O Velho do Restelo estava certo. Ó glória de mandar, ó vã cobiça / Desta vaidade a quem chamamos fama! Não tinha telemóvel, não tinha computador, não tinha nenhum mercedes topo da gama, não usava sequer um mísero relógio no pulso descarnado, mas sabia das coisas. Entendia mais de humanos defeitos do que os padres confessores entendiam de virtudes. E também não tinha medo da verdade.
O projeto de texto de ortografia unificada de língua portuguesa foi aprovado em Lisboa pela Academia das Ciências de Lisboa, pela Academia Brasileira de Letras e pelas delegações de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe no dia 12 de outubro de 1990. E, embora o português seja língua oficial apenas a partir da margem esquerda do rio Minho, a delegação de observadores da Galiza também aderiu à caldeirada. No artigo lº aprovou-se o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, no artigo 2º avisaram-se os navegantes que os Estados signatários tinham prazo até 1º de janeiro de 1993 para tomarem as providências necessárias à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua, e, no artigo 3º badalou-se aos duzentos milhões redondos de falantes que o acordo entraria em vigor no dia 1º de janeiro de 1994. Faz hoje, portanto, onze anos e vinte e oito dias. Tempo mais do que suficiente para se considerar que o que merece ser feito merece ser bem feito.
As razões apresentadas pelos defensores do novo corte de cabelo, eu estava no Brasil naquela altura, foram todas, pelo menos lá, de uma lógica à prova de arrotos aristotélicos ou semelhanças sovacais. Ora se dizia que não havendo uma ortografia unificada nos países de língua portuguesa os governos não poderiam entender-se, e isso, o mais que fez foi provocar retumbantes gargalhadas no salão, ora se dizia que sem a santificada unificação o português, embora falado nas sete partidas do mundo, jamais poderia ser uma das línguas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU).
Só que as gargalhadas eram o de menos. O de mais foi o professor Antônio Houaiss, um dos mais ferrenhos defensores do acordo, logo sair a campo com o rascunho do seu Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Que, dizia-se, já seria editado nos conformes do novo corte capilar. Verdade ou não, o fato é que a Editora Nova Fronteira entrou na dança e botou a boca no trombone. Nada de mexer no Novo Dicionário da Língua Portuguesa do professor Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o famoso Dicionário do Aurélio, editado por ela em 1975 e até então o seu carro-chefe de vendas. Com a ONU pudicamente recatada e sem a menor vontade de meter a mão na cumbuca, a pergunta rolava pelo asfalto que nem minhoca em dia de trovoada: quem ganharia a guerra das estrelas dicionarais? Ganhou o Aurélio. O professor Antônio Houaiss morreu em 1999 e quem completou as atuais 3008 páginas do dicionário, foram os seus colaboradores. E sem nenhum mexe-mexe no couro cabeludo.
Mas, na verdade, o que é que pretende mudar na língua portuguesa este tão cantado e decantado acordo? Aliás, para bem da verdade, diga-se que de acordo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa não tem nada. Poderá fazer tudo menos unificar ortografias. Como nenhum dos prazos de 1990 se cumpriu, em julho de 1998 os mesmos signatários tiraram as violas do saco e deram uma de fado em tom maior. A data de 1º de janeiro de 1993 que constava no artigo 2º virou andorinha migratória no campanário das urtigas e o mesmo aconteceu com a data de 1º de janeiro de 1994 do artigo 3º. Mas não foi apenas esta cafungada que embotou o fio das tesouras. No encontro de São Tomé e Príncipe, em julho de 2004, ficou assente que, em vez dos oito, uma vez que Timor Leste também entrou na balaiada, bastaria apenas a concordância de três dos signatários para o acordo bater asas e voar que nem corvo em manhã de nevoeiro. Forte, fiel, façanhudo, fazendo feitos famosos. E é justamente na conjunção de todos estes efes que cabe a mais politicamente correta das perguntas: será que a ONU vai aceitar o português como uma das suas línguas oficiais, se só Portugal, Brasil e Cabo Verde concordam em (ou têm condições de) assinar a mexedura? Gente, cuidado com a esmola que, das duas, de certeza que é nenhuma. Ou para a ONU tanto vale concordância total como nenhuma concordância, ou a ONU não sabe nem o que (e quais) são as suas próprias línguas oficiais. Afinal, se são oito os países que têm que assinar o acordo, como é que a ONU aceita a unificação da língua portuguesa apenas com a assinatura de três deles? E se os outros cinco (ou só um) nunca quiserem assinar, que unificação vai ser essa? Fica quem nem Os Três Mosqueteiros, que eram quatro e valiam por um cento? Em termos lógicos e sérios, não há como a ONU considerar unificada a língua portuguesa e considerá-la uma das suas línguas oficiais se só três dos países participarem do acordo. Ou, então, para os burocratas do outro lado do Atlântico os outros cinco países nada valem e a ONU apenas faz de conta que valem. A ver pelos pneus, valer ou não valer é que nem mulher de vizinho. Tem vizinho que tem, tem vizinho que não tem, e estamos conversados.
Mas com ou sem vizinhanças, beneplácitos e bênçãos da burocracia onululesca, o que é que muda realmente na língua que nós aqui falamos e escrevemos e que os outros países lusófonos, oficialmente, não entendem? Mais chinchafol, menos chinchafol. 1) Neste verdadeiro ora agora viro eu, ora agora viras tu, Portugal mantém o acento agudo no e e no o tónicos que antecedem m ou n e o Brasil mantém o acento circunflexo: fenómeno/fenômeno, tónico/tônico. O que vale uma honestíssima pergunta: será que com estes ó e ô e é e ê, o prometido projeto da grafia unificada não foi pimbar pimbinhas no campanário das urtigas e tudo que a Filomeninha ganhou entre o centeio não passou de um imenso faz-de-conta à la me engana que eu gosto? 2) Portugal elimina as consoantes não pronunciadas já eliminadas no Brasil: ação em vez de acção, ótimo em vez de óptimo. 3) Portugal mantém as consoantes pronunciadas, mas também já eliminadas no Brasil: amnistia em vez de anistia, subtil em vez de sutil. 4) O trema, que ainda se usa no Brasil, lingüiça, freqüência, some nas pororocas do Amazonas e só tremerá nas palavras derivados de nomes estrangeiros. 5) Acaba-se o acento agudo nos ditongos abertos éi e ói das palavras paroxítonas: ideia em vez de idéia, joia em vez de jóia. O acento é mantido quando o ditongo está na sílaba final das palavras oxítonas e vem seguido, ou não, de s: fiéis, corrói. Agora, vejam só o mais perfeito fuzuê de quantos pênaltis não foram marcados na última Copa do Mundo: herói continua sendo herói, mas heróico é obrigado a acobardar-se num coitado de um heroico. 6) O acento diferencial, esse pula mais do que pipoca. É um entra-sai que nem grilo em toca de grila. Mantém-se no verbo pôr para o distinguir da preposição por, mas tira-se da flexão pára (do verbo parar), que não precisa ser distinguida da preposição para. Aí, D. Gonçalo Rodrigues de Palmeira, primeiro mordomo-mor da Infanta D. Tareja, abre o berro e manda ver: e ele há umas preposições mais fidalgas do que as outras? E o pélo (verbo) e pêlo (cabelo)? Esses, coitados, serão só um pelo (amor de Deus!). 7) Do hífen, bastará dizer que o escritor António Lobo Antunes não amará mais nenhuma pedra. O hei-de virará hei de, e lá se foram os amores. 8) O caso do apóstrofo é específico: nem sim nem não, muito antes pelo contrário. 9) A divisão silábica, como só uma mulher assinou o projeto em 1990 (a ministra da Educação e Cultura de São Tomé e Príncipe), essa, ficou por conta dos fanhos. Quem gaguejar, já viu.
Só que, na realidade, e a realidade, neste caso, é a mais triste de quantas e quantas ao mundo vieram, o que mais afasta os países lusófonos não são os sinais ortográficos ou este ou aquele espirro de algum lingüista (leia-se burocrata) mais enfezado ou já a caminho do cemitério. O que mais afasta os países de língua portuguesa, e muitíssimo mais do que todos os governos admitiram, admitem e hão-de admitir, são as enormérrimas diferenças culturais. Por mais que os burocratas teimem em fazer de conta que unificam grafias (não esqueçam o fenómeno/fenômeno, tónico/tônico), ou nos queiram impingir que a assinatura de três vale pela assinatura de oito, coisa que nem o antigo Estado Novo se lembrou de inventar no seu todo-poderoso quero, posso e mando, se os governos não praticarem aproximações culturais em vez de promoverem apenas portos de honra, nada feito. Afinal, quanta cultura os oito países lusófonos intercambiaram até hoje? Em sã consciência, o que conhecem os povos desses países (não apenas alguns ditos intelectuais, mas os povos) daquilo que fazem os outros nas suas artes? Será que quando o Caetano Veloso vem a Portugal cantar em inglês nos mostra que tipo de música popular se compõe hoje no Brasil? E será que quando vai algum artista português ao Brasil, naquele sempre-cabe-mais-um dos portos de honra oficiais, o que ele por lá diz ou faz mostra aos brasileiros a arte que se cria em Portugal? Isto, Portugal e Brasil. E, vá lá, até um pouco Angola, Cabo Verde e Moçambique. Agora, peguem Timor Leste, Guiné-Bissau ou São Tomé e Príncipe e me digam se neva nas alturas de Barroso. Quem, tirando as rolhas das garrafas dos portos de honra, viu filmes do guineense Flora Gomes, um dos grandes cineastas mundiais? Nem mosca varejeira. Mas tem mais. Será sempre muito oportuno e muito bom não esquecer que, só para mudar meia dúzia de símbolos gráficos que nada vão unificar (o fenómeno/fenômeno, tónico/tônico estão aí para não me deixarem mentir), o preço a pagar pelo tão cantado e decantado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa será altíssimo. Alguém já pensou no custo que as editoras terão para mudar a impressão dos seus livros atuais? Quem toma portos de honra não pensa em custos, já lá dizia, e muito bem, São Glutimênio de Los Pulos Olímpicos. Por isso, também é sempre muito oportuno e muito bom lembrar aos senhores dos poderes oficiais que o mais importante não são os beberetes nem os discursos. Seria, se eles dessem ouvidos ao bom-senso, multiplicar e multiplicar o intercâmbio das culturas. Que importa abolir (ou não) um trema, um acento ou um hífen, se em Portugal se continua dizendo aquela miúda é giríssima e o Brasil responde com aquela mina é muito do legal? E quem me sabe dizer como se dirá isso em Angola, em Moçambique, na Guiné-Bissau, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe ou em Timor Leste? Será que o tão cantado e decantado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa saberá ou tudo ficará como dantes no quartel de Abrantes, e apenas muda a biqueira da bota do comando?
Cunha de Leiradella
Escritor
leiradella@sapo.pt
Jornal Castelo de Lanhoso , 28.01.2005
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