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PSSST! PSSST! MECENAS, VEM CÁ!
Maria Estela Guedes


1. Em que consiste o projecto:

Em jardinar.

2. Objectivos:

Prolongar a vida.

Devolver, em qualquer grau, a juventude.

Retardar o envelhecimento.

Curar as doenças reputadas incuráveis.

Minorar a dor.

Purgas mais fáceis e menos repugnantes.

Aumentar a força e a actividade.

Aumentar a capacidade de suportar a tortura ou a dor.

Transformar o temperamento, a obesidade e a magreza.

Transformar a estatura.

Transformar a fisionomia.

Aumentar e elevar a capacidade cerebral.

Metamorfosear um corpo noutro.

Instrumentos de destruição, como os da guerra e o veneno.

Tornar alegres os espíritos, dar-lhes boa disposição.

Poder da imaginação sobre o corpo, ou sobre outro corpo.

Acelerar o tempo no que respeita às maturações.

Acelerar o tempo no que toca às clarificações.

Acelerar a putrefacção.

Acelerar a decocção.

Acelerar a germinação.

Fabricar compostos ricos para a terra.

Forças da atmosfera e nascimento das tempestades.

Transformação radical, como a que se verifica na solidificação, amolecimento, etc..

Transformar as substâncias ácidas e aquosas em substâncias gordas e oleosas.

Produzir alimentos novos a partir de substâncias que actualmente não são utilizadas.

Fabricar novos fios para as roupas; e novos materiais, a exemplo do papel, do vidro, etc..

Predições naturais.

Ilusões dos sentidos.

Maiores prazeres para os sentidos.

Minerais artificiais e cimentos.

Francis Bacon , “Magnalia Naturae”

“O que é isto?!”, perguntam os exegetas, face às Magnalia Naturae, praecipue quoad usus humanos , de Francis Bacon. A estrutura sintáctica do texto foi sabiamente escolhida, para ocultar essa questão, por isso não é nele que acharemos resposta, sim em nós. Até que ponto nos cega a arrogância, para negarmos ao autor de um texto publicado em 1627 (postumamente) a ciência que lhe permite saber o que diz? Em 1627, se porventura não se sabia como alterar a estatura e a fisionomia (e de quê? – de indivíduos ou de espécies?), esse era no mínimo um objecto de investigação. Em 1627, se não se sabia fabricar diamantes artificiais, no mínimo sabia-se que esse era um objecto pertinente de investigação científica. Nada porém nos autoriza a dizer que não se sabia, excepto o medo, apesar de vivermos já em republica , e a razoável distância da escolástica. Pesa no entanto sobre nós um paradigma que envolve o conceito de progresso, dificilmente compatível com a aceitação do facto de que as Magnalia Naturae correspondam a uma lista de práticas científicas do século XVII.

Já que estamos na res publica de Bensalem, vejamos o que noutra acontecia, a fundada pelo rei Utopos:

Os camponeses cultivam a terra, criam animais, procuram madeira e encaminham-na para a cidade pela via mais fácil, por terra ou por mar. Criam quantidade incrível de aves de capoeira, por um curioso método. Os ovos não são chocados pelas galinhas, mas mantidos em grande número em temperatura constante, na qual os pintos nascem e crescem. Logo que saem da casca, consideram os homens a sua mãe, correm atrás deles e reconhecem-nos. Thomas Morus, Utopia

Em 1516, data da primeira edição de “Utopia”, em Inglaterra não se conheciam os aviários. A Etologia, ciência do comportamento animal, aparece só no século XX, com as descobertas de Konrad Lorenz, sobretudo as decorrentes da observação da sua doméstica gansa, que lhe ensinou, entre outras coisas, que os pintos adoptam como mãe a primeira criatura que vêem.

Entre tudo o que pressupõem as Magnalia Naturae , que afinal são maravilhas naturais nascidas do engenho humano, uma informa que a sociedade em que foi escrito o texto estava longe de ser um jardim, por as suas leis aceitarem a tortura, precisando assim a ciência de um recurso para aumentar a capacidade de resistir à dor.

Sim, perguntemos: o que são as Maravilhas da Natureza, sobretudo as que se destinam a uso humano , texto que fecha a Nova Atlântida , de Francis Bacon? De onde vem a Morus o conhecimento de que, para os pintos eclodirem, no choco devem permanecer sempre sob temperatura constante? Não estamos a lidar com ficção científica, sim com textos políticos que visam a reforma profunda das sociedades, tal como “O Capital”, de Karl Marx, autor que vem sendo lido e avaliado de forma mais justa do que aconteceu no passado recente, como demonstra Jacques Attali, um não-marxista que nos anos 90 foi presidente do BERD, Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento:

Ao revisitar a sua vida, toma-se também consciência da extrema actualidade deste extraordinário destino considerado em todas as suas contradições.

Primeiro, porque o século que ele atravessou se parece espantosamente com o nosso. Como hoje, o mundo era dominado demograficamente pela Ásia e economicamente pelo mundo anglo-saxão. Como hoje, a demo­cracia e o mercado tentavam conquistar o planeta. Como hoje, as tecnolo­gias revolucionavam a produção de energia e de bens, as comunicações, as artes, as ideologias, e anunciavam uma formidável redução da penosidade do trabalho. Como hoje, as desigualdades eram consideráveis entre os mais poderosos e os mais miseráveis. Como hoje, os grupos de pressão, por vezes violentos, para não dizer desesperados, opunham-se à mundialização dos mercados, ao crescimento da democracia e à secularização. Como hoje, as gentes tinham esperança numa outra vida, mais fraterna, que libertaria os homens da miséria, da alienação e do sofrimento. Como hoje, um sem-número de escritores e de políticos disputavam a honra de ter encontrado a via para conduzir os homens, a bem ou pela força. Como hoje, homens e mulheres de coragem, em particular jornalistas como Marx, morriam pela liberdade de falar, de escrever, de pensar. Como hoje, enfim, o capitalismo reinava soberanamente, fazendo peso por todo o lado sobre o custo do tra­balho, modelando a organização do mundo segundo as nações europeias.

Depois, porque a sua acção está na fonte do que constitui o essencial do nosso presente: foi numa das instituições que ele fundou, a Interna­cional, que nasceu a social-democracia; foi caricaturando o seu ideal que se edificaram algumas das piores ditaduras do século passado, das quais vários continentes ainda sofrem as sequelas. Foi pelas ciências sociais, de que foi um dos pais, que se moldou a nossa concepção de Estado e de His­tória. É pelo jornalismo, de que foi um dos maiores profissionais, que o mundo não cessa de se compreender e, por isso, de se transformar.

Finalmente, porque ele está no ponto de encontro de tudo o que constitui o homem moderno ocidental. Herdou do judaísmo a ideia de que a pobreza é intolerável e que a vida só tem valor se permitir melhorar a sorte da humanidade. Herdou do cristianismo o sonho de um futuro libertador em que os homens se amarão uns aos outros. Herdou do Renascimento a ambição de pensar o mundo racionalmente. Herdou da Prússia a certeza de que a filosofia é a primeira das ciências e de que o Estado é o centro amea­çador de todo o poder. Herdou da França a convicção de que a Revolução é a condição de emancipação dos povos. Herdou da Inglaterra a paixão da democracia, do empirismo e da economia política. Enfim, herdou da Europa a paixão do universal e da liberdade.

Jacques Attali, Karl Marx ou L'Esprit du Monde , Paris, Fayard, 2005
Trad. de Oscar Mascarenhas

Os nossos objectivos resumem-se a um ponto simples, embora terrivelmente difícil de alcançar: a sociedade perfeita, a felicidade. Cultivamos flores porque amamos a beleza, e a beleza é o lugar onde se realiza a bem-aventurança. Não existe felicidade fora de um locus , de preferência amoenus . Temos a experiência de abrir os olhos, a boca, todos os sentidos, para absorvermos esses lugares maravilhosos, nos quais nos sentimos bem, como se os pudéssemos incorporar em nós, porque a felicidade é também isso, um repasto de perfumes, formas, cores, canto dos pássaros que ecoam no Jardim das maçãs de ouro e de todos os saborosos e macios pomos. Não há felicidade sem jardim, tal como não existe jardim sem delícias. A imagem que pintamos da felicidade da alma é a de Buda obeso, debaixo de uma Árvore sentado, dela recebendo a iluminação, tal como noutro Jardim, o do Éden, é da experiência com a Árvore que nos vem a ciência. Daí que, nos antigos ritos de lenhadores, o homem seja uma árvore, Bom Primo Olmo ou Boa Prima Acácia.

Uma sociedade nova, justa e fraterna, que elimine do mundo a fome e o sofrimento, é o objectivo dos jardineiros. Esperam-nos tarefas ligadas à terra, à água, às espécies seleccionadas e apuradas no curso dos séculos. A celerar a germinação, Fabricar compostos ricos para a terra, como diz Francis Bacon, são operações que fazem parte das técnicas de obter alimentos.

Entre dizer o que vamos fazer e a apresentação do que foi feito medeia assim um espaço de desiderata – saúde, dinheiro e amor, eis um rol de grau primeiro, bem naturalista, próprio de mentes egotistas. Porém a cidade-jardim, que não precisa de ser a Jerusalém celeste, basta ser a republica de Morus, exige uma constituição, dotada de leis eficazes, justas e muito poucas, que ponham os bens ao serviço de todos.

Jardinar para o bem comum é o segundo degrau do projecto, e neste damos prémio ao que mais se esforçar para garantir a nossa felicidade. É preciso proteger os jardins, são a natureza que resta. Precisamos de proteger as fontes de regeneração da vida, com as espécies que elegemos para viver connosco, nos mares que lavramos, nos rios que cultivamos, nos campos que sulcamos, nos bosques e matas que vamos florestando e desbastando. O que existe na Terra de bon sauvage habita as páginas de Rousseau, as ilhas Mascarenhas de “Paul et Virginie” e a floresta de Tarzan. Já todas as ilhas desertas e misteriosas foram conquistadas pelos náufragos e meninos marotos dos livros de histórias. Só temos o jardim – o território modificado pelo Homem - como futuro verde, precisamos dele para a sobrevivência. É urgente que saiam leis a proibir que se construam bancos, hotéis ou empresas de transporte nos jardins. É urgente estudar os jardins como expressões da ciência e arte de cada época, para sabermos como protegê-los e como criar os do nosso tempo.

Que prémio daremos a quem nos tornar felizes, e qual o rol de desiderata que temos para apresentar, e a quem?

Em última instância, de Deus, como ponto final, esperamos o regresso ao jardim do Paraíso.

Antes de chegar a Deus, temos pedidos a fazer aos ricos. Dos ricos, nós, que não somos pobres, mas somos jardineiros, esperamos dinheiro. Em troca daremos flores, coroas de louros, um jardim para a vida. Quem tudo tem, que mais pode desejar? Só a bem-aventurança proporcionada aos outros garante aos ricos o mesmo e além dela um pouco de eternidade.

CICTSUL

 
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