JOÃO SILVA DE SOUSA
João Silva de Sousa (Portugal). Professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.Leal da Câmara, um homem da Europa.
“Somos mais pais do nosso futuro do que
filhos do nosso passado”
Miguel de Unamuno
Pelos primeiros dias de Fevereiro de 1898, Leal de Câmara pisava Paris. Pela Gare du Nord, desceu a Magenta, foi ter à Place de la Republique, entrou no 1.º prédio em que, numa janela, viu escritos, e sem discussões nem palavreados baratos e desnecessários, como nos contou a sua devota mulher, D. Júlia, instalou-se num quarto vago. Seria ali mesmo que, cedo, percepcionou uma relativa facilidade em entrar no seio do proletariado literário e no das demais vertentes culturais.
Recordando-se que era na rua que, em Madrid, os artistas diziam ter tirado todos os graus universitários e apreendido toda a poesia e desencantos da vida, saiu e meteu-se a caminho, pelos boulevards intermináveis, parando pelos escuros becos, onde encontrava os bistrots e cabarés, olhando pelas vidraças e tomando consciência de que teria muito trabalho para fazer. E fê-lo, dias depois, ao pintar o que via através das amplas janelas.
Miguel Unamuno, em Madrid, uns dias antes, gizara-lhe num pedaço de papel a rota que Mestre Leal havia de seguir para chegar a Montmartre e analisar, ao pormenor, os desenhos e pinturas que jovens e menos jovens artistas, por ali, com as paletas, cores e pincéis, retratavam, à sua maneira, o que viam, nas ruas e praças, mais de perto ou mais ao longe.
As cópias conduziam-se, genericamente, pelo sistema da perfeição, do exacto e no que os sentidos apreendiam. Não era de todo aquilo que ele fizera antes e que pretendia gizar depois. A interpretação que dava ao que a vista lhe transmitia estava muito longe da cópia correcta e as cores resultariam sempre de uma mistura de tons que correspondiam mais ao que ele queria que fosse e não ao que um fotógrafo comum disparava nos seus flashes fotomatón, donde resultava a produção de instantâneos.
As influências de Ramón Maria del Valle-Inclán, modernista castelhano e de Miguel de Unamuno, escritor, em Madrid, não é correcto dizer-se que tivessem sido imprescindíveis para a obra pictórica de Leal da Câmara. Digamos que surtira o efeito de um sólido suporte para reais concepções de uma nova experiência que seguira a bom ritmo em Portugal e que teria de continuar em Paris com toda a liberdade de expressão e sem tormentos policiais e aljubes que antes experienciou. A pintura e a arte em geral, também a literatura andavam então de mãos-dadas.
Estavam, na verdade, bem um para o outro, todos três. O que viam e lhes contavam não importava mais. Agora eram os seus cérebros limpos e livres de cáusticos que lhes animavam a vida e os trabalhos.
Unamuno opunha-se ao tradicionalismo e defendia o conceito de intrahistória, latente no seio do Povo, frente ao conceito tradicional de História, feita, exclusivamente, de reis, príncipes e heróis. Afinal, era o povo quem fazia, construía, levantava muros e paredes, como sempre foi e o fez, além de os alimentar e à alta burguesia.
Leal opunha-se ao conservadorismo e revolucionou, desde cedo, a sociedade, pondo de parte as ideias feitas, trocando-as pelo que via e sabia através das linhas dos jornais que lia. Desde cedo, ainda em Lisboa, a sociedade tinha de desinstalar-se, e ele concluía que era chegada a altura pôr de parte as ideias de que era o que via num primeiro instante o que devia reproduzir.
Instaurava-se um compadrio que iria culminar, anos mais tarde, em Pablo Picasso, nas suas Pomba da Paz, Les Demoiselles D’Avignon e na impressionista Guernica, frente a uma ditadura franquista instalada que não aceitou nunca as suas críticas à dita política espanhola , levando-o a sair para Paris. Como os tempos mudam. A Guernica ocupa hoje uma parede do Museu Rainha Doña Sofia em Madrid. De mudanças como esta marcadamente significante, estavam os Portugueses e os Espanhóis ansiosamente a aguardar.
Uns dias depois de se instalar e caminhar por ruas e becos, cantos e recantos de Paris – como o referimos acima -, o nosso artista multifacetado, na sua vida imparável que levava na Cidade Luz, entabulou conversa com alguém que também lhe fizera ver, em trato particular, que era a rua a mestra da vida. Foi Anatole France quem, frente a frente, lho revelava. Havia-se também interessado por problemas políticos, au fil des ans, depois de ter escrito textos que, no entrosamento das revelações e críticas bem contundentes, tanto interessavam ao nosso Mestre, que antes havia feito a partir de uma abóbora ou de uma pêra ou, pior ainda, de um barril, a figura do rei D. Carlos.
Corriam lembranças recentes: o inexplicável porque incompreensível Ultimato, seguido de pesados impostos e a greve académica.
Havia, então, pensaria ele, encontrado companheiros de guerra, cujos informes, pareceres e estilos de exposição e matérias escolhidas… tanto o interessavam e lhe alargavam os horizontes.
Trocavam-se informações, apresentavam-se uns aos outros, diziam ao que vinham sem esquecer um pormenor que fosse e ofereciam, por palavras, os conteúdos dos livros, dos artigos de imprensa, dos desenhos e “debuxos”, com dedicatórias orais.
Estas, como lhes chamámos, eram os cantos de sofrimento por que tinham passado até chegarem às vitórias que haviam alcançado. E de dois, rápido passariam a dez ou vinte pensadores.
E estes bastavam. Soubera-se, por toda a Europa, que Anatole tinha escrito, entre outras O Crime de Sylvestre Bonnard, o seu romance de estreia, onde nos revela o comportamento da vida parisiense na época da Revolução Industrial, retratando-nos uma França do final do século XVIII tão piamente que é como embarcar numa viagem deliciosa a cada página do texto.
A Ilha dos Pinguins, a Pinguínia, versando um tema bíblico e pretendendo motivar, o que ainda hoje acontece, ou seja, levar os leitores a tomar consciência de que a Fé não se aceita nem recusa pela Ciência.
Relativamente à substância da fé, não há razão para supor que argumentos lógicos, factuais e históricos tenham qualquer efeito demonstrativo, pois a crença não está baseada nas leis da realidade. E a religião não é para ser discutida. À interiorização de dúvidas, ninguém de fora poderia opor-se.
Como Van Gogh, já então falecido em França, Leal pintou os Saloios e os pobres do mundo que conheceu, dando traços fisionómicos e de conjunto, semelhantes aos que vemos nos trabalhos do holandês. Como Goya, em Espanha, também realçou os seus fantasmas, seguindo o trilho de Anatole, que assiste à revolta pelas situações que, por todo o lado, se comentavam devido ás atitudes de Bismarck, chanceler da Prússia que levou Napoleão III a arrastar o País para a guerra Franco-Prussiana [1870], na qual se viu derrotado, provocando o derrube do Império e o estabelecimento da III República.
Foi exactamente aqui que começou a acção de Anatole que passara por contar os factos, com todos os pormenores, a Leal da Câmara e a Aquilino Ribeiro, seu biógrafo, por excelência, como sabemos.
Quanto a OS Deuses Têm Sede, no meio de mais de 40 livros, Anatole narra, do seu ponto de vista, o ocorrido na França, logo após a Revolução e durante a Era do Terror, período compreendido entre 31 de Maio de 1793 (queda dos Girondinos) e 27 de Julho de 1794 (prisão de Maximilien de Robespierre, ex-líder dos Jacobinos).
Durante esse tempo, as garantias civis foram suspensas e o governo revolucionário, controlado pela facção da Montanha dentro do partido jacobino perseguiu e assassinou seus adversários que, num número impossível de determinar, entre 20 000 e 40 000 pessoas – diziam – foram guilhotinadas. Impunha-se, então, como, em outras ocasiões paralelas, que se deveria ter na devida conta, como relembra Anatole, o contemporâneo Grito, pintado pelo norueguês Edvard Munch, em 1893. Esta obra de arte expressionista, simboliza o sentimento de angústia do ser humano. Viviam numa Europa crítica e desordenada.
Gamelin, um cidadão do povo, pintor fracassado, tem uma sede imensa de justiça, acabando por transformar-se numa sede de sangue que, como a dos deuses, precisava ser saciada. E Madame Guilhotina, como governanta cruel do novo regime, tinha de ser abastecida de gente e sangue para que pudesse atender a seus senhores. Até que os julgadores passaram a ser julgados…
Não longe de tudo isto, com palavras que sugeriam pinturas, Romain Rolland seguia Leal da Câmara de perto, nos trabalhos em L’Assiete au Beurre e mais 28 periódicos em que o nosso artista trabalhou em França, tornando-se seu compagnon de route. Quando o filósofo político italiano, António Gramesci escreveu, na prisão, que “o pessimismo da inteligência” não deveria abalar o “optimismo da vontade”, ele citava Romain Rolland.
Escritor, desenhista e gravurista, como Matisse, Leal soube ser também defensor da tradição clássica na pintura portuguesa. Madame Ducasse, tinha na sua casa em Lisboa, a São Mamede, uma imponente pintura da Serra de Sintra e um minúsculo auto-retrato de Leal, como sendo um amolador de rua, uma obra impressionante das mais belas que nos foram dadas ver, creio que ao estilo de Agache, já, então, falecido, mas um retratista de mão-cheia, condecorado com a Legião de Honra. Como a casinha dos Veiga e Sousa, pintada, como outras, por Câmara se paralelas às mais belas do Gogh. Como os trechos pictóricos oferecidos a René Pattermann.
Nenhum Governo em Portugal permitiu que Leal fosse tão longe. O aparato em Portugal era distinto, embora as consequências não tivessem sido banalizadas. Também em Espanha, as coisas ocorreram de outro modo… A França fazia ouvir o seu último suspiro de alívio. Estávamos nos finais do século XIX e inícios da nova centúria.
Crítica por crítica… faltava apenas que a ela se juntasse toda uma plêiade de pintores que Anatole lhe ia apresentando. A sua argúcia, convivência e têmpera transformam os resultados dos seus trabalhos, quando regressa, bastante mais tarde, a Lisboa.
Ainda antes, o seu cepticismo e a sua ironia transpareciam, com inevitável maior contundência e manejamento do camartelo que usara nos escritos no Le Diable, no Le Rire e em L’Assiete au Beurre, entre tantos outros.
Nos seus trabalhos em geral, o fanatismo, a descrença, a vileza da ignorância de quem tinha obrigações de Estado, continuavam a ser pintados e desenhados com a crueldade de outrora.
A distância Lisboa / Paris, marcada pelas diferenças, levam-no, de novo, à crítica da cruel abastança dos ricos e dos senhores do poder e infinda baixeza pela miséria do Povo. Não fosse assim, o rei deposto Humberto II de Itália não seria visto, em lágrimas, a recordar os seus tempos, sentado à mesa da sala no piso superior desta Casa-Museu, num arrependimento tardio, numa tarde encoberta, passava o ano de 1982. E se tal não acontecesse por obra de idealistas revolucionários. as consequências poderiam ser outras e Leal, antes de falecer em Julho de 1948, ainda recordava as Dernières Pages Inédites de Anatole.
Anatole France participa no movimento do Livre Pensamento, razão pela qual. quantas vezes, se sentiu esquecido pelos seus colegas de profissão. Mas eis que é eleito, em 1896 para a presidência da Academia Francesa e, em 1922, com Leal já em Lisboa, veio a receber o Prémio Nobel da Literatura.
Entretanto, Leal conheceu, ante tudo o que já dissemos, não sendo difícil entender como, uma largueza do modus-laborandi e completamente em paz, o que, quanto nos parece, ele julgaria não existir em parte alguma.
Leu em Sur la Pierre Blanche, de Anatole algo que o fizera interrogar-se em que modo a liberdade do desenho e da palavra não desassossegava o espírito dos mortais: “Santa Mãe de Deus, Vós que concebestes sem pecar, compensai-me com a graça de pecar sem conceber”. E assim foi.
Leal da Câmara colaborou onze anos com o mais famoso periódico europeu que temos vindo a referir, pertença do judeu Samuel Schwartz. O nosso crítico conquistava nome emParis, porque L’Assiete au Beure representava, então, a nível internacional a grande oportunidade de demonstrar os seus evidentes dotes de originalidade, uma vez que iria ultrapassar os seus antecessores pátrios com novidades de género e evocação. A planificação de cada número traduz claramente o estilo da maqueta. Esta distancia-se de outros periódicos de páginas humorísticas que habitualmente se viam em Le Rire e em Le Sourrire, mesmo no Le Rire Belge, satélite do primeiro, em que Christian Delporte sublinha a profusão de títulos em França e mesmo, no registo mais próximo do Cris de Paris.
Cada número era editado no formato de álbum e destinava-se, sobretudo, a desenhos e caricaturas em bi ou tricromia. em pleno de cada página (em vez de quartos de página, como era vulgar fazer-se. Por regra, cada número obedecia a um assunto e confiava-se a um só artista, sempre aos melhores da Belle Époque… Números especiais podiam conter 48 páginas.
Basta-nos para terminar, referir duas das críticas que lhe fizeram. Numa, José Augusto França deixou escrito que “Leal da Câmara representa já o corte na linha do humorismo nacional, praticado contra a tradição Bordaliana [que este tanto respeitava e admirava] . Com ele – prossegue o Prof. França -, termina a notícia desta linha, definida em termos românticos e tardo-românticos mais que realistas, por razões da sua própria cultura artística nacional”, ao que acrescentamos a influência francesa de Viloyon e de Noel Dorville… Matisse, Degas e Picasso.
É que Leal não faz um traço sem ter uma ideia. Por vezes, aproxima-se, como dissemos antes, das linhas goyescas que estão no Prado. Ele não promete, realiza. Esta a prova evidente do resultado de ter começado em Lisboa, passado a Madrid, estagiado mais de uma década em Paris, passado por Richebourg L´Ávoué, pelo Luxemburgo, pela Bélgica e pelo e Rio de Janeiro.
Ideia não diametralmente oposta mas expressa em linhas de um certo criticismo, como, aliás, o referiu Júlio Dantas, entre outros artistas portugueses, residia na queixa de que Leal, “desnacionalizando o seu sentimento e a sua visão /…/, dava a impressão de um artista estrangeiro, tratasse ele de motivos e assuntos portugueses ou não”. Paris e os seus correligionários da profissão de Monmartre e Momparnasse realizaram-no plenamente e não lhe fizeram nunca fugir o riso.
João Silva de Sousa
Bibliografia
SOUSA, João Silva de, Leal da Câmara. Um Artista Contemporâneo, Lisboa, Livros Horizonte, Col. Livros de Arte, 1984
Id., Aquilino Ribeiro, Espíritos sem Tempo, Viseu, Avis, 2008
Veja-se a Bibliografia citada em ambas as obras do autor