berra, que os
vizinhos são moucos! (Picuinha cala-se e fica rígido.) Burro!
Picuinha (Como se estivesse gritando, mas sem emitir nenhum som)
- Cala essa boca, senão eu mato um, caralho! Firu! (Firula não
percebe.) Firu! Ó Firu!
Maria (A Firula) - Olha o teu amigo ali a chamar.
Firula (A Picuinha) - Que tás a falar? Pareces um palhaço.
Picuinha (Gritando) - Palhaço, não, caralho! Palhaço, não!
Firula - Então deixa-te de palhaçadas. Quem faz palhaçada é palhaço.
Picuinha - Se me chamas outra vez palhaço, eu fodo-te!
Firula - levanta-se.
Maria (A Firula) - Isso, eu quero ver!
Inês - Maria, pelo amor de Deus!
Maria - Ai D. Inês, o que é isso? São dois rafeiros. Só ladram. (A Firula.) Então? Ficas-te?
Firula - Ficar o quê? Não há nada pra ficar.
Maria - Ai não há? (Aponta Picuinha.) Então ele diz que te fode e tu
deixas?
Firula - Foda-se, é verdade! (Agarra Picuinha.) Repete lá isso!
Repete, se tu és home!
Picuinha (Soltando-se) - Eu? Eu não disse nada, porra!
Maria - Disseste, sim!
Picuinha - Não disse, não!
Firula (A Maria) - Ele disse que não disse.
Maria - Tu és mesmo palhaço, hã?
Firula - Não comeces! Não comeces, senão...
Maria - Começo, sim! Ele diz que te fode e tu, ó... Como é? Ficas-te?
Firula - Tu fodes mesmo, Picu?
Picuinha - Ó pá, tu não tás a ver que ela só quer atiçar?
Firula - Mas tu fodes ou não fodes?
Maria - Fode, sim!
Picuinha - Não fodo, não!
Firula (A Maria) - Ele diz que não fode.
Picuinha (A Firula) - É tramóia dela, seu burro!
Maria (A Firula) - Tás a ver? E ainda te chama burro!
Firula (A Picuinha, gritando) - Eu não sou burro!
Firula atraca-se com Picuinha. Brigam. Almeno tenta apanhar os
revólveres. Maria é mais rápida e pega-os.
Lita (Batendo palmas, a Picuinha) - Dá-lhe! Dá-lhe!
Almeno (Sentando-se, a Lita) - Não te metas. A briga não é nossa.
Olga (A Almeno) - Deixe a menina, não tamos numa ditadura. E a briga é
de nós todos, sim senhor! Tamos numa democracia socialista, ouviu?
Almeno - A senhora cale essa boca.
Olga - Calo nada! Calo nada! Quer ver? (Sobe na cadeira e bate palmas.
A Picuinha.) Dá-lhe! Dá-lhe!
Almeno levanta-se e agarra Olga. Tira-a de cima da cadeira. Inês
levanta-se também e segura Almeno. Os três se engalfinham. Lita sobe
na cadeira e bate palmas.
Lita - Dá-lhe, mamã! Isso, vó! Chega-lhe, velho!
Maria olha as duas brigas durante algum tempo, e, de repente, dá um
murro na mesa.
Maria (Gritando) - Parou! (As brigas param.) Isto tem de ser uma casa
de respeito. (Todos se sentam, em silêncio.) Numa casa sem respeito
eu não trabalho.
Picuinha - Ó Maria...
Firula - Nós só tava a aquecer. Não tava, Picu?
Inês - Maria...
Lita - Ó Maria, não nos deixes!
Maria - Vou pensar.
Picuinha - Ó Maria, ó...
Maria entra na cozinha, levando os revólveres.
Inês (A Almeno) - Vês? Vês o que fizeste?
Almeno - E que é que eu fiz? Ela é que é amiga deles e eu é que...
Picuinha - Mais respeitinho, ó meu! A Maria é uma pessoa cem por
cento, ouviu?
Olga (A Almeno) - Se o senhor fosse homem de verdade...
Lita - A Maria tava satisfeita e não ia embora, não é, avó?
Picuinha (De repente, gritando) - Puta que pariu, Firu!
Firula - Vacalha, não! Vacalha, não, que...
Picuinha - Vacalha, o caralho! Vai mas é buscar a Maria, senão ela...
Firula (Sem se mexer) - Porra, é verdade!
Picuinha - Corre, caralho! (Firula corre e entra na cozinha.) Pega os
fugantes, ouviste?
Um tempo. Picuinha, meio sem jeito, tenta arrumar um pouco a sala.
Picuinha (A Inês) - A senhora desculpe, mas não foi por mal. Nós não
vinha pra isto. Nós vinha era pra fazer um trabalhino limpo, bem
feito, sem gritaria, numa boa, tá a ver? E eu fico até fodido
porque, mesmo que nós não tenha culpa, é por estas e por outras que
todos dizem mal da nossa profissão. Que nós não presta, que nós não
tem moral, que nós dá mau exemplo, que nós é marginal, que nós devia
era tar morto e tudo mais. Mas nós só leva a culpa, a senhora viu,
não viu? Nós vem aqui numa boa e o que é que acontece?
Olga (Apontando Almeno) - Se não fosse aquele...
Almeno - E a senhora? Não fez nada?
Picuinha (A Almeno) - Ó meu! (A Inês.) Mas eu garanto à senhora que
não volta a acontecer. Não volta mesmo. Quando nós voltar, eu faço
questão que a senhora veja o que é um trabalhinho bem feito. Eu
garanto à senhora que a senhora não vai se arrepender, a senhora vai
ver.
Inês - E vão voltar, é?
Picuinha (Acenando com a cabeça) - Mas só prá senhora ver o que é um
trabalhinho bem feito, tá certo?
Lita (A Picuinha) - Eu adorei! Só me assustei quando ele te pegou à
batatada.
Almeno - Lita!
Lita - Ó papá, tu também apanhaste da avó!
Picuinha (A Almeno) - Deixa, meu, deixa que a menina sabe o que diz.
(A Lita.) Mas não faz mal. Hoje o Firu chegou-me, amanhã chego eu a
ele e fica tudo numa boa. O Firu é meio assim, mas, no fundo, no
fundo, é bom rapaz. Olhe, um coração... Se tiver que apagar um,
apaga logo, só pra não ver sofrimento. (Procura cigarros nos bolsos
da camisa.) Olhe, não parece, mas é gente finíssima.
Lita (Percebendo os gestos de Picuinha) - Quer um cigarro?
Picuinha - E pode-se fumar aqui?
Lita - Hum, hum. (A Almeno) Papá, um cigarro. (Almeno faz de conta que
não escuta.) Papá!
Contrariado, Almeno pega o maço e oferece. Picuinha tira um cigarro.
Picuinha (A Lita, apontando Almeno) - Pode-se fumar mesmo?
Lita - Claro que se pode fumar.
Picuinha - Mas não tem uma lei que...
Lita (Apontando Almeno) - Qual lei, qual quê! Ele é advogado.
Picuinha - Ai então a guarda... (A Almeno, apontando o cigarro.) Pode
dar-me...
Lita - Papá, isqueiro!
Contrariado, Almeno acende o cigarro de Picuinha. Picuinha senta-se.
Lita - Vais nessa, vó?
Olga - Ai se não vou!
Contrariado, Almeno oferece o maço e Olga pega um cigarro. Almeno
acende-o.
Lita - Mamã?
Inês - Quero, sim.
Almeno - Mas tu não fumas, Inês!
Inês - Mas, agora, eu quero!
Contrariado, Almeno oferece o maço e Inês pega um cigarro. Almeno
acende-o.
Lita - Ó velho, e eu? Esqueceste-te?
Contrariado, Almeno oferece o maço e Lita pega um cigarro. Almeno
acende-o.
Lita - E o teu? Ficas assim?
Almeno acende um cigarro e todos fumam, em silêncio. Um tempo. De
repente, Picuinha levanta-se, corre para a porta da cozinha e
abre-a.
Picuinha (Gritando) - Firu! Ó Firu! (A Inês.) A senhora desculpe, mas
é que o Firu pode tar...
Firula (Voz off, rouca) - O que é que é?
Olga (A Lita) - Ai coitado. O que será que ele tem?
Picuinha - Precisas...
Firula (Voz off, ainda mais rouca) - Não!
Lita (Ao mesmo tempo, a Olga) - Ó vó, o que é que achas que ele pode
ter!?!
Picuinha fecha a porta da cozinha, senta-se e apaga o cigarro no
cinzeiro. Todos fazem o mesmo.
Picuinha (A Almeno) - O senhor é home, o senhor sabe como é que é... O
Firu... (Almeno, num gesto repentino, levanta-se.) Ó meu, que é que
foi? O Firu só...
Almeno - Assim, também já é demais, Inês!
Lita - Ó papá, relax!
Olga - O senhor é o único que não pode falar nada.
Almeno - Como não posso? Isto é a minha casa e é uma casa de família!
Olga - Foi uma casa de família!
Inês - Almeno! Mamã!
Almeno - Inês, nem dá pra acreditar. Eu tou na minha casa, eles
ofendem-me, fumam os meus cigarros, comem a minha criada...
Inês - Almeno!
Olga (Ao mesmo tempo) - Pois é, se o senhor soubesse comê-la...
Inês - Mamã!
Picuinha (Ao mesmo tempo) - Ó meu, que é que se passa?
Lita - Calma, papá! Se a violação é inevitável, pronto, relaxa e goza.
Inês - Lita, minha filha!
Almeno (A Picuinha) - A minha casa é uma casa de respeito.
Olga - Foi uma casa de respeito!
Inês - Mamã!
Picuinha (A Almeno) - Ó meu, corta essa! Quem foi o primeiro a querer
provar a febra da Maria, hã? (A Olga.) Não foi ele?
Olga - Esse é um fingido! Nem come nem palita os dentes.
Almeno avança para Olga. Picuinha segura-o.
Picuinha - Calma, meu!
Picuinha obriga Almeno a sentar-se. Depois senta-se e todos se
ajeitam nas cadeiras. Um tempo. Apesar do silêncio, começa a
notar-se uma certa descontração no ambiente.
Lita (A Picuinha) - Que cena é essa de ser ladrão? Dá pra viver ou...
Tou a perguntar porque no outro dia foi à faculdade um tipo fazer
uma palestra sobre violência, drogas, pobreza, essas coisas. Mas da
maneira que o gajo falou, notava-se que não entendia nada, nadinha.
Era rico.
Picuinha - Olhe, menina, pra viver dá. Mas a concorrência é muito
grande. Toda a gente rouba. Governo, políticos, bancos, é tanto
roubo, menina, que quem menos rouba somos nós. (Pequena pausa.
Ajeita-se na cadeira.) Um dos maiores problemas da nossa profissão,
é não termos acesso à insaider tradingue...
Lita - Insai...
Picuinha (Cortando) - Informação privilegiada. Pra roubar legalmente.
Mas uma pessoa vinga-se. Ai vinga. Já que não temos insaider
tradingue, pegamos de carjequingue, que é roubo violento de carro,
pegamos de casjequingue, que é roubo violento de casa, pegamos de
banjequingue, que é roubo violento de banco, pegamos de
boljequingue, que é roubo violento de bolsa, pegamos de tudo que é
jequingue. E lá vamos indo, cantando e rindo, como diz o outro
Lita - Ai então foi por isso que vocês começaram com aquele
casjequingue.
Picuinha - Foi, foi.
Lita - Eu até pensei que isso fosse língua lá do leste, ou coisa
assim, e que vocês fossem...
Picuinha (Cortando) - Nada. Nós somos portugueses, menina. Mas, olhe,
se a gente falar só português, hoje em dia, ninguém nos entende.
Nesta casa até que nos entenderam. Porque, menina, ele há casas por
aí que até o gato mia inglês e o cão ladra americano.
Lita - Não sabia.
Picuinha - Ai há, há. Menina, as coisas tão de tal maneira que, muitas
vezes, até passamos vergonha. Se a gente gritar assalto, todo mundo
ri. E de maneira que, agora, nós só vamos de jequingues. E a inveja?
Todo mundo morre de inveja. Eu vejo na minha profissão. A menina
sabe por que é que a polícia descobre o que descobre? Porque se
alguém faz um bom trabalho, logo os invejosos denunciam. Isto é uma
tristeza, menina.
Lita - Mas essa vida de assaltante, pelo menos, não tem a ver com
emoção, aventura, essas coisas, ou é uma chatice igual à nossa?
Picuinha - Olhe, menina, no fundo, no fundo, tudo é chatice.
Lita - Mas não tem perigos, tiros...
Picuinha - Ai tem. Às vezes, tem.
Lita - Cadeia...
Picuinha - Ai a choça faz parte. E merdação, menina, merdação toda a
gente tem. (Aponta Almeno.) Ele não se amerda no tribunal? Nós
amerda nos jequingues. É igual. (A Olga) A senhora nem magina o
trabalho que deu descobrir o nome dele, ver se era só um apartamento
por andar, dar um carjequingue no carro dos correios e pegar o
impresso do telegrama. E pra quê? Diga. Pra quê? (Faz um gesto
largo.) Pra isto?
Olga - É. A vida tá ruim pra todos.
Lita - Mas dá pra desenrascar, não dá? Quer dizer, umas pelas
outras...
Picuinha - É. Umas pelas outras dá. Mas olhe, chapa ganha, chapa
gasta. Só no supermercado a minha Rosa deixa os olhos da cara. E,
isto, sem falar na renda, na farmácia, na roupa...
Lita - Mas não há essas de curtes, snifes (faz o gesto) prá veia,
essas cenas?
Picuinha - Menina, dar uma passa num charro, quem não dá?
Lita - Isso é. Às vezes, há horas...
Almeno - Lita!
Inês - Minha filha!
Olga (A Almeno e Inês) - Deixem a menina! Ou nunca ouviram dizer que
charro até cura o cancro?
Lita Vó! (A Picuinha) - Mas quer dizer que...
Inês começa se mexendo na cadeira, olhando a porta do quarto. Almeno
observa-a.
Picuinha - Olhe, menina, um charrinho, isso até há. Agora, curtes, snifes, prá veia, essas cenas, só mesmo quem tem dinheiro. Só rico é
que pode pagar. Agora, família igual a esta, briga, vacalhação,
merdação, um a foder o outro, isso é tudo igual. Escrito e
escarrado. Só não é preto no branco, porque nós grita na rua, de
graça, e vocês paga pra gritar nos consultório, a menina percebeu?
Inês, de repente, levanta-se. Almeno levanta-se também e força-a a
sentar-se.
Almeno - Não!
Inês (Debatendo-se) - Deixa-me!
Picuinha - Ó meu!
Almeno - Não vais!
Inês (Soltando-se) - Vou, sim!
Lita - Mamã! Que bicho é que te mordeu?
Inês - Eu quero...
Almeno (Segurando Inês e tapando-lhe a boca) - Não queres, não!
Picuinha - Porra, meu, o que é que é isso? Onde tá a educação, merda?
Inês solta-se e levanta-se. Almeno força-a a sentar-se.
Almeno - Porra, Inês!
Lita - Papá, o que é isso!?!
Olga (Levantando-se e avançando para Almeno) - Desgraçado! (Dá uma
bofetada em Almeno.) Larga a minha filha, seu desgraçado!
Almeno (Atracando-se com Olga) - Cala essa boca, sua velha! Bruxa!
Olga (Gritando) - Socorro! Assassino!
A porta da cozinha abre e Firula entra, correndo, ainda puxando as
calças na cintura.
Firula - O que é que foi, Picu? É a guarda, caralho?
Picuinha - Qual guarda, qual o quê!?! Não tás a ver ali o home?
Firula - Passou-se? (Firula acena com a cabeça.) Dá uma puta e pronto.
Picuinha avança para Almeno, que larga Olga.
Olga (Recompondo-se) - Violador!
Inês (A Lita) - Eu não aguento mais.
Almeno - Aguentas! Aguentas, sim!
Lita (Ao mesmo tempo) - Mas o que é que foi, mamã?
Inês - Eu quero...
Almeno (Avançando para Inês) - Não queres, não! Não queres, não!
Picuinha - Mas que merda! (A Firula.) Firu, segura o raio do home.
Firula agarra Almeno pelo pescoço.
Almeno (Debatendo-se e gritando) - Não queres, não! Não queres, não!
Picuinha - Porra, Firu, segura-o bem!
Firula - Xacomigo! (Aperta o pescoço de Almeno até ele mal poder
respirar.) Tá bem assim? (Almeno debate-se com fúria.) Tá bem assim,
merda?
Picuinha - Tá. Mas segura-o!
Firula - Xacomigo!
Lita (A Inês) - O que é que tu queres, mamã?
Inês - Eu quero ir no quarto de banho!
Almeno debata-se com tanta força, que quase se solta.
Almeno - Não queres, não! Não queres, não!
Picuinha - Porra, Firu! Tu és home ou quê, merda?
Firula aperta o pescoço de Almeno, que fica sem ar.
Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Sou muito home!
Olga (Tentando bater em Almeno) - Canalha! Sádico!
Picuinha (Afastando Olga) - Assim, também já é demais.
Inês corre e entra no quarto.
Picuinha (Correndo atrás de Inês) - Guenta aí, Firu! Segura o home!
Almeno debate-se, mas Firula imobiliza-o.
Olga (A Almeno) - Homem desnaturado!
Lita - Ó papá, até pareces maluco!
Almeno debate-se com fúria.
Firula - Olha que eu dou-te uma puta!
Olga (A Almeno) - Criminoso! (A Firula.) Dá-lhe! Dá-lhe mesmo!
Firula (A Almeno) - Tás a ver? Depois, não te queixes!
Inês grita no quarto e Almeno quase se solta.
Almeno (A Lita) - Tás a ver? Tás a ver a tua mãe? Eu sabia!
Firula imobiliza Almeno e Inês grita de novo. Olga e Lita
levantam-se.
Olga (Gritando) - Queres ajuda, minha filha?
Inês (Voz off, rouca) - Não!
Almeno consegue soltar-se e corre para o quarto. Firula corre atrás
e agarra-o.
Firula - Porra, meu! Vê se te atinas!
Inês grita outra vez. Um grito longo, relaxado.
Lita (Sentando-se) - Senta-te, vó. A mamã abriu as comportas.
Almeno e Firula rolam pelo chão, embolados.
Lita - Coitado do papá. Já não dá mais no couro.
Olga - Nunca deu.
Lita - Nunca?
Olga - Quer dizer, uma vez parece que deu. Pelo menos, tu tás cá.
Almeno consegue soltar-se, corre para o quarto e tenta abrir a
porta.
Firula (Correndo atrás de Almeno, gritando) - Picu! (Agarra Almeno.) Ó
Picu, caba logo, que o home tá-se a passar!
A porta da cozinha abre e Maria entra.
Maria (A Firula) - Mas que porra de merda é esta, que já nem se pode
ver telenovela?
Almeno (Apontando Firula) - Foi ele que...
Firula (Largando Almeno) - Foi eu, não!
Lita (A Maria) - Foi a mamã.
Maria - O que é que ela tem?
Lita - Tinha!
A porta do quarto abre e Picuinha entra.
Almeno (A Maria, apontando Picuinha) - Esse homem é um devasso!
Picuinha - Eu? (A Maria.) Maria...
Firula (Ao mesmo tempo, a Almeno) - Vacalha, não! Vacalha, não que
senão...
Maria (Gritando) - Calem a boca! Todos!
Almeno (Apontando Picuinha) - Maria, esse homem...
Maria - Cale a boca, não ouviu?
A porta do quarto abre e Inês entra.
Maria - A senhora tá bem, D. Inês?
Inês Eu? Ai Maria, tou no céu!
Almeno (Ao mesmo tempo) - Eu sabia, Inês! Eu sabia!
Inês - Se sabia, por que é que não soube? Soubesse!
Maria (A Inês) - E tão a brigar por causa disso, D. Inês!?!
Inês (Apontando Almeno) - Ele é que tá a brigar. Eu tou ótima!
Almeno - Inês, eu não admito...
Firula (A Picuinha) - Tás a ver? Agora é ele que não ademete.
Almeno (A Firula) - Cala a boca, sua besta!
Firula (Avançando para Almeno) - Vacalhação, não! Vacalhação...
Maria (Gritando) - Sentem-se todos, porra! (A Inês.) A senhora tá
mesmo bem, D. Inês?
Inês - Ai Maria, tou mais do que bem. Lavei a alma!
Maria - Tá a ver, Dr. Almeno? Quem o manda não entender de almas?
Olga (A Maria) - Esse homem só entende de maldades.
Almeno - E a senhora entende de quê? O Ismael que o diga.
Olga - Homem sem moral! Canalha!
Inês - Almeno, cala essa boca! Mamã!
Lita - Guenta, velho! Dá-lhe, vó!
Olga - Dou mesmo! (Grita.) Homem sem moral! Canalha!
Picuinha (A Firula) - Puta que o pariu! Que puta de barraca!
Firula - Vambora, Picu! Vambora, que deste mato não sai cachorro,
caralho!
Picuinha - Não é cachorro que sai do mato, seu burro, é coelho.
Firula - Não comeces! Não comeces, que eu já avisei!
Maria (A Picuinha e a Firula) - Calem a boca!
Picuinha - Ó, Maria...
Maria - Cala a boca, já disse!
Picuinha - É que nós já tamos de saída. Ainda temos um lojequingue...
Maria - Vais-te calar ou não?
Olga começa escorregando na cadeira.
Lita (Gritando) - Vó!
Inês (Ao mesmo tempo) - Mamã!
Maria (Ao mesmo tempo) - D. Olga! (Segura Olga e senta-a.) O que é que
a senhora tem?
Olga - Eu também tenho alma, Maria.
Maria - Não me diga que a senhora...
Olga - Claro que eu digo! (Agarra Picuinha.) Eu também quero lavar a
alma!
Picuinha (Tentando afastar Olga) - O que é que é isso? Chega pra lá!
Foda-se!
Lita - Lava, vó! Pega, pega no sabão!
Picuinha (Soltando-se e correndo para junto de Maria) - Ó, Maria, pelo
amor de Deus, safa-me!
Olga corre atrás de Picuinha e os dois ficam correndo em volta da
mesa.
Olga - Eu também tenho alma! Eu também tenho alma!
Picuinha - Firu, segura a velha! Segura a velha, Firu!
Firula (A Maria, apontando Picuinha) - Passou-se?
Picuinha - Ó Maria, pelo amor de Deus!
Olga (Gritando) - Eu vou lavar! Eu vou lavar!
Lita (Subindo na mesa e batendo palmas) - Lava! Lava mesmo, vó!
Olga (Mesmo tom) - Eu vou lavar! Eu vou lavar!
Inês - Lava, mamã! (Sobe na mesa e bate palmas) Salta nele! Lava tudo!
Lita - Anda, papá!
Inês - Vem, Almeno! Deixa de ser careta, merda!
Firula - Ó meu, não vai proveitar?
Maria - Ou vai agora ou nunca.
Almeno - tem uma leve hesitação, mas levanta-se, corre e apanha o
telegrama no chão, junto da porta. Olga agarra Picuinha, arrasta-o
para o quarto e fecha a porta.
Picuinha (Voz off, gritando) - Socorro! Ó da guarda! Chama a guarda, Firu!
Almeno sobe na mesa e abraça Inês e Lita. Maria e Firula abraçam-se
também.
Todos (Gritando, em coro, Almeno agitando o telegrama) - Ó mar
salgado, quanto do teu sal são correios de Portugal! Ó mar salgado,
quanto do teu sal são correios de Portugal! |