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INTRODUÇÃO | |
A segunda parte do título «o Antigo Testamento e Jesus Cristo» é cristã. As expressões «Antigo Testamento» e «Jesus Cristo» foram forjadas pelo cristianismo para expressar conceitos que lhe são próprios. De igual modo, só este discerne uma relação entre as Escrituras a que chama o «Antigo Testamento» e a pessoa de Jesus em quem reconhece o Cristo. Vendo o cristianismo no Antigo Testamento o anúncio, o esboço ou a figura de Jesus Cristo, o estudo encabeçado pelo título «o Antigo Testamento e Jesus Cristo» procura responder às seguintes perguntas: como e em que sentido o Antigo Testamento é anúncio, esboço ou figura de Jesus Cristo? Trata-se de questões de teor hermenêutico. De facto, as ditas questões constituem o cerne da leitura cristã das Escrituras sagradas que o cristianismo herdou do judaísmo. Ambas as questões são vastíssimas e têm numerosas ramificações, estando por isso fora de questão estudá-las de maneira completa e aprofundada no quadro desta exposição. Proponho-me assinalar só alguns pontos fundamentais de cada uma delas. Deter-me-ei mais na primeira do que na segunda. |
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Começarei por apresentar os dois termos da relação: primeiro, as Escrituras Sagradas judaicas no séc. I d. C.; depois, a pessoa de Jesus de Nazaré vista pelos seus contemporâneos mas sobretudo pelo próprio. Na impossibilidade de estudar as numerosas passagens evangélicas nas quais Jesus fala das suas relações com as Escrituras, proponho-me ler só Lc 4,16-30, texto que me parece constituir uma excelente amostra. |
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Conhecem-se as Escrituras judaicas do tempo de Jesus graças aos chamados manuscritos do Mar Morto (cerca 250 a. C.- cerca 65 d. C.), às obras de Filão de AIexandria (13-54 d. C.), ao Novo Testamento e às obras de Flávio Josefo (37-96 d. C.). Ressalta desses documentos que existiam, na primeira metade do séc. I d. C., três escritos ou colectâneas de escritos aceites por todos os judeus, independentemente do grupo político-religioso a que pertenciam, da língua que falavam e do lugar onde habitavam. A existência desses três escritos ou colectâneas de escritos está já documentada no prólogo do Eclesiástico (w.1 e 8-9), escrito em grego, em 132 a. C., em AIexandria. A primeira e a mais importante das colectâneas era a Lei (Torá), designada de várias maneiras: Lei, Lei de Moisés, livro de Moisés, livros de Moisés, a Escritura, o Escrito, o Escrito de Moisés. Vinham depois os livros dos profetas rodeados por um conjunto de peças poéticas atribuídas globalmente a David. As duas últimas colectâneas são mencionadas ora em conjunto (livro dos Profetas e de David), ora independentemente uma da outra (livro dos profetas, livro de David/livro dos Salmos/Cânticos de David). A título de ilustração, cito extractos de um texto de Qumran e uma passagem do Novo Testamento. Começo pelo texto de Qumran. " (...) Além disso está escrito no livro de Moisés: Não introduzireis nenhuma abominação em vossa casa, pois a abominação é uma coisa detestável. Sabeis que estamos separados da maioria do povo (...). Sabeis que não pode encontrar- se nas nossas acções nem deslealdade nem engano nem maldade, pois relativamente a essas coisas também vos temos escrito que deveis compreender o livro de Moisés e os livros dos profetas e de David (...). Também está escrito: Virão sobre vós todas estas coisas no final dos dias, as bênçãos e as maldições (...). Está escrito no livro de Moisés e no livro dos profetas que virão (...)"1. Lc 24,44-45 documenta a mesma realidade de maneira mais precisa. «Depois disse-Ihes (isto é, Jesus): "Isto foi o que eu vos disse quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então abriu-Ihes a mente para que entendessem as Escrituras"" (cf também Lc 24,25-27) . No tempo de Jesus, a Lei de Moisés talvez ainda não se restringisse para todos os judeus aos cinco primeiros livros da Bíblia actual. É possível que um ou vários grupos judaicos incluissem na Lei de Moisés outros livros. A título de exemplos, mencionarei o livro dos Jubileus e o Rolo do Templo. Escrito no séc. II a. C., o livro dos Jubileus apresenta-se como se tivesse sido comunicado a Moisés por um anjo. Além disso, o seu conteúdo é paralelo aos relatos do Génesis e da primeira parte do Êxodo. Ora, encontraram-se em Qumran restos de quinze exemplares dos Jubileus, tantos como do Génesis, facto esse que aponta para a igualdade de importância dos dois livros aos olhos da comunidade que lá vivia. O livro dos Jubileus entrou no cânone de algumas igrejas, sobretudo etíopes. Isso supõe que era sagrado pelo menos para alguns meios judaicos dos primeiros tempos do cristianismo, talvez não só para a comunidade de Qumran. Pode dizer-se outro tanto do Rolo do Templo, atribuído também a Moisés e apresentado como «uma segunda Lei". Para a comunidade de Qumran, o Rolo do Templo porventura também fazia parte da Lei de Moisés ou do Livro de Moisés. A colectânea dos livros proféticos ainda não correspondia à secção que mais tarde a tradição judaica chamará os profetas e a tradição cristã os livros históricos e os livros proféticos. O caso do livro de Jeremias é um dos mais conhecidos2. Os contornos da «obra de David» são ainda mais difíceis de determinar do que os contornos das outras duas colectâneas. Duas coisas são no entanto certas. O actual livro dos Salmos constituia o núcleo da obra atribuída a David. Pelo menos em Qumran e no Novo Testamento, os Salmos são considerados proféticos. Os primeiros indícios da «profetização» dos Salmos encontram-se nos livros das Crónicas3. Numa palavra, no tempo de Jesus, não existia ainda uma lista dos livros sagrados reconhecida por todos os judeus nem, no caso de vários livros, um texto único e normativo. Existiam três colectâneas de livros mas os seus contornos não eram exactamente os mesmos para todos os judeus. Além disso, alguns dos livros que eram reconhecidos por todos existiam em edições mais ou menos diferentes. Esta situação das Escrituras reflete a fragmentação e o pluralismo do mundo judaico no séc. I d. C.4 O cânone judaico foi encerrado mais tarde, no fim do séc. I, em parte em reacção contra os cristãos que aceitavam como Escrituras não só muitos dos seus próprios escritos mas também um conjunto heterogéneo de livros judaicos, sem ter em conta a língua em que foram escritos, o facto de serem originais ou traduções e o lugar de origem5. O corpo das Escrituras do judaísmo rabínico é habitualmente designado pelo termo Miqra' (literalmente, «leitura») ou pelo acrónimo TaNaK, formado pelas iniciais das três colectâneas que as constituem: Torá (Lei), Nebi'ím (Profetas) e Ketubím (Escritos) Forjada pelos cristãos, a expressão Antigo Testamento7 está documentada pela primeira vez em 2 Cor 3,14, onde parece referir-se particularmente à Lei de Moisés (Torá). Mais tarde, a expressão tornou-se corrente entre os cristãos para designar o conjunto das Escrituras que o cristianismo herdou do judaísmo8. O Antigo Testamento contrapõe-se ao Novo Testamento, escritos de origem cristã que o cristianismo não só reconhece também como Escrituras sagradas mas considera como sendo o seu foco9. O Antigo Testamento, conceito e realidade cristãos, não coincide inteiramente com as Escrituras Sagradas do judaísmo rabínico. É mais vasto do que estas. O Antigo Testamento comporta todos os livros das Escrituras judaicas. Além deles, contém outros, chamados livros deuterocanónicos na tradição católica e apócrifos na tradição protestante. |
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II. JESUS DE NAZARÉ, UM PROFETA DE QUEM SE ESPERA A lIBERTAÇÃO |
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Os Evangelhos são praticamente as únicas fontes sobre Jesus de Nazaré. Ora, é sabido que os Evangelhos não são livros de história no sentido moderno da palavra mas anúncios do Cristo ressuscitado. Os autores dos Evangelhos, que são em grande parte os porta-vozes das comunidades cristãs a que pertenciam e a que se dirigem, interpretam a pessoa, a vida, a acção e a mensagem de Jesus à luz da sua experiência pascal. A Dita experiência modelou os relatos que os evangelistas dão da vida de Jesus. Por isso, é difícil - às vezes impossível - destrinçar nos Evangelhos os acontecimentos históricos e o que é fruto da interpretação pós-pascal. Desde há mais de dois séculos, a exegese histórico-crítica esquadrinha os Evangelhos com a mira de operar essa destrinça. É a chamada busca do Jesus histórico, contraposto ao Jesus Cristo da fé10. Um dos seus frutos mais conhecidos são as vidas de Jesus. As sucessivas gerações de estudiosos escreveram cada qual a sua ou as suas. As imagens que elas dão de Jesus são muito diferentes umas das outras. De facto, é um lugar-comum dizer que as vidas de Jesus, como os estudos sobre o Jesus histórico em geral, informam porventura mais sobre a personalidade dos seus autores do que sobre a personalidade histórica de Jesus. Uma coisa é certa. Jesus de Nazaré foi um judeu da Galileia onde passou quase toda a sua vida e desenvolveu a maior parte da sua actividade pública. Ora, os estudos recentes mostraram as particularidades da Galileia de então nos domínios social, cultural e religioso. No entanto, a interpretação dessas particularidades é objecto de discussão entre os especialistas. Do ponto de vista social, a Galileia parece ter conhecido nesse tempo um processo de urbanização, que afundou o fosso entre as classes detentoras do religioso, o judaísmo da Galileia tinha traços que o distinguiam do judaísmo de Jerusalém ou da Judeia em geral11. O enraizamento galicaico de Jesus talvez não tenha influenciado só a formulação da sua mensagem. Os Evangelhos atribuem a Jesus uma actividade bastante variada que parece supor o desempenho de vários papéis ou funções sócio-religiosos. Jesus proclama a vinda iminente do Reino de Deus12 como um profeta, ensina como um doutor ou um sábio, cura doentes e exorcisa possessos como um homem que está investido do poder de Deus. Parece difícil colar uma etiqueta a Jesus. Os historiadores privilegiam, segundo as suas próprias tendências, ora um ora outro dos papéis que os Evangelhos lhe atribuem, às vezes com a exclusão dos restantes. Ora, tal exclusão não se impõe, podendo um homem de Deus desempenhar ao mesmo tempo mais do que uma função. Tudo indica que os contemporâneos de Jesus viram nele um profeta. Há duas séries de textos evangélicos particularmente significativas a esse respeito. A primeira, que se lê em Mc 6,15 e em Lc 9,8, conta a reacção de Herodes perante a fama de Jesus. A segunda, presente nos três Evangelhos sinópticos, relata a chamada confissão de Pedro (Mc 8,28 par Lc 9,19 e Mt 16,14). As duas séries de textos informam sobre o que a opinião pública pensava de Jesus. Para uns, Jesus era João Baptista ressuscitado; para outros, Elias; para outros enfim, um dos profetas de outrora que ressuscitou13. Jesus é ainda chamado profeta pela multidão ou por um ouvinte individual em vários outros textos próprios a um ou a outro evangelho (Mt 21,11.46; Lc 7,16.39; 24,19; Jo 4,19; 9,17). Que entendiam por profeta os contemporâneos de Jesus? Como sempre acontecera ao longo da história contada pelas Escrituras14, existia então no judaísmo mais do que um modelo profético. A principal fonte sobre a matéria, assim como sobre a Palestina do tempo de Jesus em geral, são as obras do historiador judaico Flávio Josefo (37-96 d. C.)15. O Novo Testamento confirma algumas das suas informações. Josefo menciona e põe em cena figuras proféticas bastante diferentes. Apresenta-se a si próprio como profeta, um novo Jeremias, que exorta em nome de Deus à submissão ao poder estrangeiro e denuncia as ilusões dos que incitam à revolta contra Roma em nome do mesmo Deus. Sente-se incompreendido como Jeremias e perdido numa corte estrangeira como Daniel16. Josefo assinala a existência de profetas entre os essénios17, dos quais põe em cena três: Judas18, Menaém19 e Simão20. Caracterizam-se pelo anúncio do futuro estando a sua capacidade de previsão relacionada de alguma forma com o conhecimento das Escrituras. Josefo menciona também a existência de profetas entre os fariseus dos quais nomeia Polion e Samaías. Como os profetas essénios, caracterizavam-se pelo anúncio do futuro21. Josefo relata circunstanciadamente a história de Jesus filho de Ananias22. Quatro anos antes da guerra (62 d.C.) Jesus filho de Ananias, um camponês, subiu a Jerusalém para a festa das Cabanas. Uma vez em Jerusalém, pôs-se a gritar no templo, dizendo: "Uma voz do nascente, Dia e noite, percorria as ruas da cidade gritando essas palavras. Exasperados pelo mau agoiro, alguns notáveis mandaram-no prender e espancar. Sem dirigir palavra aos algozes, o homem não parava de gritar a mesma coisa. Pensando os magistrados que era movido provavelmente por um impulso sobrenatural, levaram-no ao procurador, Luceio Albino (62-64 d. C.). Flagelado e com a carne esfarrapada até aos ossos, o homem não pediu nada nem verteu uma lágrima. Num tom lancinante ao máximo, respondia a cada chicotada: «Ai de Jerusalém!». Às perguntas do procurador, limitava-se a repetir o seu cântico fúnebre sobre a cidade. Declarando-o louco, o procurador fê-lo soltar. Durante todo o tempo que se seguiu até à guerra, o homem, sem dirigir uma palavra a ninguém e indiferente perante todos e tudo, continuou a repetir, como uma oração sabida de cor a sua lamentação «Ai de Jerusalém!». Era durante as festas que ele mais gritava. Tendo feito isso durante sete anos e cinco meses, não se lhe extinguiu a voz nem se cansou. Por fim, aquando do cerco, vendo realizado o seu presságio pôde repousar. Com efeito, indo e vindo aos gritos sobre a muralha disse: «Ainda ai da cidade, do povo e do templo!». No momento em que ia a acrescentar para terminar «e também ai de mim!», uma pedra arremessada por uma catapulta acertou-lhe e matou-o. Entregou assim a alma com a boca ainda cheia dos seus oráculos. Josefo parece ter tomado Jeremias como modelo da figura de Jesus filho de Ananias acentuando-lhe o aspecto dramático23. Embora sejam bastante diferentes umas das outras, as personagens que mencionei até agora têm em comum o facto de se limitarem a anunciar acontecimentos em cuja realização não vão intervir, nem pretendem fazê-Io. Por isso os especialistas as classificam na mesma categoria e apelidam-nas como profetas oraculares. Outro traço comum é a sua relativa solidão. Apesar de relacionar alguns com um ou outro dos grupos político-religiosos judaicos de então, Josefo não apresenta nenhum deles como um mestre ou chefe rodeado de discípulos ou de seguidores. Em geral, estes profetas pretendem reproduzir modelos bíblicos. Nalguns casos, o anúncio do futuro que os caracteriza parece assentar no conhecimento das Escrituras. Josefo reconhece-os a todos como autênticos profetas. Entre Jesus Filho de Ananias e Jesus de Nazaré, há semelhanças que não escaparam aos historiadores. Ambos são de origem rural, pronunciam uma palavra contra o templo, são presos pela aristocracia sacerdotal e entregues à autoridade romana24. Josefo documenta a existência doutro tipo de profetas, contando de maneira mais ou menos pormenorizada a actuação de vários de entre eles. Cerca de 36, sob o procurador Pôncio Pilatos, um profeta samaritano exortou os seus concidadãos a subir com ele ao monte Garizim prometendo mostrar-lhes o lugar onde Moisés escondeu os vasos do templo. Os que responderam ao seu apelo concentraram-se, armados, no sopé do monte, mas, antes de subirem, foram desbaratados pelas tropas romanas25. Uma década mais tarde, sob o procurador Cúspio Fado (44-48), «um charlatão chamado Teudas convenceu muita gente a pegar no que tinha e a segui-Io para junto do Jordão. Dizia-se profeta e pretendia que, por sua ordem, o rio se fenderia em dois e permitir-lhes-ia passar facilmente (...). Fado mandou a cavalaria (...) e matou muitos deles num ataque de surpresa26. Sob o procurador António Félix (52-60), várias pessoas anónimas «convidaram a multidão a segui-Ias para o deserto» prometendo mostrar-lhes «prodígios e sinais evidentes»27 ou "sinais de liberdade"28. Os textos informam que muitos responderam ao apelo. Ainda sob Félix apareceu outro profeta, um Egípcio. Cito a versão do episódio dada nas Antiguidades Judaicas: «Por esse tempo, chegou a Jerusalém um homem vindo do Egipto, que dizia ser profeta e aconselhava o povo a subir ao monte chamado das Oliveiras, que fica em frente da cidade (...). Declarava que queria mostrar-lhes lá de cima como os muros de Jerusalém se derrubariam por sua ordem e prometia fazê-Ios assim entrar na cidade. Quando Félix foi informado disso, ordenou aos seus soldados que pegassem nas armas e, saindo de Jerusalém com um grande número de cavaleiros e de infantes, atacou os companheiros do Egípcio, massacrou quatrocentos e capturou vivos duzentos. O próprio Egípcio fugiu e desapareceu"29. Sob o procurador Pórcio Festo (60-62), um homem persuadiu pessoas que o seguissem para o deserto, prometendo-lhes que lá obteriam a salvação e o fim dos seus males30. F. Josefo conta ainda que no fim do cerco de Jerusalém, quando a cidade já estava a arder, seis mil pessoas refugiaram-se no pórtico do pátio exterior do templo porque um profeta Ihes tinha dito que lá veriam os sinais da libertação31. Os historiadores designam estes profetas de diferentes maneiras: profetas messiânicos, profetas de sinais e profetas de acção. Contrariamente aos profetas oraculares, os profetas de sinais não se limitam a revelar a vontade de Deus. Propõem-se reproduzir uma das grandes libertações de outrora contadas pelas Escrituras: o êxodo, a entrada no país de Canaã e a sua conquista. De aí que tomem como modelo a Moisés e a Josué, os protagonistas dessas grandes libertações32. Além disso, os profetas de sinais têm seguidores que formam grupos identificáveis. O retrato que Josefo pinta desses grupos não é uniforme. Em geral, apresenta-os como estando armados na sua obra a Guerra Judaica; desarmados, nas Antiguidades Judaicas, escritas mais tarde33. Insurrecto arrependido, Josefo não reconhece estas personagens como autênticos profetas por causa do seu carácter subversivo em relação ao poder romano. Trata-os de charlatães, de impostores ou de bandidos. Aos olhos dos seus contemporâneos, nomeadamente das autoridades romanas, Jesus era sem dúvida um dos profetas de sinais. Como eles, tinha seguidores e acabou por entrar em colisão com o poder romano, que o condenou e executou como agitador político. |
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III. JESUS, O PROFETA QUE INAUGURA O REINO DE DEUS ANUNCIADO PELAS ESCRITURAS |
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Qual foi a compreensão que o próprio Jesus teve da sua missão e da sua pessoa? Que relação de Jesus com as Escrituras pressupõe essa compreensão? Qual foi o papel desempenhado pelas Escrituras na formação da dita compreensão? Não podendo analisar todos os textos evangélicos susceptíveis de darem respostas a estas perguntas, vou centrar o estudo em Lc 4,16-30. Segundo esse texto, Jesus declarou no acto inaugural da sua pregação que a sua obra realiza a missão do ungido de Deus que Is 61,1-3 põe em cena. De aí que Lc 4,16-30 me pareça ser particularmente pertinente para a questão da relação de Jesus com as Escrituras. No âmbito do estudo de Lc 4,16-30, referir-me-ei a Mt 5,3-6 par Lc 6,20-21 e Mt 11,2-6 par Lc 7,18-23, passagens que têm afinidades estreitas com esse texto. Abordarei também os Escritos do Mar Morto para saber como se posicionavam os seus autores em relação a Is 61,1-3 e, de uma maneira geral, em relação às Escrituras. |
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«(16) Ele (Jesus) foi a Nazara34, onde foi criado, e, segundo o seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para ler. (17) Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías. Abrindo-o, encontrou a passagem onde está escrito: "(18) O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para dar a Boa Nova aos pobres (literalmente, «evangelizar os pobres»). Enviou-me para proclamar a libertação aos cativos e aos cegos o recobro da vista, para pôr em liberdade os oprimidos, (19) para proclamar um ano de graça do Senhor"35. (20) Enrolou o livro, entregou-o ao oficiante36 e sentou-se. Todos na sinagoga tinham os olhos fitos nele. (21) Então começou a dizer-lhes: "Hoje mesmo se realizou a Escritura que acabastes de ouvir" . (22) Todos testemunhavam a seu respeito e ficavam admirados com as palavras cheias de graça que saíam da sua boca. E diziam: "Não é o filho de José?" (23) Ele, porém, disse: "Certamente ides citar-me o provérbio: 'Médico cura-te a ti mesmo'. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafamaum, fá-Io também aqui na tua terra". (24) Mas em seguida acrescentou: "Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido na sua terra. (25) De facto, eu vos digo que havia em Israel muitas viúvas nos dias de Elias, quando o céu permaneceu fechado durante três anos e seis meses e uma fome devastou toda a região; (26) Elias, no entanto, não foi enviado a nenhuma delas, excepto a uma viúva em Sarepta, na região da Sidónia. (27) Havia igualmente muitos leprosos em Israel no tempo do profeta Eliseu; todavia nenhum deles foi curado, a não ser o sírio Naamã." (28) Perante estas palavras, todos na sinagoga se enfureceram. (29) E, levantando-se, expulsaram-no para fora da cidade e conduziram-no até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava construída, com intenção de o precipitar de lá. (30) Ele, porém, passando pelo meio deles, prosseguia o seu caminho. |
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O V 16a é a introdução. Fornece várias informações de forma muito concisa Osvv.16b-21 relatam o desenrolar de parte do oficio sinagogal do sábado de manhã. Esse ofício comportava os quatro elementos seguintes 1) Orações «<Escuta, Israel», orações, bênçãos); 2) Leitura da Lei (Seder) 3) Leitura dos profetas (haftara) 4) Homilia É surpreendente que o texto comece com a leitura profética sem sequer mencionar a leitura da Lei, que era o elemento mais importante do ofício. De facto, a leitura profética era concebida como uma explicitação ou uma ilustraçáo da Lei. Os w. 16b-17 contam os preparativos para a leitura profética, que Jesus tomou a iniciativa de fazer. Qualquer homem adulto (judeu) podia fazê-Ia, assim como a homilia, contanto que fosse instruído e gozasse de boa reputação. Os w. 18-19 citam a passagem do livro de Isaias que Jesus leu. De facto, Lc 4,18-19 associa Is 61,1-2 e Is 58,6, segundo uma prática que era então corrente. Cita Is 61,1 e a primeira frase do v. 23c. Omite, sem razão aparente, a frase «para curar os corações desanimados" de Is 61,1, substituindo-a com a frase «para pôr em liberdade os oprimidos», tirada de Is 58,638. O v. 20 menciona com precisão os gestos de Jesus e assinala a reacção de curiosidade e de expectativa de parte da assembleia. No v. 21, Jesus toma a palavra para comentar a leitura O v. 22 assinala uma primeira reacção da assembleia. Ficam todos admirados com as palavras de Jesus. Elas ultrapassam tudo o que podiam esperar da boca de um conterrâneo que julgavam conhecer muito bem. Nos w .23-27 Jesus responde à surpresa e à admiração dos seus ouvintes. Adiantando-se-Ihes, começa por formular ele próprio o desafio que eles deviam ter na ponta da língua: faz na tua terra o que ouvimos dizer que tens feito em Cafarnaum (v. 23). Jesus responde ao desafio, primeiro, declarando que nenhum profeta é bem recebido na sua terra (v. 24); depois, ilustrando a sua declaração com os exemplos de Elias e Eliseu (w. 25-27). Os w. 28-29 dão uma segunda reacção da assembleia totalmente diferente da primeira. Todos os ouvintes se enfurecem contra Jesus, expulsam-no da cidade e tentam assassiná-Io. O v. 30 conclui o relato com a reacção de Jesus. Imperturbável e sem uma beliscadura, Jesus segue o seu caminho. |
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Marcos e Mateus assinalam a reacção dos ouvintes, perplexos ou mesmo escandalizados perante a sabedoria de Jesus e o seu poder miraculoso. Em Lucas, a primeira reacção dos ouvintes é de admiração e de surpresa. Segue-se nos três Evangelhos sinópticos, embora sob formas diferentes, o dito sobre o profeta que não é bem recebido na sua terra. Num desenvolvimento que lhe e próprio, Lucas prolonga a discussão ilustrando o dito com os exemplos de Elias e Eliseu (w. 25-27). Finalmente, fá-Ia desembocar numa tentativa de assassínio, à qual Jesus escapa ileso (w. 28-30). Lucas escreveu uma versão aumentada do relato, com cerca do dobro da extensão das versões de Marcos e de Mateus. A maior parte dos elementos próprios a Lucas são citações proféticas ou referências a episódios proféticos. A achega lucaniana mais importante é a descrição do ofício sinagogal centrado na leitura de Is 61,1-2 e Is 58,6 e, sobretudo, no comentário que Jesus faz desses textos (w. 16b-17). O outro elemento próprio a Lucas mais importante são as referências às figuras proféticas de Elias e Eliseu (w.25-27). Além de desenvolver o relato, Lucas mudou-o de lugar pondo-o no começo do Evangelho. Como consequência dessas duas alterações, o episódio da sinagoga de Nazaré tomou uma importância muito maior no Evangelho de Lucas do que a que tinha no Evangelho de Marcos e que lhe atribuiu Mateus. Embora diga que Jesus tinha pregado (Lc 4,15) e feito milagres (Lc 4,23) antes do episódio da sua intervenção na sinagoga de Nazara, Lucas fez da dita intervenção o acto inaugural da actividade pública de Jesus no qual pronunciou o seu discurso programático39. Note-se de passagem que a intervenção de Jesus na sinagoga de Nazaré tem semelhanças óbvias com a pregação de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Act 13,13-52). Os dois episódios têm uma estrutura praticamente idêntica e correspondem-se. 0 primeiro anticipa o segundo e o segundo confirma o primeiro. A recusa da mensagem de Jesus por parte dos seus conterrâneos anticipa a sua recusa por parte de "lsrael". A recusa da Boa Nova por parte de "lsrael", levou a que ela fosse dirigida aos pagãos. Lc 4,16-30 e Act 13,13-52 expressam a visão que Lucas tem não só da pessoa e da missão de Jesus, mas também da missão da Igreja. Segundo Lucas, essa missão desenrolou-se em dois tempos, primeiro junto dos judeus e depois junto dos pagãos. A esses dois tempos correspondem as duas partes da sua obra, o Evangelho e os Actos. |
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4. REALIZANDO A OBRA ANUNCIADA EM 15 61.1-2 E 15 58.6. JESUS INAUGURA O REINO DE DEUS | |
Na medida em que é o acto inaugural da sua actividade, a pregação de Jesus na sinagoga de Nazaré corresponde, no Evangelho de Lucas, aos anúncios da iminência do advento do Reino de Deus em Marcos e Mateus, desempenhando um papel semelhante ao desses textos. Em Mc 1,14-15 lê-se: "Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus: "Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho". Mt 4,17 formula o mesmo anúncio e o mesmo apelo: «A partir desse momento (isto é, da prisão de João Baptista) começou Jesus a pregar e a dizer: "Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus"». A afirmação de Jesus segundo a qual Is 61,1-2 e Is 58,6 se cumpriram (Lc 4,21) equivale a dizer que o Reino de Deus já chegou. Jesus dá assim uma interpretação actualizante de Is 61,1-2 e Is 58,6. Jesus não foi o inventor dessa forma de interpretação das Escrituras. Antes de Jesus, praticou-a a comunidade de Qumran. É o chamado pecher. Trata-se de um método de interpretação dos Profetas e dos Salmos que tendia a aplicar-se ao conjunto das Escrituras. Caracteriza-se pela actualização das Escrituras. O intérprete relacionava tal ou tal passagem com acontecimentos ou personagens do seu tempo, que ele acreditava ser o último. O método supõe que os Profetas e os Salmos são anúncios relativos ao futuro cujos verdadeiros sentido e alcance permanecem escondidos, até aos olhos dos próprios autores, enquanto não se realizarem. Mesmo depois da sua realização em tal ou tal personagem ou acontecimento, não é dado a toda a gente reconhecê-los mas só a intérpretes privilegiados. Embora Jesus não o diga explicitamente, pode supor-se com toda a certeza que vê na sua obra a realização de Is 61,1-2 e Is 58,6. É ela que toma presente o Reino de Deus. Mediante a citação de Is 61,1-2 e Is 58,6, Lc 4,18-19 explica que o Reino de Deus consiste em anunciar a Boa Nova aos pobres, proclamar aos cativos a libertação e aos cegos o recobro da vista, pôr em liberdade os oprimidos, notificar aos devedores o perdão das dívidas e aos escravos a alforria. Segundo este texto, o elemento mais característico do Reino de Deus é o anúncio da Boa Nova aos pobres. O termo pobre tem, de facto, um sentido englobante. Abarca todos aqueles que estão privados de uma forma ou outra de um ou de vários dos bens que uma ordem social justa deveria garantir-Ihes. Lc 4,16-21 não é a única passagem evangélica que apresenta Is 61,1-3 como o anúncio da realidade do Reino de Deus inaugurado pela obra de Jesus. Fazem-no duas outras passagens presentes em Lucas e em Mateus, em contextos particularmente importantes. A primeira encontra-se nas bem-aventuranças. J. Dupont mostrou que Is 61,1-2 assim como vários outros textos do livro de Isaías (35,5-6; 40,9; 49,9-13; 52, 7 e 60,6) e dos Salmos (146,6-7), constitui o pano de fundo das bem-aventuranças relativas aos pobres, aos famintos e aos aflitos (Lc 6,20-21 et Mt 5,3.5-6). Mostrou ainda que Jesus se referia aos pobres, aos famintos e aos aflitos no sentido próprio dessas palavras. Jesus declarou-os felizes porque a instauração do Reino de Deus ia pôr fim à suas condições infelizes40. Por que razão o Reino de Deus acabaria com a pobreza, a fome e a aflição? Para responder a esta questão, é necessário recordar os traços fundamentais da ideologia real que o povo do Antigo Testamento tinha em comum com os restantes povos do antigo Próximo-Oriente. Para os povos do Próximo-Oriente antigo, pelo menos para os povos semitas, a realeza tinha por fundamento a criação. Foi graças à sua acção criadora que os deuses criadores se tomaram cada um o chefe do seu panteão, isto é, o rei do mundo celeste e do mundo terrestre, do mundo divino e do mundo humano. Por conseguinte, a realeza era o atributo dos deuses criadores dos quais os reis humanos eram simples vigários ou representantes. Ora, tal como se expressa no mito do combate primordial, a criação é a vitória do deus criador contra o Caos. Segundo esse mito, o acto de criação não consiste no fabrico dos céus e da terra mas na sua separação e no ordenamento dos seus elementos respectivos. A ordem do mundo terrestre tem duas faces, uma cósmica e a outra social. A sua face social é a justiça. Por conseguinte, no domínio social, a realeza caracteriza-se pela justiça, pelo direito e pela rectidão, que são a expressão da criação e a condição da sua permanência41. Para a tradição bíblica, pelo menos na sua forma final, o deus criador e rei é Iavé. Os autores bíblicos sabiam muito bem que os reis de Israel e de Judá não corresponderam ao ideal régio, tendo sido a instituição monárquica extinta em «Israel». É esse pano de fundo que permite compreender a pregação de Jesus. Ele declara que Deus decidiu retomar as coisas em mãos e instaurar o seu Reino. Sob pena de falhar na sua função de rei e de criador - ideia absurda para um judeu do séc. I d. C. - Deus não podia deixar de pôr fim às injustiças/desordens que representam a pobreza, a fome e a aflição sob todas as formas. Por isso, os pobres, os famintos e os aflitos são felizes. Lucas e Mateus voltam a citar Is 61,1 no contexto da resposta que Jesus dá a João Baptista. Segundo Mt 11,2-6 e Lc 7,18-23, João, encarcerado em Maqueronte, ouviu falar do que fazia Jesus. Desejando pôr o assunto em claro, mandou os seus discípulos42 perguntar a Jesus: «És tu aquele que há-de vir ou devemos esperar outro?» Jesus respondeu-Ihes: «Ide contar a João o que ouvis e vedes: os cegos recobram a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres» (Mt 11,2-5; cf Lc 7,19-22). A resposta de Jesus é uma enfiada de citações de textos do livro de Isaías (26,19; 29,18-19; 35,5-6), entre os quais Is 61,1. Aos olhos dos autores de Mt 11 ,5 e Lc 7,21 , esses textos evocam os efeitos ou os traços característicos do Reino de Deus. Por conseguinte, o facto que Jesus realiza o que eles anunciam é a prova da chegada do Reino de Deus. |
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Jesus não foi o primeiro que actualizou Is 61,1-3. Já o tinha feito a comunidade de Qumran, na qual esse texto deve ter desempenhado um papel comparável ao que lhe atribuem os Evangelhos43. Com efeito, vários dos seus escritos citam-no ou a ele se referem, aplicando- o a diversas personagens. 11Q13 atribui a Melquisedec, cujo regresso esperava no fim dos tempos, a obra de libertação evocada por Is 61,1-244. O chamado Apocalipse messiânico aplica provavelmente esse texto ao Messias45. O «Mestre de Justiça», que era a personagem mais importante da comunidade e tido por uma espécie de novo Moisés46, talvez se tenha apropriado dele, aplicando-o a si próprio e à sua acção47. Nesse caso, Jesus também não teria sido o primeiro que se identificou a si próprio com a personagem de Is 61,1-2. |
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Lc 4,24-27 pressupõe que Jesus se considera profeta. O dito do v. 24 lê-se, sob formas um pouco diferentes nos quatro Evangelhos: nos relatos paralelos do episódio da sinagoga de Nazaré (Mc 6,4; Mt 13,57) e em Jo 4-44. Lucas ilustra-o com os exemplos de Elias e Eliseu (Lc 4,25-27)48. Igualmente de maneira indirecta, Jesus volta a declarar-se profeta em Lc 13,3349. A atribuição do carácter profético a Jesus supõe que o autor de Lc 4,24-27 reconheceu um profeta na pessoa que fala em Is 61,1-3. Sobre esse ponto, a sua interpretação difere da que dava Qumran que via em Is 61,1-3: Melquisedec, uma personagem ao mesmo tempo real e sacerdotal; o Messias e talvez o «Mestre de Justiça», uma personagem sacerdotal50. Reconhecendo em Is 61,1-3 uma figura profética, o autor de Lc 4,16-30 coincide com a interpretação do Targum5l. No entanto, afasta-se dela no que respeita à identidade do profeta em questão e ao alcance da sua missão. Enquanto que para a tradição judaica a pessoa que fala em Is 61,1-3 é Isaías, para Lc 4,16-30 é Jesus, o profeta que inaugura o Reino de Deus. A identificação da personagem de Is 61,1-3 e Lc 4,18 com um profeta não parece coadunar-se com a ideia da unção que os textos sublinham. Com efeito, para a tradição bíblica, a unção não era normalmente um rito profético mas sim um rito real (1 S 10,1; 16,13; 2 S 2,4; 5,3; 1 R 1,39; 2 R 9,6; 11,12). Existe um único episódio de unção profética no Antigo Testamento: lavé ordena a Elias que unja Eliseu como profeta em seu lugar (1 RI9,16). Devem notar-se também SI 105,15 e par 1 Cr 16,22, que chamam os patriarcas ungidos e profetas, os dois termos estando em paralelismo sinonímico. No entanto, a ideia da unção profética parece ter sido corrente entre os essénios. Estes expressaram a ideia em termos semelhantes aos que se lêem em Is 61,1 e Lc 4,18. Os profetas são chamados «ungidos pelo seu (de Iavé) espírito santo»52 e «ungidos de santidade» no Documento de Damasco53, «os teus (de Iavé) ungidos» na Regra da Guerra54. Elias e Eliseu são, como vimos, os únicos profetas a quem a Bíblia atribui explicitamente o rito da unção. Terá sido por causa da unção que Lc 4,16-30 associou Is 61,1 e as lendas relativas a Elias e a Eliseu? Note-se ainda que o tema do espírito, que Lc 4,18 toma de Is 61,1, ocupa também um lugar importante nas lendas relativas a Elias e a Eliseu. Prestes a ser arrebatado aos céus, Elias pergunta a Eliseu o que pode fazer por ele. Eliseu pede dupla parte na herança do espírito de Elias (2 R 2,9-10). De facto, Eliseu acaba por receber o espírito de Elias (2 R 2,14-15), isto é, o espírito do homem de Deus que lhe permite também a ele dividir o rio em dois e atravessá-lo, como fez Moisés ao Mar dos Juncos. O tema do espírito terá contribuído para que o autor de Lc 4,16-30 associasse a personagem de Is 61,1-2 e as figuras de Elias e Eliseu?55 |
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1 .Rezava a tradição que Jesus pregou na sinagoga da sua terra. No entanto, o relato sobre a pregação de Jesus na sinagoga de Nazara em Lc 4,16-30 é da lavra do Evangelista. 2. Tanto o lugar do relato no Evangelho como o seu teor indicam que Lucas apresenta a pregação na sinagoga de Nazaré como sendo o acto inaugural da actividade pública de Jesus, a exposição do seu programa. Lucas até se serviu desse episódio para legitimar de antemão o anúncio do Evangelho aos pagãos. Para isso, relacionou a pregação de Jesus na sinagoga de Nazaré com a pregação de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Act 13,13- 52) estabelecendo uma simetria entre ambas. 3. A visão que Lucas tem do programa de Jesus, assim como da sua pessoa, foi modelada em grande parte pela experiência pascal. Como os restantes autores do Novo Testamento, Lucas vê Jesus de Nazaré à luz da glória do Cristo ressuscitado. A essa luz, a pessoa e a missão de Jesus adquiriram um sentido e um alcance inteiramente novos e insuspeitados. Lucas projectou naturalmente esse sentido e esse alcance na figura histórica de Jesus de Nazaré. Por seu lado, a visão que Lucas tem da missão da Igreja supõe o sucesso que o anúncio do Evangelho teve bastante cedo entre os «povos», muito maior do que entre os judeus. 4. Embora tenha em conta a imensa mais-valia de sentido que a ressurreição deu à pessoa e à vida de Jesus, assim como o papel que essa nova visão desempenhou na formulação de Lc 4,16-30, a maioria dos exegetas pensa que esse relato corresponde fundamentalmente à compreensão que Jesus tinha de si próprio, da sua missão e, em particular, da sua relação com as Escrituras. 5. Segundo a opinião mais corrente, Jesus foi um profeta não só aos olhos dos contemporâneos mas também aos seus próprios olhos como supõe Lc 4,24-27. De entre as categorias sócio-religiosas da Palestina de então, a de profeta parece ser, de facto, a que melhor corresponde globalmente ao seu perfil e à sua actuação56. 6. Jesus concebeu a sua actividade, palavras e acções, como sendo a instauração do Reino de Deus. Ora, ressalta de Lc 4,16-30 que, para Jesus, o Reino de Deus já é uma realidade no momento em que ele fala. Além disso, esse texto explica que o Reino de Deus consiste no anúncio da Boa Nova aos pobres, na liberdade dos cativos, no recobro da vista por parte dos cegos, na liberdade dos oprimidos, no perdão das dívidas, na alforria dos escravos. Jesus expressou a mesma ideia relativamente à presença e à natureza do Reino de Deus nas três primeiras bem-aventuranças comuns a Lucas (6,20-21) e a Mateus (5,3.5-6) assim como na resposta à pergunta que João lhe fez sobre o alcance da sua missão (Lc 7,21; Mt 11,5). Não há razão de duvidar que esses textos refletem bastante fielmente o pensamento de Jesus. 7. A concepção do Reino de Deus expressa nesses textos tem como matriz Is 61,1-3, assim como uma série de outros textos afins, sobretudo do livro de Isaías57. Tudo indica que esses textos, sobretudo Is 61,1-3, modelaram a consciência que Jesus tinha de si próprio assim como a concepção que ele tinha da sua missão e do Reino de Deus ou do programa do Reinado de Deus. O próprio grupo semântico evange/izar/evangelho, com que se exprime a missão e a mensagem de Jesus, provém de Is 61,158. 8. Segundo Lc 4,16-30; 6,20-21; 7,21; Mt 5,3.5-6 e 11,5, Jesus vê na sua missão a realização de Is 6,1-3 e dos textos afins. Isso pressupõe que ele considera esses textos como anúncios ou promessas da sua obra e da sua pessoa. Dito por outras palavras, para Jesus, Is 61,1-3 e textos afins falavam de antemão do Reino de Deus. O objecto desse anúncio tomou-se finalmente uma realidade na obra de Jesus. O que se diz dos textos referidos pode generalizar-se aos restantes escritos proféticos, aos Salmos, tidos por proféticos por Jesus e pelos cristãos e até ao conjunto das Escrituras. 9. Jesus deu assim uma interpretação actualizante de Is 61,1-3 e textos afins. Jesus não foi o único nem o primeiro a praticar esse tipo de interpretação das Escrituras. Sob uma forma ou outra e com maior ou menor relevo, praticaram-na alguns grupos judaicos. Assim, os profetas oraculares fundavam os seus anúncios nas Escrituras ou tomavam por modelo as personagens proféticas das Escrituras. Os profetas de sinais propunham-se reproduzir os grandes feitos salvíficos relatados nas Escrituras. A interpretação actualizante das Escrituras teve uma importância particularmente grande na comunidade de Qumran. Foi uma das molas da sua criação teológica. Os autores qumranianos do pecher liam nas Escrituras a revelação do destino da sua comunidade. Dito de outra maneira, enraizavam a dita comunidade e a sua história nas Escrituras. A interpretação qumraniana das Escrituras é, sob todos os pontos de vista, a que mais se assemelha à interpretação praticada por Jesus e pelos cristãos. A principal diferença entre Jesus e Qumran na matéria é que Jesus tinha como única chave de leitura das Escrituras o Reino de Deus de cuja instauração ele era o arauto. Para ele, as Escrituras eram o anúncio do Reino de Deus que a sua missão tomava uma realidade. Entre a obra de Jesus e as Escrituras existe assim uma relação de cumprimento/realização e promessa/anúncio. |
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