Foto: Maria do Céu Costa
MARIA ESTELA GUEDES
«A utilização do Panteão Nacional para um jantar exclusivo que assinalou o encerramento da Web Summit está a gerar controvérsia, merecendo críticas nas redes sociais. O jantar da “Founders Summit”, onde só participaram algumas dezenas de pessoas escolhidas pela organização, decorreu na sexta-feira à noite, no espaço central do Panteão, junto aos túmulos de personalidades como Amália, Eusébio, Almeida Garrett e Sophia de Mello Breyner Andresen.»
Foto e texto do JN, em:
https://www.jn.pt/nacional/interior/jantar-da-web-summit-no-panteao-nacional-causa-polemica-8910486.html
Não acredito que alguém tenha parado para pensar que ia dar um banquete num sepulcro; acredito que os organizadores compulsaram listas de espaços disponíveis e respetivos preços; entre Jerónimos, Torre de Belém e necrópole de Santa Engrácia, provavelmente o mais barato era o Panteão. E vá de marcar a janta ao pé dos ossos ainda revestidos de carne, de carne ainda em putrefação, de putrefação ainda infestada de larvas, de figuras que uma cúpula dirigente entendeu serem representantes maiores da Nação.
Nada disso. Se há responsáveis maiores, são os legisladores. Está muito bem, ou eu não discuto, que se rentabilizem espaços públicos como museus, igrejas, monumentos, castelos, palácios e etc., mas tem de haver exceções. Não vamos dar bailes, concertos dos GNR ou dos UHF na igreja dos Jerónimos! Muito menos se aceita a disponibilidade da Lei para abrir as portas de uma necrópole a uma jantarada, por muito Champagne, genuíno, nada de Murganheira ou Raposeira, que os eleitos para o banquete tenham bebido.
Há só dois aspetos no caso que me motivaram à redação destas linhas: primeiro, a Lei. No meu artigo anterior, sobre o juiz que achou por bem penalizar uma mulher vítima de violência doméstica, por o seu adultério justificar as agressões, indignei-me com o facto de um alto representante da Lei invocar a Bíblia, e portanto a Moral, para julgar, em vez de usar os livros da Lei. E hoje, pelos vistos é de novo a Lei a minha personagem central, visto que a Lei, já que os cidadãos são cegos, ignorantes ou brutos, a Lei é que tem de conduzir os costumes, impedindo que se agridam as consciências dos vivos com desrespeitos pelos mortos. A Lei não pode permitir que cimeiras, congressos, casamentos ou batizados invadam espaços públicos reservados ao silêncio e à memória dos nossos ícones!
O segundo motivo é este acaso do gótico, que me tem cercado nos últimos tempos, primeiro com a música, agora com factos que extravasam do âmbito da criação para o lugar do vivido, aquilo que o Piruka dá como mais valia da sua música: “eu não canto o que invento, canto o que vivo”. Pois, precisamente, a arte gótica canta o que cria, o que leu e viu em filmes como “Nosferatu”. O gótico é a arte da morte, dos passeios por cemitérios, dos sepulcros, dos fantasmas e dos vampiros! Mas tudo isso é interno à criação, não explode para fora dos limites do artefacto; pode é explodir por efeito de alguma bomba terrorista atirada de fora para dentro, mas é outro esse caso.
Que história então é esta, de comer num sepulcro, rodeado de jazigos com cadáveres dentro? Que história tétrica e desolada! Muito me espanta encontrar entre tecnocratas e engenheiros, gente dos bits e dos pixéis, entre políticos, tantos que são fazedores de leis, uma encarnação da arte gótica! Deviam ter ido vestidos e maquilhados de negro, deviam ter-se sugado o sangue uns aos outros, para o filme ser ainda mais apavorante!
E música? Ouviram ao menos a canção “Vampiria”, dos portugueses Moonspell? Se não ouviram, oiçam agora, deixo a mais adequada ao evento. E estão todos com sorte, o gótico não é baixa, é alta cultura!
MÚSICA GÓTICA, EM TRIPLOV.COM ÁUDIO: