Ixquic

MARIA ESTELA GUEDES


Ixquic  é o título de uma antologia de poesia feminista, coordenada por Daniela Sol. Estranho título para quem não conhece a mitologia dos índios da América do Sul, maias, no caso. Segundo o Popol Vuh, Ixquic era a filha de Cuchumaquic, um dos senhores de Xibalbá, as zonas ínferas. Se considerarmos o significado do prefixo ix, «o», e da palavra quic, «sangue», o ambiente que cria a mulher não é muito diverso do que teve e tem noutras paragens e noutras épocas, em que, de um lado, é a grande deusa da fertilidade e das colheitas,  de outro, é considerada um ser demoníaco, sem alma, ou sem mérito para entrar no céu.

Baixando ao esqueleto narrativo, ou ao elemento semântico primordial, o sangue, verificamos que o mito de Ixquic não é muito diferente da história da Virgem Maria,. Pelo planisfério fora, outras virgens mães se conhecem, caso de Ana ou Brígida, divindade celta que a precede, entre nós, nesta parte mais ocidental da Europa.

É esmagador o peso da virgindade. Não será por causa dele que as poetas reunidas na antologia revelam menos presença individual do que de palavra, mas o lugar é tão bom como qualquer outro para referir esta singularidade: os poemas estão assinados, claro, existem duas listas de biobibliografias, uma para escritoras e outra para as artistas que ilustraram os poemas, mas o índice de textos, à entrada da obra, é tecido apenas com o título dos poemas, o que interpreto como vontade de dar às mulheres em geral, representadas aqui pelas poetas, algo que nos tem faltado no curso dos milénios como componente fundamental da nossa identidade: o direito à fala, à comunicação do próprio corpo.  Respeitemos a discrição, calando até o nome das duas portuguesas participantes, tanto mais que seria inviável referir uma centena de mulheres, entre poetas e artistas plásticas.

Vejamos então a história de Ixquic, pois é ela afinal a figura feminina para que remetem todos os textos, uma vez que o mito da virgem mãe, da virgindade,  do sangue derramado na desvirginização e no parto é transnacional e  decerto comum a todas.

Segundo o mito maia, a jovem Ixquic, ainda virgem, depois de ouvir contar a história de Hun-Hunahpú, um deus que tinha sido transmutado em Árvore de Jícara (Crescentia alata), resolveu visitá-lo (ou visitá-la) sem ninguém saber. Durante a visita, a Árvore deixou cair saliva na mão de Ixquic, que assim ficou grávida. Então Ixquic saiu do mundo inferior com Ixmukané e deu à luz, no mundo da luz, exterior, dois meninos gémeos, Hunahpú e Ixbalanqué.

Os mitos assemelham-se tanto uns aos outros como as pirâmides. Na raiz da evolução humana, os mesmos medos e tabus existem, a refletirem a dificuldade de conviver com o outro. Estes mitos são geralmente contados por homens. Com Ixquic,  Lua Azul, temos a diabolização da mulher, a criação de uma simbologia feminina oposta à masculina. É caso então para inquirirmos se uma antologia feminista, em que participaram poetas nascidas na América Latina, na América do Norte, na Europa e em África, bastante expressiva no número de vozes, constrói um discurso similar, em que o homem é considerado o outro, o radicalmente diverso, passível de ser entendido como inimigo. Não creio, prefiro partilhar a ideia de Daniela Sol, organizadora, de que o feminismo é memória coletiva. Neste registo de lembrança há lugar para reivindicações e gritos, mas não para competições. A mulher não quer correr com o homem para chegar à meta antes dele; quer cooperação e companheirismo, afinal ela é a companheira.

Numerosos são os assuntos que afloram nos poemas, a criarem os fundamentos de uma memória que não é inerte, antes convida a darmos as mãos, num movimento de sororidade. Porque os problemas que as mulheres trazem à luz são ancestrais, a despeito de as democracias os contemplarem em legislação que visa acabar com a desigualdade. A verdade porém é que, de um lado, a democracia é sobretudo um modo de ver ocidental, existem muitos regimes diferentes no mundo; de outro lado, mesmo nos países democráticos, o que nos rege não é a legislação, sim outro tipo de leis, muito mais arcaicas, que sobrevivem na família e por isso na sociedade.

Uma centena de mulheres solta um grito acima da sua pátria, irmãs que somos na experiência de uma dor transespacial e transtemporal. Entre homens e mulheres existe um muro que nos remete para um lugar de diferença inaceitável no mundo contemporâneo. Se os nossos gritos fossem as trombetas de Jericó, ele já teria sido derrubado.

Daniela Sol
(compiladora)

IXQUIC
Antología Internacional de poesia feminista

Madrid, Editorial Verbum, 2018