Jorge Nesbitt e a natureza morta

MARIA ESTELA GUEDES
Dir. Triplov (Portugal). Escritora


As linogravuras que Jorge Nesbitt exibe, neste fim de 2018 na galeria Jeanne Bucher Jaëger, em Lisboa, algumas de grandes dimensões, privilegiam a natureza morta. Em conversa com o público, o artista falou não apenas da natureza morta como do naturalismo e do gabinete de curiosidades. As obras agradaram-me muito, fogem completamente ao que é mais comum ver-se entre artistas contemporâneos, apesar de partirem do que é conhecido. Entre o mais conhecido, em Room with a view (título da exposição, de um livro e do filme nele baseado), figura uma imagem de Picasso sobre a qual Jorge Nesbitt constrói as suas caveiras.

A presença da caveira abre espaços de profundidade na literatura que o observador vai escrevendo mentalmente enquanto passa de um quadro para o outro. Elemento comum na pinacoteca geral, em especial nos retratos de personalidades ligadas à religião, a caveira lembra que tudo neste mundo é vaidade, apontando, por isso mesmo, para o outro, aquele mundo que fica para além da vida e da morte.

Se a caveira representa a morte (ela reproduz também o yin/yang oriental), não esgota o que é do domínio da natureza morta, expressão polivalente, que tanto se refere à arte como à ameaça de morte que pende sobre a natureza. Neste último campo, entra a questão do gabinete de curiosidades, que podemos considerar até um dos primeiros fatores de devastação da natureza, dada a excessiva depredação exercida sobre certas espécies (caso das aves do paraíso, em Bornéo), por parte dos colecionadores. O gabinete de curiosidades é um precursor do museu de História Natural. Ainda não dominado pela pressão da ciência, coligia por amor ao belo, ao estranho ou ao monstruoso, exibindo objetos heteróclitos, como as moedas, as medalhas, os santinhos, ao lado de herbários e de espécimes anómalos de animais. Antes do conhecer, próprio da ciência, vinha a curiosidade que em nós desperta o que não conhecemos. A beleza da plumagem das aves e as formas e cores das conchas dominavam o gabinete de curiosidades. Só mais tarde se começou a estudar os animais que exibem as belas cores e a bela plumagem, passando-se então do exterior para o interior. Prezava-se a beleza a ponto de a salientar, como no caso das conchas, muitas vezes polidas, para revelarem todo o brilho do nácar.

Jorge Nesbitt traz dessas “naturezas mortas” do gabinete de curiosidades o lugar primeiro atribuído às  aves, às conchas, às borboletas e às flores de herbário. Dentro da concha, porém, o que mora não é o paguro, sim a caveira ou o livro, a proclamarem que os tempos são outros, a complexidade da vida muito maior, por isso a caveira já não aponta tanto a vaidade, sim a máscara que usamos e a própria Natureza pode afastar da cara, para nos punir ou para ela ressuscitar, dando assim crédito à hipótese de Gaia.

 

 


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