CUNHA DE LEIRADELLA

Memória dos cravos da lua nova

         Foi, precisamente, na lua nova daquela quinta-feira, 25 de abril de 1974, que eles chegaram ao Brasil. Eu estava lá. Não ancoraram no cais da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, como o navio Santa Maria do Capitão Henrique Galvão, nem ecoaram por São Paulo, como os discursos do General Humberto Delgado. Chegaram de repente, sem ninguém contar e, muito menos, esperar, chovendo de todas as nuvens como, dizem, chovem as pétalas das rosas nas madrugadas dos amores que se começam, vindos de todos os lados e estourando todas as vias de comunicação. E todos os sentiram e acreditaram, pois juramentava a sua verosimilhança e credibilidade o fato de deixarem sem fala e sem rumo todos aqueles que juravam ser Santa Comba Dão a matriz da Cova da Iria, porque lá tinha nascido, 29 anos antes do primeiro milagre de Fátima, o homem mais santo de Portugal: o professor doutor António de Oliveira Salazar.

         Mas, na verdade, os cravos da lua nova que chegaram ao Brasil com a notícia e o perfume da liberdade em terras de Portugal, não espantaram só os peregrinos de Santa Comba Dão. Espantaram todo mundo. E quanto maior era a ânsia de liberdade, maior era a grandeza do espanto. Não era fácil acreditar que oficiais do mesmo ofício pudessem trabalhar em campos tão opostos. E, o que é ainda mais espantoso, fazê-lo com tanta veemência.

         Em abril de 1974 reinava mais um general na República Federativa do Brasil. E reinava como o Senhor Dom Miguel tinha reinado em Lisboa ou o Soba Gungunhana nas terras moçambicanas de Gaza. Com direito a corte e salamaleques em Brasília, e missa cantada em todos os conventos militares. Sucessor de outro general, este entendido em futebol e em pintura, pois obrigou o técnico da seleção a demitir-se por não ter escalado o jogador que ele mais admirava e pintou de preto a vida de milhares de brasileiros que torturou e matou nos porões da ditadura, o trabalho do sucessor foi balançar entre o mata e esfola e o esfola e depois mata.

         Por isso o assombro ultrapassou todos os parâmetros e pasmou todas as gentes. E os cortesãos da corte de Brasília tiveram que engolir até as dentaduras, pois a pergunta era uma só: como é que os cravos da lua nova portuguesa tinham sido plantados por capitães do exército português, que suavam as estopinhas para botar a liberdade na rua, e os capitães do exército brasileiro também suavam as estopinhas, mas para botar a liberdade na cadeia? Que o suor de ambos fosse diferente, vá lá. Afinal, Portugal produzia azeite virgem e o vinho brasileiro não se comparava ao Barca Velha. Agora, que um exército soltasse cidadãos presos por terem exercido o direito de pensar e outro exército prendesse cidadãos porque queriam exercer esse direito, essa nem o Immanuel Kant das Críticas conseguiria entender.

         Mas era verdade. E foi a diferença entre os capitães portugueses (que botaram cravos nos canos do fuzis e botaram a liberdade na rua) e os capitães brasileiros (que botaram balas nos canos dos fuzis e botaram a liberdade na cadeia) que, passados trinta e cinco anos, ainda é lembrada como se ontem tivesse acontecido. Mas não é a diferença que mais importa. O que mais importa é as consciências continuarem sabendo que no dia 25 de abril de 1974, os cravos que em Portugal floriram naquela lua nova, floriram para sempre. Livres. E livres permanecem e permanecerão na memória de todos nós, porque o maior bem do ser humano é o dever que o estado tem de lhe reconhecer o direito à liberdade. De pensar e de expressar o pensamento. 

 

         Cunha de Leiradella

         Escritor 

        leiradella@sapo.pt

 
 
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