José Correia Tavares e a reabilitação da quadra

JÚLIO CONRADO


Noutro contexto já descrevi os momentos que eu e José Correia Tavares vivemos enquanto companheiros na Associação Portuguesa de Escritores e mesmo quando ele, permanecendo na Instituição, ascendeu a vice-presidente e dinamizou o pelouro dos Prémios, pondo especial empenho na continuidade do Grande Prémio de Romance e Novela, jamais deixámos de ser amigos e de comentar, por vezes, através de telefonemas interminávceis, o estado das coisas no respeitante à literatura portuguesa, tendo sempre eu nele encontrado o  leitor atento de um ou outro ensaio que ía deixando no TRIPLOV, e até o revisor esmerado de alguns dos meus livros, nalguns casos, desafortunadamente, a posteriori.

Muitos escritores de nomeada ficaram a dever a José Correia Tavares revisões dos seus originais antes de transitarem para as editoras, e, nesse campo, ganhando prestígio a acrescentar prestígio a muitos dos prestigiados confrades que a justo título confiavam num revisor à antiga, severo na utilização justa da palavra em letra de forma e disponível para uma sugestão, a propósito, de uma ou outra oportuna alteração, ao autor. Infelizmente a figura do revisor-conselheiro parece ultrapassada pelas novas tecnologias na relação autor-livro-editor.

Fica às vezes um pouco na sombra a obra literária de José Correia Tavares, devido justamente ao enorme esforço que o cargo que ocupava na APE lhe exigia e de algum modo contribuia para que fosse negligenciada a obra do poeta. Contou, em todo o caso, com magníficos prefácios nos seus livros de alguns dos melhores ensaístas contemporâneos, alguns deles verdadeiros estudos aos quais vale a pena voltar para se poder avaliar o exacto alcance da obra e ponderar as ondas emocionais intrínsecas à personalidade do escritor com reflexos naquela.

Agora que as palavras precisam de um peso e de uma medida para desmanchar alguns dos equívocos espalhados segundo os quais a poesia de Correia Tavares se ressentia da grande insistência na produção de quadras, o que porventura terá sido a melhor ferramenta para exorcisar, num dado momento, os pesadelos do quotidiano, obstinados em apoquentar um carácter íntegro exposto à perversidade de gente pouco escrupulosa, e relendo os seus poemas mais antigos, nestes acharemos outras formas de exprimir uma mensagem lírica tão veemente, tão convincente e tão reveladora das razões da sua busca da verdade como as que alimentam o que de melhor brotou do estilo em que deliberadamente se expôs, e com o qual, de certa maneira, se confunde (ou o confundem).

A “adesão” à quadra parece-me situar-se em 1975, data atribuída à elaboração de Beijos e Pedradas. Não obstante, antes de abrir uma frente de combate contra a socialite malcomportada JCT passa por um período de adesão aos estereótipos revolucionários e a sua poesia repercute as linguagens correntes do tempo histórico em Fim de Citação: o poema Responderias é um dos exemplos que terá levado Armando Silva Carvalho a sinalizar no poeta uma escrita de acordo “com a sua ideologia”. Em todo o caso o longo período de amizade que não se quebrou entre mim e ele, jamais foi toldado por qualquer tempestade de radicalismo político, falando sempre mais alto os valores que uma verdadeira amizade impõe.

Achei por bem socorrer-me de dois prefácios, de entre vários, brilhantes, ao meu dispôr, que sintetizam exemplarmente, um, de Liberto Cruz, o escritor na totalidade da sua escrita, com inflexão para o historial da pessoa humana que foi JCT, e o outro, de Cristina Robalo Codeiro, a análise da quadra, num contexto teórico amplo e informado, como recurso reabilitado pelo superior engenho com que o poeta geriu as respectivas aplicações mormente quando a urgência da semântica reclamou da sintaxe acção e contumácia.

Escreveu Liberto Cruz:

“Estas quadras insertas em diversos volumes, como já tenho afirmado e agora repito, não têm par na poesia de língua portuguesa dos nossos dias. A escolha dos temas, a mestria da sua factura, a riqueza das rimas, a qualidade da linguagem e os efeitos obtidos são sempre presuasivos e tanto nos confortam como nos levam a pensar. Há nas quadras de José Correia Tavares uma linha de meditação que dissimula uma aturada, inteligente e culta lição de vida.” Liberto adiantará: “O poeta não explica, apresenta, não condiciona, sugere, não aponta, relembra. A claridade das suas quadras reflecte uma outra que é preciso recuperar.” (do prefácio de Sem Prazo de Validade).

Escreveu Cristina Robalo Cordeiro (Olhando as Margens)

[…] “as quadras que aqui nos são dadas a ler são por vezes charadas impenetráveis cujo sentido não é acessível senão para o coração purificado de um sábio ou para um espírito liberto das cadeias da razão […] É necessário muita habilidade técnica para manipular o lirismo  e a sátira, a delicadeza requintada e a obscenidade popular, o modo arcaico e o neologismo, o tom elegíaco no espaço muito restrito de uma trintena de sílabas, respeitando ao mesmo tempo a regra da rima cruzada.” E mais adiante: “José Correia Tavares é um letrado português de corpo inteiro e, da sua fibra, poucos haverá entre nós […] Que o leitor incapaz de medir a habilidade exigida por esta concentração de sentido em tão pequenos rectângulos de escrita se arrisque ele próprio a compor uma única destas estruturas para avaliar a mestria que se esconde sob a aparência do jogo!”

Em 7 de Abril de 1999 tive oportunidade de apresentar no Palácio das Galveias, em Lisboa, o livro intitulado A Leitura dos Actos, prefaciado por Silvina Rodrigues Lopes, que me suscitou, entre outras, as seguintes considerações: “Coube-me apresentar um dos livros mais violentamente polémicos de Correia Tavares em que o vilão tinha a forma de um tu; e foi rastreando os tu até os arrumar numa galeria de: vampiros, sacanas, papalvos, burros, mafarricos, safados, capados, ursos, grandes cães, grandes ratos, filhos da curta, etc. JCT coloca-se, assim, numa primeira linha de censura aos tu malcomportados, reactivando a tradição do escárneo dos trovadores medievais, em que a quadra se impõe como um dos instrumentos mais fiáveis para o fim em vista.”

Este é, como se compreende, um texto cuja finalidade não vai além da singela evocação do amigo recém-falecido em circunstâncias trágicas – uns dias antes tinha deixado de estar entre nós sua mulher e dilecta companheira de sempre, Maria José, cabendo à corajosa Natércia Tavares, filha do casal, arcar com as dores e com as tarefas da dupla e abrupta privação dos entes queridos.

Vale a pena estudar o legado poético de José Correia Tavares, alguém que aprofundou e reabilitou o valor da quadra como modo de descrever o homem e o mundo num muito bom nível de realização literária.

 

28 de Fevereiro de 2018
JÚLIO CONRADO


5º Encontro Triplov na Quinta do Frade
Casa das Monjas Dominicanas . Lisboa . Lumiar
17 de março de 2018