CUNHA DE LEIRADELLA

Função de

........Eu não queria que a minha casa fosse uma casa. Queria que fosse uma prisão. Ou uma jaula. Sem janelas e sem portas, e eu nunca pudesse sair dela. Mas, infelizmente, a minha casa tem uma porta que me deixa sair e eu tenho a chave no chaveiro. E, mesmo que não queira, todas as noites a uso. Mas não sou eu que a uso. São as minhas mãos. São elas que tiram o chaveiro do meu bolso, pegam a chave e a abrem a porta, e me arrastam para a rua. E não adianta dizer-lhes que não quero sair. A porta já está aberta e não posso fazer nada. Por isso as odeio. Mas elas não se importam. As minhas mãos querem que eu saia e todas as noites eu saio.
         E, hoje, não foi exceção. Saí de casa e fiz o que sempre faço. Andei pelas mesmas ruas, dobrei as mesmas esquinas e parei nos mesmos cruzamentos. Mas, como sempre, ninguém falou comigo nem eu falei com ninguém. Passamos uns pelos outros mas foi como se nunca nos cruzássemos. Dois ou três me olharam, mas foi só. Eu passei e eles também passaram, e só o silêncio permaneceu. Há anos que nada muda. Todas as noites nos cruzamos, mas só a distância aumenta entre nós.
         Já dobrei três esquinas e penso voltar, e, de repente, sinto as unhas das minhas mãos enterrarem-se nas minhas pernas. Paro no meio da calçada, espantado, e me pergunto por que é que as minhas mãos sempre fazem isto, e sempre de repente, e não sei responder. Tento, então, tirá-las dos bolsos e olhá-las. Quem sabe, olhando-as, elas me dirão alguma coisa? Mas não consigo mexê-las. Elas pesam toneladas e as unhas enterram-se, cada vez mais, nas minhas pernas. Desesperado, procuro dar um passo, mas não consigo. O meu corpo, agora, também pesa toneladas e parece cravado no cimento da calçada.. Por quê? Por que é que as minhas mãos fazem isto, sempre assim de repente, e sempre entre duas esquinas?
         Apenas mais cem metros e eu chegaria à outra esquina. Respiro fundo e reteso todos os músculos, a esquina está logo ali e eu preciso chegar lá. Não posso morrer agora, aqui, entre estas duas esquinas, só porque as minhas mãos imobilizam as minhas pernas e o meu corpo pesa toneladas. Devagar, baixo a cabeça e olho os bolsos das calças. As minhas mãos estão imóveis e não sabem que as olho. Por isso estão tranqüilas, enterrando, cada vez mais, as unhas nas minhas pernas. Mas, embora elas não saibam, eu também as conheço e sei que o momento de as tirar dos bolsos chegará. O importante é não morrer agora, aqui, entre estas duas esquinas.
         Relaxo os músculos e paro de respirar alguns momentos. É necessário que as minhas mãos continuem pensando que eu não sei o que elas estão fazendo. Se conseguir enganá-las, elas relaxarão também e eu poderei controlá-las. Devagar, volto a respirar, só esperando o momento adequado. Passa não sei quanto tempo, talvez muito, mas não me importo. O importante é que as minhas mãos relaxem e eu possa tirá-las dos bolsos.
         Um dos dedos da mão direita mexeu-se. Sorrio. Está quase. Se ele mexer outra vez conseguirei. Paro de respirar, esperando. Confiante, ele volta a mexer-se e deixa de cravar a unha na minha perna. Num gesto rápido, puxo os braços com força e tiro as mãos dos bolsos. Apanhadas de surpresa, elas não têm tempo de reagir e não revidam o meu gesto. Deixo-as caídas ao longo do corpo e sorrio, satisfeito. Fico assim alguns instantes, gozando a vitória, e, então, começo a andar. Agora, que consegui controlar as minhas mãos, tenho certeza, já não morrerei aqui, entre estas duas esquinas.
         Problema resolvido, o tempo e o espaço me pertencem e a sensação de poder me dá vontade de fumar. Tiro o cachimbo do bolso e encho-o de fumo, e pego a caixa de fósforos e olho a minha mão direita. Ela ainda treme, talvez furiosa por não ter conseguido escapar ao meu controle, mas está aqui na minha frente, e eu posso olhá-la, segurando o fósforo aceso. Sei que é a minha mão direita, porque é ela que sempre segura os fósforos quando acendo o cachimbo. Mas, mesmo sabendo que é ela, ainda assim olho-a e penso, se eu ando por estas ruas, carregando as minhas mãos, será que elas não poderão andar também por aí, carregando as suas próprias mãos e acendendo os seus próprios cachimbos?
         Não gosto das minhas mãos. Tenho certeza que, se não as vigiasse constantemente, elas me matariam. Muitas vezes, sem eu querer nem mandar, elas começam a tremer. Guardo-as, imediatamente, nos bolsos, como guardo o cachimbo, a bolsa do fumo, a caixa dos fósforos ou a carteira. Mas elas ficam furiosas e, em represália, tremem cada vez mais. E, por mais esforços que faça, não consigo obrigá-las a parar. Já tentei inúmeras vezes, mas elas só param quando querem. De repente, sem o menor aviso, mesmo que eu pense que ainda vão continuar, elas param. Mas só param quando acham que devem parar. E, às vezes, ainda me machucam, como fizeram há pouco. Por isso é que eu tenho certeza que se não as vigiasse constantemente elas me matariam.
         Eu não gosto das minhas mãos, mas elas também não gostam de mim. Odeiam-me. Embora consigam andar sempre na minha frente, vejam coisas que eu não vejo, escutem conversas que eu não escuto, as minhas mãos não conseguiram, ainda, separar-se de mim. Por mais que se afastem, por mais longe que possam ir, elas são sempre obrigadas a voltar. E, eu sei, é por isso que me odeiam.
         Só adormeço depois das minhas mãos adormecerem. Nunca mais, depois que descobri o que elas são capazes de fazer se não as vigiasse constantemente, adormeci antes delas. E é essa, tenho certeza, a única razão que me mantém vivo, embora passe noites e noites sem dormir, esperando que elas adormeçam.
         Mas elas também se vingam dessa minha vigilância. Obrigam-me a sair e, esquina após esquina, só pelo prazer de me violentar, também me forçam a conhecer a presença das coisas que me cercam. É por meio das minhas mãos que eu conheço as paredes dos edifícios, os automóveis estacionados junto das calçadas, as cascas rugosas das árvores, os livros que leio ou até o vidro mal lavado dos copos onde tomo os meus conhaques. Tudo eu conheço através das minhas mãos. E eu sei por que elas fazem isso. Elas sabem que quanto mais crescer o mundo exterior, menor fica o meu mundo interior.
         Até quando volto e entro em casa, eu sei que estou na minha casa porque são as minhas mãos que pegam a chave e abrem a porta. Por isso eu as odeio. Se não fossem elas, tenho certeza, o meu mundo seria outro. Nele não existiriam paredes, cascas de árvores, automóveis, cachimbos, copos, nada a não ser eu. Nem sequer a casa de onde me obrigam a sair todas as noites.
         Mas eu também me vingo. Há muito aprendi a vingar-me. Mesmo sem vontade de fumar, tiro o cachimbo do bolso, encho-o de fumo e acendo um fósforo. Como agora. O cachimbo já está na minha boca, o fósforo já está aceso, mas só eu sei que não vou fumar. Tudo que fiz até agora, tirar o cachimbo do bolso, enchê-lo de fumo e acender um fósforo, tudo isso não passou de pretexto para deixar o fósforo arder e queimar os dedos das minhas mãos. Mas elas não sabem disso. Felizmente, agem sempre como se tudo tivesse, obrigatoriamente, uma seqüência lógica. Para elas, tirar o cachimbo do bolso, enchê-lo de fumo e acender um fósforo só significa vontade de fumar. Mas, para mim, não. Eu posso, perfeitamente, tirar o cachimbo do bolso, enchê-lo de fumo, acender um fósforo e não fumar.
         Na realidade, a única vantagem que eu tenho sobre as minhas mãos é nenhum dos meus atos ser, obrigatoriamente, um ato lógico. Não fosse isso, há muito elas já me teriam assassinado.
         Agora, como sempre, foi a minha mão direita que acendeu o fósforo. E eu tenho certeza que ela está pensando que este fósforo que está ardendo e já quase queima os dedos dela, foi aceso para acender o meu cachimbo. Nenhuma das minhas mãos, nem a esquerda, que segurou a caixa e, agora, segura também o cachimbo, nem a direita, que acendeu o fósforo, sabe que não vou fumar. Da forma como procederam, com a calma que agiram, para elas eu também só posso agir com lógica. Se tirei o cachimbo do bolso, se o enchi de fumo e se acendi um fósforo, eu só posso ter feito isso para fumar. Por isso elas não estão preocupadas. Só que eu não vou fumar. Vou castigá-las. Claro que sei que, quando a chama do fósforo começar a queimar os dedos, eu também vou sentir dor. Mas elas vão sentir a dor primeiro do que eu, e esse será o seu castigo.
         Estou com raiva. Há instantes, logo que consegui dar os primeiros passos, depois de quase ter morrido entre aquelas duas esquinas, as minhas mãos, para se vingarem da minha vigilância, me agrediram. Mais uma vez me violentaram. De repente, sem o menor aviso, sem eu ter tempo sequer de as meter nos bolsos, elas me obrigaram a conhecer mais uma coisa. Um automóvel. Aquele que está estacionado ali atrás. Eu posso imaginar, perfeitamente, um automóvel. Sei que posso imaginar até todos os automóveis do mundo. Mas aquele, especificamente aquele - PT-4429 - só existiu para mim quando as polpas dos meus dedos o tocaram. Se as minhas mãos não o tivessem tocado, ele, para mim, não existiria. Não seria mais uma coisa cuja presença me sufoca.
Eu sei que as coisas existem. Sempre existiram. Existiram antes de mim, existem comigo, e continuarão existindo depois de mim. Mas só quando as minhas mãos as tocam é que eu as sinto e a sua presença me sufoca. Enquanto eu, simplesmente, as imagino, são elas que existem em função de mim, não eu em função delas. Mas no momento em que sou obrigado a conhecê-las, sou eu que existo em função delas, não elas em função de mim. E é, justamente, esse conhecimento que me angustia e essa presença que me sufoca.
         Por isso é que as minhas mãos, só porque me odeiam e conhecem a minha angústia, me fizeram conhecer a presença daquele automóvel ali atrás. Até que elas o tocassem e eu o sentisse, ele, para mim, não existia. Até àquele momento era só eu comigo mesmo. Mas, depois que as minhas mãos me obrigaram a sentir aquela presença, deixei de ser só eu comigo mesmo para ser a função de. O que existe apenas em função das coisas que o rodeiam. E é justamente por isso que as minhas mãos estão sendo castigadas. O fósforo já está queimando os dedos, mas eu tenho até prazer em sentir dor. As minhas mãos a sentiram primeiro do que eu, e esse foi o seu castigo.

 

CUNHA DE LEIRADELLA

leiradella@sapo.pt