Se os atos dos seres humanos se medissem pelos verbetes dos dicionários, com a gramática acompanhando em tom maior, seria fácil estabelecer parâmetros, não de comportamento que, isso, quem estabelece é a moral (infelizmente, a maior parte das vezes escrita com “u”), mas de conhecimento. Só que, conhecimento, não infere, obrigatoriamente, distinção entre o bem e o mal. Infere, apenas, comparação. Saber mais ou saber menos. O fato de o homem ter ido à lua ou ter fissurado o átomo, e dizer que já conhece o começo e o fim do universo, não significa que esse homem tenha crescido interiormente na mesma proporção que o seu conhecimento científico penetrou no desconhecido. Como seres humanos, somos hoje tão (ou mais) bárbaros do que os chamados bárbaros que invadiram as Terras de Lanhoso no século V depois de Cristo.
Essas mesmas terras que, hoje, tanto se orgulham do seu processo civilizatório. Afinal temos leis que não são meros verbetes de dicionários, pelo contrário, foram elaboradas com o maior sentido cívico (e, às vezes, dizem que até humanitário), temos escolas que os nossos pais nunca pensaram ter, temos um centro de saúde que, teoricamente, atende a todos os doentes do concelho, temos praticamente tudo aquilo que, dentro das proporções da nossa comunidade, o progresso e os estatutos das organizações governamentais convencionaram chamar de mínimo bem-estar pessoal e social.
Temos tudo isso e tantas coisas mais, que seria até supérfluo aqui enumerá-las, conquistas de boa vontade política e de civismo, dizem com orgulho os nossos governantes concelhios, mas não temos um dos preceitos que mais e melhor caracteriza o ser humano: VERGONHA.
Não, senhor. Não temos. Uma comunidade que assiste, indiferente, e por essa indiferença, dá o seu aval e o seu consentimento, às verdadeiras atrocidades que se cometem contra os animais indefesos, não merece ser chamada de comunidade. E, muito menos, de comunidade progressista e preocupada com o bem-estar pessoal e social.
Eu sinto vergonha, e vergonha não só de ter vergonha, mas, muito, muito mais, num momento como este, de ser povoense e até de ser português, quando vejo pessoas jogarem na rua, como quem joga a água suja de um bacio, os seus animais de estimação quando saem de férias ou quando se cansam deles. E, o pior, é que, no ano que vem, farão a mesma coisa. Como se esses pobres animais tivessem culpa da animalidade escatológica dos seus donos. Honestamente o digo, uma coisa eu gostaria de ver. Esses honestos cidadãos, sim, porque eles se consideram honestos e os poderes públicos lhes dão alvará de cidadãos, eu gostaria de os ver no lugar dos seus animais de estimação. Jogados no lixo das ruas ou dos montes como trapos velhos fedorentos, esfomeados, doentes, pedindo um osso ou uma côdea pelo amor de Deus, e um abrigo onde pudessem aquecer-se do frio do inverno.
Por que é que o português é assim? Por que é que ele trata os seus animais como meros objetos de uso e consumo e os joga no lixo quando não está mais disposto a aturá-los? Politicamente, até quando não sei, mas, politicamente, a Comunidade Europeia é um fato. Mas só o é politicamente (e, mesmo assim, com inúmeras divergências). Mas, humanamente, o fato é, justamente, o contrário. Cada povo mantém-se como era. Enquanto os franceses, os ingleses e os italianos, por exemplo, tratam os seus animais como devem ser tratados, existem até leis específicas de proteção, por que é que os portugueses tratam os seus animais como se fossem criminosos? Falta de humanismo, desejo de afirmação (aquele abominável eu quero, posso e mando), ou apenas uma ancestral burrice que ainda perdura nos alcantis das nossas serras ou no asfalto das nossas (incivilizadas) vilas e cidades?
Vejo a nossa autarquia camarária ter o maior cuidado com os jardins e com a limpeza pública da vila, e aplaudo. Mas pergunto: por que é que não têm os governantes e legisladores do nosso concelho o mesmo cuidado com os animais abandonados, muitos deles doentes, arrastando a sua infelicidade de terem nascido num país de bárbaros, até morrerem de frio ou de fome nas esquinas ou nos montes onde foram jogados no lixo pelos honestos cidadãos, tão honestos e tão cidadãos que deviam ser presos pelo crime de lesa-humanitarismo? Será que há leis e não se cumprem, ou será que não há leis e também não interessa promulgá-las? Com a palavra quem possa responder.
Sei que existe uma organização chamada Capa - Clube de Adopção e Protecção de Animais. Que, me dizem, faz das tripas coração para dar um pouco de estima aos animais que os honestos cidadãos que, para mim, não são honestos nem cidadãos, jogam no lixo, não querendo nem saber que morte horrível terão esses infelizes nas agruras do inverno. Não sei em que condições trabalha a Capa. Mas sei que devia ser auxiliada. Não com esmolas mas com o subsídio direto dos poderes públicos. Se os nossos legisladores, seja porque motivo for, e acho que isso deve ser cobrado nas próximas eleições, não estiverem dispostos a promulgar leis severas sobre o abandono de animais, e o que é mais importante, a fazê-las cumprir, não importando o poder que exerce o criminoso, por que é que não se dão mais condições à Capa para que ela possa cuidar ainda melhor desses animais que nos olham com olhos que dão pena?
Em 1928, o escritor sueco Axel Munthe, escreveu um livro chamado “O Livro de San Michele” e colocou-lhe a seguinte dedicatória “A Sua Majestade A Rainha da Suécia, Protetora Dos Animais Maltratados E Amiga De Todos os Cães”. E não contente com isso, ainda disse: “Quanto mais conheço os homens, mais amo os cães.” Pena que os portugueses não leiam Axel Munthe. Quem sabe, conhecendo melhor os homens, mais amariam os cães?
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