Quando saí, por volta do meio dia, como sempre, resolvi caminhar. Gosto de olhar as ruas. Os muros, as casas, os edifícios, as árvores, os carros, tudo. Até as pessoas. Sei que são coisas banais, numa cidade como esta. Mas são importantes. Afinal, se nada disto existisse eu também não existiria.
Parei na esquina, junto de uma banca de jornais. Nunca leio jornais. Nem revistas. O que acontece longe de mim não me interessa. Mas o jornaleiro sorriu e cumprimentou-me, e não quis desapontá-lo. Afinal, era domingo e estava um dia lindo. Acendi um cigarro e folheei uma revista. Era o mínimo que podia fazer para agradecer o cumprimento. Mas o jornaleiro não entendeu. Aproximou-se e disse, hoje está um dia lindo, não? Larguei a revista e afastei-me. Não gosto que me digam o que já sei.
Dobrei a esquina e olhei o relógio. Não tinha nada que fazer, mas é sempre bom saber as horas. Meio dia a trinta e dois. Mesmo que nada signifique (eu não posso parar o tempo, embora possa parar o meu relógio) sempre é um ponto de referência. Pelo menos, fico sabendo que horas são e quanto tempo já passou. Puxei uma tragada e joguei o cigarro no chão, e continuei andando. Não conhecia aquela rua, mas tudo nela me parecia familiar. As árvores, as casas, os carros, os edifícios, os muros, tudo. Até a maneira como os sacos de lixo se amontoavam nas calçadas. Um menino passou e sorriu, e um porteiro, sentado na porta de um edifício, sorriu também e acenou-me. Embora não os conhecesse, não me espantei. Se o jornaleiro me tinha cumprimentado na outra rua, não era de surpreender se alguém fizesse o mesmo nesta rua. Afinal, era domingo e estava um dia lindo. Olhei a rua com atenção. Não me lembrava dela, mas se as pessoas pareciam conhecer-me, algum motivo teriam para isso.
Continuei andando. Agora mais atento, procurando um ponto de referência. Uma janela, uma porta, o tronco velho de uma árvore, um carro estacionado na calçada, até um muro coberto de cartazes. Qualquer coisa que me pudesse orientar. Mas a rua parecia igual a qualquer outra. Duas calçadas e asfalto no meio delas, e casas e edifícios, e uma curva e carros buzinando. Carros buzinando. Carros entrando e saindo da curva, e buzinando. Parei, atento aos carros e ao ruído das buzinas. Era isso. Carros entrando e saindo da curva, e buzinando. A curva. Aquela curva. Eu conhecia aquela curva. Era tão fechada, que os carros tinham sempre que buzinar. Sorri, satisfeito, já orientado. Depois dela havia uma casa. Uma casa grande, verde, com um muro alto, também verde, e um jardim cheio de árvores, também verdes.
Entrei na curva, correndo. Lá estava a casa. Grande e verde. Silenciosa e fechada, mas toda verde. Reconheci-a mal a vi. Era a minha casa. Sempre tinha sido a mesma casa. Parei e olhei-a. As mesmas paredes, as mesmas janelas, as mesmas árvores e o mesmo muro. Até o número do portão era o mesmo. Agora não tinha mais que duvidar. Aquela era a minha casa. Sempre tinha sido a minha casa.
Sempre gostei do verde. De todos os tons de verde. Por isso, a minha casa é sempre verde. As paredes, os telhados, os jardins, tudo. Até os papagaios e os periquitos, e as gaiolas, são verdes. Na minha casa tudo é verde. Só as coisas que não existem não são verdes. São azuis, boiando no espaço.
Atravessei a rua e parei junto do portão. Tão logo tocasse a campainha o porteiro viria abrir. Era um velho, que conhecia todas as pessoas, e abria e fechava aquele portão há muitos anos. Sempre o conheci velho, abrindo e fechando aquele portão. Nunca tive chave, mas também nunca precisei. Aquele velho sempre foi a minha chave.
Toquei a campainha. Dois toques. Um longo e um curto. O velho conhecia aqueles toques. Eram a minha marca pessoal. E ainda o som vibrava nos ouvidos, e já os pés se arrastavam no jardim. Sorri. Aquele velho nunca esquecia a minha marca pessoal.
O portão abriu e o velho apareceu. Era ele mesmo. A mesma barba e o mesmo cabelo, e a mesma pele encarquilhada e a mesma boca sem dentes. Olhei a casa. Lá estavam os jardins e as paredes, e as gaiolas dos papagaios e periquitos. Tudo verde. Como eu sempre quis que estivesse.
- Boa tarde.
O velho olhou-me e acenou com a cabeça.
- Boa tarde.
Sempre me olhava e sempre acenava com a cabeça. Apontei a última janela, junto do telhado.
- Tem um vidro quebrado naquela janela.
O velho fechou o portão sem olhar a janela. Não lhe disse nada, nem o impedi. A função dele era abrir e fechar aquele portão, não trocar os vidros quebrados das janelas. Fechei os olhos e um carro buzinou atrás de mim. Assustei-me, mas nem o vi. Quando me voltei, já tinha desaparecido na curva e só o som da buzina ainda boiava no espaço. Mas o espaço era azul e tudo à minha volta, agora, estava azul.
Cunha de Leiradella
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