José Maria Rosa de Carvalho

 

VITÁLIA SANTOS
José Maria Rosa de Carvalho, «O Amigo das Andorinhas»


Vitália Santos (Portugal). Funcionária autárquica e licenciada em Turismo. Brasfemense, descendente de um mestre canteiro, seu avô materno, e sobrinha do último canteiro da freguesia de Brasfemes. O gosto e curiosidade pela fotografia, genealogia e investigação de história local/ regional (principalmente sobre a sua freguesia) são passatempos prazerosos a que se dedica com paixão. Tem por lema “Acesso à(s) história(s) e memória(s) = Acesso ao Conhecimento”, como tal, tem vindo a partilhar as suas “descobertas” com o intuito de semear, colher e produzir conhecimento.


O Conimbricense José Maria Rosa de Carvalho nasceu a 1 de novembro de 1817, na Quinta do Espinheiro, Celas, freguesia de Santo António dos Olivais (Coimbra)[1].

José Maria Rosa de Carvalho

Filho do Doutor José Joaquim Rosa de Ferrari e de D. Maria Benedicta Rosa de Carvalho Vieira. Neto paterno de António Pereira Rosa e de D. Francisca Xavier de Ferrari. Neto materno do Doutor Francisco José Theotónio Martins de Carvalho e de D. Thereza M. Ritta Vieira. E, herdeiro de seu irmão Joaquim Augusto Rosa de Carvalho, falecido em 1884[2].

Foi admitido como aluno no primeiro ano jurídico a 31.10.1836, na Universidade de Coimbra, tendo concluído o curso em 1844.

O «Bicheiro-mor» de Bocage

Rosa de Carvalho era advogado e um colecionador que se dedicou apaixonadamente ao naturalismo. Dedicava-se à ornitologia, deixando coleções importantes de aves, e também de mamíferos e répteis. Pelos arredores de Coimbra coletou várias espécies de animais, alguns dos quais deram lugar à criação de novas espécies para a ciência, como Chioglossa lusitanica (Amphibia: Chioglossidae) e Arvicola rozianus (Mammalia: Rodentia), ambas descritas pelo seu amigo José Vicente Barbosa du Bocage (n. 1823/f.1907), político e mais importante zoólogo português do século XIX que em 1858 fundou o Museu de Lisboa, cuja secção zoológica ainda em sua vida passou a chamar-se Museu Bocage (faz parte do Museu Nacional de História Natural, na Politécnica, em Lisboa). Curiosamente, entre os vários locais de recolha de espécies, a Serra do Ilhastro/Alhastro da freguesia de Brasfemes/Coimbra, de onde a autora deste artigo é natural, surge referenciada na correspondência endereçada a Bocage por Rosa de Carvalho[3], o seu «o Bicheiro-mor», particularmente:

“Amanhã ou no dia seguinte vai o Manuel procurar Mioxus à pedreira do Ilhastro (…)”

(AHMB, CN/C- 42)

“No primeiro dia bom que vier vai o Manuel à serra de Ilhastro procurar as Nitelas.”

(s/l. AHMB, CN/C-18)

 “(…). nesta semana vai o Manuel dos ratos à pedreira de Ilhatro ver se mata algum Myoxus glis que lá possa descobrir. Não sei se haverá lá esta espécie. Sem estas tentativas nada se faz. Ainda cá tenho os fundos. (…)”

(AHMB, CN/C-37)

Ainda a propósito destes roedores, como colaborador do jornal «O Conimbricense», escreveu um artigo intitulado «Os ratos»[4], dizendo o seguinte:

“Vamos dar notíca das raças do campo.

O nosso arganaz, myoxus nitela, o maior dos campestres conhecidos em Portugal, tem a côr parda acinzentada, com um risco preto desde o canto dos olhos, alargando-se muito atraz das orelhas. A cauda é longa e ornada de pellos bastos e compridos; carateristico mais proprio dos esquillos do que dos ratos.

Faz grande estrago nas uvas, e nas laranjas.

É muito frequente na serra d’Ilhastro, ao norte de Coimbra”

Bocage, na sua “Notícia ácerca dos Arvicolas de Portugal” referiria:

“Depois da publicação d’aquelle nosso primeira ensaio [a “Liste des Mammifères et Reptiles observés en Portugal” de 1863], podemos obter maior numero de exemplares dos nossos arvicolas, graças sobretudo, ao concurso benevolo e efficaz que nos tem prestado o nosso amigo o sr. Rosa de Carvalho, de Coimbra, a quem devemos muitos dos representantes da fauna de Portugal que fazem parte das collecções do Museu de Lisboa;”   

De referir que, no Museu da Ciência da Universidade de Coimbra podemos apreciar a «Coleção Aves de Portugal» de José Maria Rosa de Carvalho, nomeadamente:

Nº espécime Nome científico Colecta
1 ZOO.0000247 Alauda arvensis sierrae Weigold, 1913 Coimbra, Serra do Roxo, Portugal
2 ZOO.0000409 Regulus regulus regulus (Linnaeus, 1758) Coimbra, Portugal
3 ZOO.0000455 Oenanthe leucura leucura (Gmelin, 1789) Coimbra, Serra do Dianteiro, Portugal
4 ZOO.0002733 Erithacus rubecula (Linnaeus, 1758)
5 ZOO.0000483 Erithacus rubecula (Linnaeus, 1758)
6 ZOO.0000487 Troglodytes troglodytes troglodytes (Linnaeus, 1758)
7 ZOO.0000500 Delichon urbica urbica (Linnaeus, 1758)
8 ZOO.0002013 Apus apus apus (Linnaeus, 1758) Coimbra, Portugal
9 ZOO.0002093 Athene noctua vidalli Brehm, 1857 Coimbra, Portugal
10 ZOO.0002097 Falco subbuteo subbuteo Linnaeus, 1758 Coimbra, Portugal
11 ZOO.0002101 Falco subbuteo subbuteo Linnaeus, 1758 Coimbra, Portugal
12 ZOO.0001379 Radix auricularia (Linnaeus, 1758) Coimbra, Portugal
13 ZOO.0002179 Pipistrellus pipistrellus pipistrellus (Schreber, 1774) Coimbra, Portugal
14 ZOO.0001380 Radix peregra (O. F. Müller, 1774) Coimbra, Portugal

 O «Amigo das Andorinhas»

Como colaborador do jornal do carbonário Joaquim Martins de Carvalho assinava os seus artigos como – «O Amigo das Andorinhas».

“Ninguém como elle sabia das baldas dos musaranhos e outros ratos campestres, para cuja caça inventou variadas armadinhas (…). Era finalmente um apaixonado das andorinhas que todos os anos invariavelmente lhe guarneciam os beirados da avelhantada casa com os seus numerosos ninhos.

Comprazia-se em anunciar sempre no Conimbricense a chegada e a partida d’estas avesinhas, assignando-se como – o amigo das andorinhas.” (Annaes de Sciencias Naturaes, Vol. IV, janeiro, 1897, p.45)

A 8 de Agosto de 1896, o Conimbricense descreve-nos assim o seu colaborador:

“José Maria Rosa de Carvalho – Tem estado em grave perigo de vida o nosso prezado amigo o sr. Bacharel José Maria Rosa de Carvalho, da sua quinta do Espinheiro, próximo de Cellas.

Deve ter 77 anos, aproximadamente, pois que em 1820 o levaram seus paes comsigo para a Figueira, na época dos banhos, sendo então o sr. Rosa muito creança.

Desde o referido anno de 1820 nunca mais o sr. Rosa voltou à Figueira: assim como nunca fez viagem no caminho de ferro.

Achámos sempre em nosso amigo o animo mais caridoso.

Nunca implorámos o auxílio publico, em benefício da pobreza, que não recebêssemos do sr. Rosa uma esmola.

Numa das suas cartas no dizia o nosso amigo – Se os pobres soubessem a satisfação que tenho em fazer bem, não me largavam.

Apesar de ser formado em Direito dedicou-se sempre o sr. Rosa, como simples curioso, aos conhecimentos de história natural, especialmente da ornithologia, em que era eminente.

Era tão afamado pela sua pratica neste objecto, que muitos especialistas, com colocação oficial, o consultavam.

Pode se ver o que acerca do sr. Rosa de Carvalho dizia o sr. José Vicente Barbosa du Bocage, na sua memória, publicada em 1862, com o título de – Instrucções praticas acerca do modo de coligir, preparar e remeter produtos zoológicos para o museu de Lisboa.

Na exposição de 1869, promovida pela Associação dos Artistas de Coimbra, apresentou o sr. Rosa de Carvalho uma curiosa collecção de reptis – tudo dos arredores de Coimbra.

Foi por isso premiado com medalha de prata.

O nosso amigo era auctor das apreciadas noticias de – Um amigo das andorinhas – que publicávamos no Conimbricense.

Alli manifestava além dos seus variados conhecimentos sobre o assumpto, o seu genio alegre e folgazão.

Essas noticias eram copiadas por muitos periódicos.

O sr. Bacharel José Maria de Carvalho era de notável excentricidade.

Para isto basta saber que vivendo na mesma casa com seu irmão, já há anos falecido, estiveram mais de 30 annos, comendo todos os dias á mesma mesa, sem durante tanto tempo falarem um com o outro.

Comunicavam o que tinha de dizer sobre negocios da casa, por meio de bilhetes, postos sobre a mesa, ou por intermedio da criada.

Qualquer pessoa que os visitava não percebia que eles não falavam um com o outro.

Por mais de uma vez isso nos aconteceu.

Perguntando ao sr. Rosa de Carvalho o motivo d’esse extraordinario procedimento disse-nos que a experiencia lhe tinha mostrado que quando falavam entre si os dois irmãos havia logo desinteligências, emquanto que pela forma que haviam adoptado viviam em perfeita harmonia.

Temos em nosso poder a correspondência original do partido miguelista, por ocasião da reunião que em 1851 houve no colegio da Estrella, para resolveram se esse partido devia ou não ir ás próximas eleições.

Uma das cartas é da dr. Joaquim Urbana de Sampaio, da quinta das Sete Fontes, dirigida ao bacharel Constantino Luiz Simões Ferreira Gonçalves, advogado nesta cidade.

Nessa carta dizia elle ter sabido com estranheza, que se tivesse dirigido convite aos dois irmãos, aqui da quinta de cima, para irem á reunião miguelista.

Por isto se via que o dr. Joaquim Urbano reconhecia que os irmãos Rosa de Carvalho não eram miguelistas, pelo que tinha sido uma imprudência havel-os convidado para irem á reunião d’esse partido.

Fazemos os mais ardentes votos para que o nosso amigo o sr. Bacharel José Maria Rosa de Carvalho possa escapar da grave crise por que está passando.”

O benfeitor

Mas, José Maria Rosa de Carvalho não escapou e faleceu, solteiro e sem descendência, a 11 de outubro 1896, na mesma quinta que o viu nascer. E a 13 de outubro de 1896 o jornal Conimbricense noticiava numa das suas páginas o seu óbito:

“Depois de doloroso e longo padecimento, falleceu finalmente, na sua quinta di Espinheiro, próximo de Cellas, o nosso prezado amigo, o sr. bacharel José Maria Rosa de Carvalho. Perderam os pobres um seu protector, a sociedade um cidadão benemérito, e nós um amigo constante e dedicado.  

Como testador Rosa de Carvalho repartiu 10 ações da Companhia de Vinhos do Alto Douro pela seguinte forma: 2 para cada uma das instituições de beneficência – Santa Casa da Misericórdia, Asylos da mendicidade, da Infância Desvalida, e dos Cegos e Aleijados; outra à Paróquia de Santo António dos Olivais e a última à Irmandade de Nossa Senhora da Piedade de Celas. Contemplou os pobres da sua freguesia com 30$000 réis.”

As duas ações legadas da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro[5], com o encargo de uma missa por sua alma, por uma só vez, tinham os números de inscrição 1:543 e 1:544, e cada uma delas, na data em que foram averbadas em nome de Santa Casa de Misericórdia, o valor de 1:260$000 reis.

O seu testamento pode ser consultado na íntegra no FamilySearch[6].

Na sala inaugurada em julho de 1899, destinada aos retratos dos benfeitores do Colégio dos Órfãos de S. Caetano da Misericórdia de Coimbra, constava, à data, o de Rosa de Carvalho.

Termino assim a minha homenagem a José Maria Rosa de Carvalho, como manifesto respeitoso pelo seu passado, para que sejamos dignos do presente e fazermos por merecer assim… o nosso futuro.

 

Retrato do Marquês de Pombal, em cartaz publicitário da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro

 


[1] Freguesia de Sé Nova/Celas – Coimbra: Baptismos 1815/1851,  Assento de batismo, tiff 41.

[2] Freguesia de Santo António dos Olivais – Coimbra: óbitos 1884, Assento 31, tiff 15.

[3] As cartas de Rosa de Carvalho para Bocage podem ser consultadas no AHMB (AHMB CN C11 a C44), e encontram-se parcialmente transcritas em https://triplov.com/rosa/index.html (acedido a 20 de agosto de 2020)

[4] CARVALHO, José Maria Rosa. (1873, 20 de setembro), Os ratos. O Conimbricense”, número 2729, p.3.

[5] Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro – Companhia monopolista instituída pelo Marquês de Pombal, ministro de D. José, através do alvará de 10 de setembro de 1756, considerada um dos mais odiosos privilégios que havia neste país.

Chronica Constitucional de Lisboa, de 31 de Maio de 1834 – D. Pedro publicou o decreto extinguindo os frades e também publicou o decreto de D. Pedro datada de 30 de Maio e referendado pelo ministro do reino, Bento Pereira do Carmo e pelo ministro da fazenda, José da Silva Carvalho, extinguindo todos os privilégios, autoridades, prerrogativas e preeminências de qualquer natureza ou denominação, concedidos à referida Companhia e à Junta da sua administração, desde o tempo do seu estabelecimento.

[6] FamilySearch – Portugal, Coimbra, Testamentos, 1801-1935, Testamentos, Tomo 114, 1895-1897.