• Timothy Radcliffe, op
    A CAMINHO DE JERICÓ1


 

Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
“Quem é o meu próximo?

Amarás o teu próximo como a ti mesmo. É tão simples como isso. Mas para o doutor da lei não chega. Ele quer uma resposta clara e, de preferência, complexa. Os doutores da lei não teriam nada que fazer se as respostas fossem demasiado simples! Ele quer saber quais são, exactamente, as suas obrigações. Os judeus reflectiam muito sobre quem seria o próximo. A palavra significa, literalmente, “alguém que está perto de mim”. Quanto mais perto estiver, mais obrigações terei para com ele. Há pessoas que estão tão longe de mim que não são, de maneira nenhuma, próximos e por isso não lhes devo nada. Isto era verdade, sobretudo, a respeito desses heréticos, os Samaritanos.

Esta é uma questão que nos interroga a todos nós, hoje, na Europa. ȁQuem é o nosso próximo?” As nossas famílias? Sim, especialmente aqui em Itália! Os que vivem ao nosso lado? Nas aldeias, talvez sim, mas nas grandes cidades onde se desconhece mesmo o nome dos vizinhos, já não. Não os conhecemos, não lhes devemos nada. Gente de outros países da União Europeia ? Serão os ingleses ‘próximos’ dos italianos? Sim, quando se trata do Primeiro Ministro, mas talvez não quando se trata das claques de futebol. E quais são as obrigações que temos para com os imigrantes que chegam todos os dias à Europa vindos da periferia, da Europa de Leste, da Ásia e da África? Que dizer dos imigrantes clandestinos, que fogem da pobreza e por vezes da opressão política ? Serão estes os nossos próximos? Tal como o doutor da lei, queremos respostas claras. Queremos saber o que devemos fazer.

Mas Jesus não dá uma resposta clara. Conta uma história: “Um homem descia de Jerusalém para Jericó...”

As parábolas não servem para ilustrar um ponto de vista. São acontecimentos fortes que nos mudam. Mudam as nossas vidas virando-as do avesso. Um rabi judeu contou a seguinte história passada com o seu avô nos tempos em que este fora aluno do famoso Rabi Baal Shem Tov. E disse: «O meu avô estava paralítico há muitos anos. Um dia pediram-lhe que contasse uma história do seu professor e ele contou como o santo Baal Shem Tov costumava saltar e dançar durante a oração. Ao contar a história, entusiasmou-se de tal modo que se pôs de pé e começou a saltar e a dançar para mostrar como o mestre fazia. A partir daí, ficou curado. É assim que se devem contar histórias.»2

As parábolas de Jesus deviam despertar-nos e arrebatar-nos. Encontramo-nos envolvidos nos seus dramas e elas transformam-nos. Jesus normalmente fazia isto porque conseguia chocar as pessoas. O problema é que conhecemos tão bem as parábolas que já raramente elas nos surpreendem. É como ouvir uma anedota quando já se lhe conhece a piada. Temos de redescobrir o sentido da surpresa. A parábola do Bom Samaritano escandalizou os que primeiro a ouviram. Precisamos de redescobrir o sentido do choque.

Durante a revolução na Nicarágua, um dominicano americano ajudou um grupo de jovens nicaraguanos a representar a parábola do Bom Samaritano durante a Missa. Representaram um jovem nicaraguano a ser espancado e abandonado meio morto na beira do caminho. Um frade dominicano passou por ali e continuou o seu caminho sem fazer caso dele. A seguir, passou um dos inimigos, um ‘Contra’, trajando o uniforme militar. Parou, pôs-lhe um rosário ao pescoço, deu-lhe água e levou-o até à aldeia mais próxima. Nesta altura, metade da assembleia reagiu começando a gritar e a protestar. Era inaceitável que um Contra pudesse agir desta forma. “São pessoas horríveis e nada temos a ver com eles”. A Missa interrompeu-se no meio do caos. Depois, as pessoas começaram a discutir o significado da parábola. Porque tinham ficado chocadas, conseguiram compreendê-la mais profundamente. Concordaram que no futuro não se refeririam mais aos outros como ‘os Contras’ mas como ‘os nossos primos das Honduras’ ou ‘os nossos primos que estão no erro’... Voltaram a fazer o rito inicial da confissão dos pecados, deram uns aos outros o abraço da paz, e continuaram a celebração da Eucaristia. É assim que nos deveríamos sentir chocados.

É evidente que o que nos choca em primeiro lugar é que seja o impuro e herético Samaritano quem oferece ajuda, e não o sacerdote ou o levita. Mas eu quero sugerir a ideia de que a parábola nos lança um desafio mais profundo. Ela põe em causa a nossa própria visão do que é ser-se humano, e de quem é Deus.

O caminho

A história conta-nos uma viagem de Jerusalém até Jericó. Eu fiz essa viagem a pé, descendo a Wadi Quelt. São cerca de 24 Km, através de uma região de deserto rochoso. Fazia tanto calor que um dos meus companheiros ficou um pouco transtornado da cabeça. Mas a história em causa trata de uma viagem mais profunda. A palavra que Lucas emprega para “viagem” é a mesma (hodos) que emprega para fé cristã, “o Caminho”. A parábola é um caminho que transforma a nossa compreensão de Deus e do ser humano.

Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele que caiu nas mãos dos ladrões ?

O doutor da lei pergunta: “Quem é o meu próximo?” E no fim, Jesus coloca uma questão diferente: “Qual dos três mostrou ser o próximo do homem que caiu nas mãos dos ladrões?” A pergunta do doutor põe-no a ele no centro. Quem é o seu próximo? Mas a parábola transforma a pergunta: é o homem maltratado que é, agora, o centro. Quem foi o próximo dele?

Viagem radical

A viagem mais radical que cada ser humano tem de fazer é a da libertação do egoísmo. Começamos esta viagem quando ainda bebés. O bebé recém-nascido é o centro do seu próprio mundo. Crescer é a lenta descoberta de que outros existem e que não existem só para fazer a vontade dele. Por trás do seio há uma mãe. Tornamo-nos plenamente humanos na medida em que aprendemos a ceder o centro a outros.

Para cada um de nós, pois, o maior desafio da vida é deixar de ser o centro do mundo. É uma verdade que se conhece intelectualmente, mas que é muito difícil de praticar. E penso que é particularmente difícil na sociedade contemporânea. A modernidade consagrou a imagem do ser humano como essencialmente solitário, desapegado dos outros, livre de obrigações, descomprometido. É o ego da sociedade consumista. Em Itália, tendes, de certo modo, preservado, graças a Deus, uma visão mais antiga e mais tradicional do ser humano. Mas, por toda a parte, na aldeia global, podemos ver sinais do triunfo da “Me generation”, a tirania do ego. Como poderemos aprender a ceder e a dar aos outros o centro ?

Um Samaritano, ao passar, viu o homem ferido
e ao vê-lo teve compaixão.

A palavra que traduzimos por “ter compaixão” é uma das mais importantes do Novo Testamento. Significa ser tocado no âmago do próprio ser, nas próprias entranhas. É o choque que nos dá a consciência da presença de um outro.

Em Nova Iorque, foi feita uma experiência com um grupo de seminaristas. No programa de formação para a pregação, pediu-se-lhes que preparassem uma homilia sobre a parábola do Bom Samaritano. Deviam preparar os seus textos e em seguida dirigir-se a pé para o estúdio onde o sermão seria gravado em vídeo. Em certo ponto desse percurso, um actor, representando um homem ferido e maltratado, jazia por terra, coberto de sangue, pedindo ajuda. Oitenta por cento dos seminaristas passaram por ele e nem sequer o viram. Tinham estudado a parábola e feito sobre ela belas composições literárias e, no entanto, passaram ignorando-o. Que teremos de fazer para nos abrirmos aos outros ?

Para a maior parte das pessoas, esta profunda consciência do outro ocorre, da maneira mais forte, quando nos apaixonamos por alguém. Quando nos apaixonamos, deixamos, pelo menos de vez em quando, de ser o centro do universo, e cedemos ao outro esse lugar. Deixamos de ser o sol e passamos a ser a lua.

Mas isto, realmente, não responde à nossa questão. Não podemos apaixonar-nos por toda a gente! E o Bom Samaritano não se apaixonou pelo homem ferido! A pergunta é, pois, o seguinte: Que teremos que fazer para nos deixarmos tocar por quem mal conhecemos ? O Samaritano é tocado porque vê o homem ferido. O sacerdote e o levita também o vêem, não como alguém que precisa de ajuda, mas antes como uma possível fonte de impureza. Voltaremos a eles mais tarde.

O primeiro desafio é olhar com olhos de ver. Em todas as sociedades há os que ocupam a ribalta e os que ficam na sombra. Na nossa sociedade quem aparece são os políticos, as estrelas de cinema, os cantores e os futebolistas. Aparecem nos lugares públicos, na publicidade, e nos écrans da televisão, mas os pobres tornamo-los invisíveis. Desaparecem das listas eleitorais. Não têm voz nem rosto. E os imigrantes clandestinos nem ousam mostrar-se! Se não tiverem papeis, têm mesmo de se esconder. Têm de aprender a arte da camuflagem.

Esconder o pobre

Quando o Papa visitou a República Dominicana, o governo construiu um muro ao longo da estrada do aeroporto até ao centro da cidade para o impedir de ver os bairros degradados onde viviam os pobres. O povo chamou-lhe “o muro da vergonha”. Será que ousamos olhar, com olhos de ver, os nossos pobres e deixar-nos tocar por eles? Quais são os muros da vergonha que levantamos na nossa sociedade para esconder os pobres?

E o Samaritano aproximando-se cuidou-lhe das feridas deitando nelas azeite e vinho; colocou-o no seu próprio cavalo e levou-o a uma estalagem e tratou dele. No dia seguinte, tirou dois denários e deu-os ao hospedeiro dizendo: Trata dele, e quanto gastares a mais, na volta to pagarei.

Sentir-se tocado não chega. Quando vou ao cinema, deixo-me envolver pelos personagens dos filmes e comovo-me facilmente. Os amigos têm vergonha de ir ao cinema comigo! Mas quando o filme acaba e vamos comer uma boa pizza, depressa me esqueço. A compaixão cansa-nos! Vemos nos écrans das nossas televisões milhares de imagens de homens, mulheres e crianças, feridos e a morrer, caídos à beira das estradas. Como reagir a tanta miséria?

Correr o risco

A compaixão do Samaritano transtorna os seus planos. Preparara-se para a viagem com comida, bebida e dinheiro. No entanto, usa tudo isso para um fim que não tinha imaginado. Dois denários era muito dinheiro, o suficiente para pagar mais de três semanas de estadia com pensão completa. Dá mesmo o que não tem, o que contava vir a ganhar em Jericó. Arrisca fazer uma promessa em aberto que não sabe onde o levará.

Quando o doutor da lei pergunta: “Quem é o meu próximo?” o que ele pretende é definir as suas obrigações. Quer saber com antecedência o que precisa ou não fazer. Mas a resposta do Samaritano leva-o para um terreno desconhecido. Não pode saber quanto o estalajadeiro vai pedir. Há um velho ditado que diz: “Se queres fazer rir Deus, conta-lhe os teus planos.” A verdadeira compaixão transtorna os nosso planos, e lança-nos no imprevisto. Se ousarmos olhar com olhos de ver os pobres, os feridos, os estrangeiros, os marginais que vivem à nossa beira, não saberemos que consequências isso poderá trazer à nossa vida.

Qual dos três te parece ter sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões? O doutor respondeu: Aquele que usou de misericórdia para com ele. Então Jesus disse-lhe: Vai e faz o mesmo.

Já vimos que o doutor da lei faz uma pergunta que o põe, a ele, no centro, e Jesus responde com uma pergunta que põe o outro no centro. Mas há mais. O doutor da lei pergunta quem é o seu próximo. Parte do princípio que já temos próximos, mas devemos saber quem eles são. E Jesus responde-lhe perguntando quem se tornou o próximo do homem que caiu nas mãos dos ladrões. O Samaritano faz-se um próximo daquele homem. Cria com ele uma relação que não existia antes.

O medo do outro assombra a Europa nos nossos dias. Na Alemanha, parecem aumentar os grupos neo-Nazis. Na Inglaterra, tem havido recentemente, motins raciais nas cidades do norte, em Oldham e Leeds. A Europa sente-se ameaçada por estrangeiros. Em todas as sociedades existe medo dos que são diferentes, que têm diferentes religiões, cor de pele diferente, que se vestem diferentemente, falam línguas diferentes. O convite da parábola é a fazer deles próximos. Helder Câmara, Arcebispo do Recife no Brasil, foi muitas vezes acusado de ser comunista por causa da sua preocupação com os pobres das favelas, nos morros à volta da cidade. Ele dizia: “Se não for visitá-los, lá em cima, nas suas favelas e tratá-los como irmãos e irmãs, serão eles que descerão dos morros às cidades com bandeiras e espingardas.”

“Vai e faz o mesmo”. Estas palavras são um convite a construir uma sociedade que ainda não existe. Uma política cristã é algo mais do que a organização da sociedade e a regulamentação de interesses em competição. É o ansiar por uma comunidade em que o diferente, o estrangeiro, o pobre sejam verdadeiramente os nosso próximos. Aponta na direcção do Reino. Ao contrário do comunismo, nós, cristãos, não acreditamos que podemos, por nós mesmos, construir o Reino. O Reino virá como um dom imerecido e que ultrapassa a nossa imaginação. Mas a nossa política em busca de comunhão com os outros, abre-nos as mãos para recebermos esse dom. A política foi definida como “a arte do possível”. A política cristã é marcada pela esperança do que muitos consideram o impossível. Queremos correr o risco de ousar realizar uma comunhão que está para além das nossas capacidades. A política cristã é a arte do impossível.

Cada um de nós

Em última análise, isto significa perdermos o que secundariamente nos identifica e que nos separa uns dos outros. A parábola fala de uma viagem que transforma a identidade dos participantes. O homem assaltado pelos ladrões é simplesmente chamado ‘um certo homem’. Não se diz se é judeu ou samaritano, inglês ou italiano. Ele é cada um de nós, qualquer ser humano. E quando Jesus pergunta quem se tornou o próximo do homem que caiu nas mãos dos ladrões, o doutor da lei não responde, “Foi o Samaritano”. Apenas diz, “Foi o que mostrou misericórdia para com ele”. Também o Samaritano foi libertado da identidade secundária de herético. O relato começa por ser uma história de Judeus e Samaritanos e termina sendo a história de dois seres humanos. Os que guardam a sua identidade original são os que se limitam apenas a passar adiante, o sacerdote e o levita. Perdem a oportunidade de descobrir uma nova forma de se ser humano. Passam adiante, mas continuam amarrados à sua antiga identidade.

Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Isto significa muito mais do que amar o próximo tanto como a nós mesmos. Somos convidados a amá-lo como parte de nós mesmos. Amamos os membros da nossa família como a nós mesmos, porque eles fazem parte do que somos. Somos da mesma carne e do mesmo sangue. Amar o estrangeiro como a mim mesmo é descobrir uma nova identidade que me transforma. O Samaritano pratica o que chamamos caridade, mas no antigo sentido da palavra3. Até ao século dezassete, pelo menos em inglês, ‘caridade’ significava os laços que nos ligam uns aos outros como membros do Corpo de Cristo. Depois do século dezassete, com a grande alteração que sofreu o modo de percebermos a nossa humanidade, veio a significar, principalmente, a esmola que damos aos pobres. Deixou de exprimir o amor dos nossos irmãos e irmãs e acabou por significar a ajuda oferecida a estranhos.

O meu irmão, o pobre

Quando, por vezes, chegava ao conhecimento de D. Helder Câmara que um pobre tinha sido apanhado pela polícia, pegava no telefone e dizia: “Soube que prendestes o meu irmão”. E a polícia desfazia-se logo em desculpas. “Mas, que terrível engano, Excelência. Não sabíamos que era vosso irmão. Vai ser já libertado!” E quando o Arcebispo chegava ao posto da guarda para levar o homem, o polícia, muito intrigado, fazia notar: “Mas... o seu irmão não tem o mesmo nome de família de V. Excelência!” Ao que Helder Câmara respondia que todos os pobres eram seus irmãos e suas irmãs.

Assim, amar o meu próximo como a mim mesmo é lançar-me no caminho. O caminho conduz, não apenas de Jerusalém a Jericó, mas ao Reino onde descobrirei, plenamente, quem sou. É uma viagem que me liberta de tudo o que secundariamente me identifica, e me configura com Cristo. Como diz o apóstolo S. João: “Ainda não se manifestou o que havemos de ser, mas sabemos que quando Cristo se manifestar, seremos semelhantes a ele porque o veremos como ele é” (I Jo 3:2).

Como ousaremos empreender essa perigosa caminhada para o Reino? Como ousaremos partir de Jerusalém para Jericó? Podemos ser assaltados por ladrões e deixados meios mortos. Podemos encontrar algum homem ferido e esse encontro mudar as nossas vidas. Não será mais seguro ficar em casa? Não. Afinal, podemos ousar enfrentar ‘o caminho’ porque Deus nos precedeu. Foi Deus quem saiu de Jerusalém para Jericó e nós podemos seguir sem medo.

A parábola fala da transformação da identidade humana. Mas bem no fundo, há também uma outra história, a da transformação da identidade de Deus. Mas não se aflijam: essa, irei contá-la muito rapidamente!

Um homem descia de Jerusalém para Jericó.

Jerusalém é a cidade santa, o lugar onde Deus habita, no Templo. Mas a viagem afasta-nos do Templo, leva-nos para longe do mais santo lugar na terra.

O sacerdote também vai para Jericó. De facto, muitas famílias sacerdotais viviam em Jericó e, quando acabavam o seu turno no Templo, voltavam para suas casas por este mesmo caminho. Ao ver o corpo do homem ferido, o sacerdote segue em frente. Porquê? Não necessariamente por não ter coração. O ferido é descrito como ‘meio morto’ e, é geralmente aceite que tocar no corpo dessa pessoa torná-lo-ia impuro. O Deus da vida não tem nada a ver com a morte e, por isso, os sacerdotes do Templo estavam inteiramente proibidos de tocar nos mortos. Ele não vê um homem a precisar de ajuda, mas uma ameaça ao seu estado de santidade. E o levita, que também fazia serviço no Templo, teria passado adiante pela mesma razão.

Quanto ao Samaritano, esse estava completamente a milhas da santidade do Templo. Era um herético, um cismático. Os Samaritanos tinham mesmo construído um outro Templo. Eram a impureza personificada. Mas os seus gestos de compaixão revelam o novo lugar em que a santidade de Deus se manifesta. É mesmo possível que a referência ao vinho e ao óleo designe os dois elementos usados nos sacrifícios do Templo. É aqui, nos gestos de compaixão, que se encontra o verdadeiro lugar do sacrifício onde Deus está. O texto, no seu conjunto, é habitado pelo de Oseias 6:6, “Eu quero a misericórdia e não o sacrifício”. E o Samaritano leva o homem para uma estalagem. A palavra que usa em grego é muito sugestiva e significa ‘muito bem vindo’. Os cadáveres não são ameaça nenhuma à verdadeira santidade. Na verdade, o Deus da vida pode abraçar os mortos e dar-lhes vida. A cruz é o verdadeiro Templo em que a glória de Deus é manifesta.

Da periferia para o centro

Um dos mais comoventes funerais que eu alguma vez celebrei foi o de um homem chamado Benedict. Morreu de SIDA por volta de 1985. Ungi-o uma hora antes da sua morte e perguntei-lhe se tinha algum desejo especial. Respondeu-me que queria que o seu cortejo fúnebre saísse da Catedral de Westminster. Foi numa altura em que pouco ainda se sabia da doença da SIDA e havia muito medo e preconceitos. Mas as autoridades da Catedral aceitaram o seu pedido. O caixão foi colocado mesmo no centro da nave, no centro do Catolicismo Inglês. Foi um símbolo magnífico do lugar onde Deus se encontra. Benedict fora fulminado por uma doença terrível, que traz consigo estigmas de rejeição, convulsão e medo. Mas agora ele está no centro deste lugar santo, rodeado pelos amigos, muitos dos quais tinham SIDA também. O Deus da vida é manifesto quando os de fora se tornam o centro.

‘Quem é o meu próximo?’ perguntou o doutor da lei. É uma questão que preocupa a Europa, hoje. Que obrigações temos para com os outros? Há muitas questões difíceis a que temos que nos esforçar por responder. Jesus não nos oferece respostas simples. Precisamos da ajuda dos doutores da lei e dos políticos. O que a parábola faz é alterar a maneira de colocar as questões. Como é que eu me posso tornar um próximo para o homem que sofre? Como é que eu me posso descobrir com ele e para ele? Como é que eu aí posso descobrir Deus? Porque, afinal, é Deus que jaz à beira do caminho, espancado e nu, à minha espera.


(1) Uma das últimas conferências do ex-Mestre da Ordem dos Pregadores, Frei Timothy Radcliffe O.P., proferida em Itália perante uma audiência de políticos e magistrados europeus, em Junho de 2001

(2) Martin Buber, Concilium, Maio 1973.

(3) Cf. John Bossy, Christianity in the West,: 1400-1700, Oxford, 1985, p. 168.