Cadernos do ISTA, 15 (2003) - A Tirania da Imagem
 

O PODER DAS IMAGENS
E AS IMAGENS DO PODER (2)

Moisés Lemos Martins

 
 

3. A EQUIVALÊNCIA ENTRE CORPO, MÁQUINA E DESEJO


É um facto, os dispositivos tecnológicos aparelham-nos esteticamente, reorganizando a nossa experiência em torno da subjectividade e da emotividade, dando-lhe uma feição retórica e libidinal: hoje consumimo-nos em emoção, sensação e sedução. O poder da tecnologia passa também muito por esta conjunção actual da técnica e da estética. Muito do poder das imagens tecnológicas radica exactamente neste "bloco alucinatório", produzido pela ligação da técnica e da estética, de que fala Bragança de Miranda {s.d.: 101).

Era já claro para Walter Benjamin, na primeira metade do século XX, que os dispositivos de imagens causavam comoção e impacto generalizado e que, portanto, a nossa sensibilidade estava a ser penetrada pela aparelhagem técnica, de um modo simultaneamente óptico e táctil {Teresa Cruz, s.d.: 112). Nos anos sessenta, também McLuhan {1968: 37) insistiu neste ponto: não é ao nível das ideias e dos conceitos que a tecnologia tem os seus efeitos; são as relações dos sentidos e os modelos de percepção que ela transforma a pouco e pouco e sem encontrar a menor resistência. Mas foram Gilles Deleuze e Félix Guattari quem fez o diagnóstico mais completo desta situação, em que a técnica e a estética fazem bloco. No Anti-Oedipe, Deleuze e Guattari propõem a equivalência entre corpo, máquina e desejo. Sendo a máquina desejante e o desejo maquinado, é ideia de ambos que existem "tantos seres vivos na máquina como máquinas nos seres vivos" (Deleuze e Guattari, 1972: 230}.

Guy Debord, o consagrado autor da Teoria do Espectáculo, tematizou esta actual conjunção da técnica com a estética como um crescente anestesiamento da vida ou por outra, como uma crescente congelação dissimulada do mundo. Nas exactas palavras de Debord (1991: 16, n. 21}, "a sociedade moderna accorrentada [...] não exprime senão o seu desejo de dormir. O espectáculo é o guardião deste sono". .E ainda: "É porque a própria história persegue a sociedade moderna como espectro, que se encontra a pseudo-história construída a todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do actual tempo congelado" (Ibidem: 159, n. 200}.

A linguagem dos dispositivos tecnológicos parece constituir hoje, com efeito, a ligação que nos resta. Para dar um exemplo, as imagens televisivas ligam-nos e desligam-nos do mundo e dos outros: ligam-nos e desligam-nos do caso Moderna, do caso Pedofilia, do caso da Guerra do lraque. E uma vez que, nas imagens televisivas, a realidade se cumpre em representação, quando somos ligados ao caso Moderna, a realidade, toda a realidade, são as imagens do caso Moderna; quando somos ligados ao caso da Pedofilia, a
realidade, toda a realidade, são as imagens do caso da Pedofilia; quando somos ligados ao caso da Guerra no lraque, a realidade, toda a realidade, são as imagens do caso da Guerra do lraque.

É um facto que o dispositivo tecnológico em que consiste a televisão nos liga e desliga do mundo e dos outros. Simplesmente, tanto esta ligação como esta desligação são um efeito em nós do funcionamento da máquina. Ela liga-nos por acção de um aquecimento emocional e desliga-nos pela acção oposta de um arrefecimento. A imagem de produção tecnológica reconforta-nos numa calda de emoções. Mas o resultado é o de uma Cidade a viver anestesiada, sem "nenhuma espécie de compromisso com a época e com as ideias que a motivam" (Benjamin, 1993: 490) e a chafurdar, sem esperança, num quotidiano em que ninguém parece disposto a arriscar a pele.

Tenho vindo a acentuar o poder dos dispositivos tecnológicos de imagens: eles aparelham-nos esteticamente, reorganizando a nossa experiência em torno da nossa subjectividade e emotividade, modelam em nós uma sensibilidade artificial, uma sensibilidade que eu disse ser puxada à manivela, uma vez que esses dispositivos tecnológicos funcionam em nós como próteses de produção de emoções, como maquinetas que produzem e administram afectos.

Há, todavia, um aspecto sobre o poder das imagens, a que já aludi, que não pode ser iludido: a imagem tecnológica tem poder mas não é o poder; por muito tentada que seja pela diabolia, pela separação, a imagem tecnológica apenas representa o poder e o simboliza.

A grande questão que, em meu entender, está toda por resolver, num mundo modelado por tecnologias que administram emoções, é a da razão e da exigência do outro, ou seja, é a do horizonte de uma comunidade partilhada. Permanece, pois, por resolver o problema da configuração de um novo espaço democrático, um espaço ordenado pela "metáfora do outro", sendo o outro o excluído, o iletrado, o iliterato, o marginalizado, o desqualificado.

 
4. A VIOLÊNCIA DAS IMAGENS

Dada a circunstância de termos vivido, ainda há pouco, os acontecimentos excepcionais da Guerra do Iraque e de continuarmos a viver as suas extraordinárias consequências, gostaria de terminar a minha reflexão colocando uma última questão, a da violência das imagens.

O que é uma violência pela imagem? Ao falar da imagem, vou manter-me dentro do ponto de vista que adoptei: referir-me-ei, pois, à imagem de produção tecnológica. Poderia convocar aqui imagens publicitárias, fotográficas, jornalísticas, cinematográficas, videográficas, ou mesmo imagens tomadas da Internet. Vou ater-
-me, todavia, às imagens jornalísticas.

Sabemos bem que as imagens são fabricadas. No entanto, fazemos de conta que elas são a coisa mesma. Tranquilizam-nos as leituras imediatas, simples, que confundem a imagem com o seu referente, dado o facto de ser profunda em nós a crença na transparência das imagens: realidade é aquilo que nos é dado a ver pela imagem.

Acontece, no entanto, que são para nós absolutamente insuportáveis as inúmeras imagens que teledifundem o sofrimento das vítimas (de guerras, atentados, actos de tortura, catástrofes naturais...), sempre que se manifesta na imagem a sombra de uma câmara ou a presença de um micrifone. Durante a Guerra do Ruanda, o Le Monde Diplomatique publicou a fotografia de um jornalista europeu, munido de uma grande tele-objectiva, a captar uma cena longínqua, bem agachado no meio de um montão de cadáveres de africanos. Pode dizer-se que o jornal teve o cuidado de não publicar uma fotografia em que o jornalista estivesse apoiado em cadáveres, a fazer o seu dever de fotografar (podendo, todavia, fazê-Io, dado que é plausível que uma tal situação também pudesse ter acontecido). Imagens de violência, sem dúvida, mas imagens que nos fazem suspeitar de todas as imagens de guerra, de todas as captações de imagens, de todas as redes de informação.

Todavia aquele homem, o jornalista, apenas obedecia ao dever de informar. Aqueles que estão à sua volta estão já mortos e não sentem nada. Não é visível o coração sólido da violência -mutilações e assassinatos. Mas a sequência lembra, com uma brutalidade insuportável, a nossa pobre condição de obselVador cego a fazer clic por dever de informar.

Mudo de cena, agora. Canal 1 da televisão portuguesa. Telejornal das 13 horas, 16 de Novembro de 2001. Afeganistão. Libertação de Cabul. Tiros. Os mudjahidins da Aliança do Norte entram finalmente por um quartel dentro, um quartel de terra, em ruínas evazio. Apenas a presença de um soldado. O inimigo, ferido, está sentado sobre o tapete e segura nas duas mãos a perna ensanguentada. Com brutalidade, um dos mudjahidins avança e espanca o homem que jaz por terra, por três vezes, com a coronha da espingarda. Diz-Ihe, depois, que o vai matar. Contra todas as expectativas, no entanto, o homem da Aliança pára abruptamente e desaparece de cena.

Agora, outra narrativa, ou seja, uma outra recepção, embora da mesma sequência. Canal 1 da televisão portuguesa, telejomal das 13 horas, 16 de Novembro de 2001. Afeganistão. Libertação de Cabul. "Vamos atacar agora um quartel de terra". Os homens correm. Entre eles, um captador de som e um operador de imagem de televisão: as suas sombras precedem-nos. Troca de tiros. É preciso correr e não parar de filmar: a imagem treme para a direita e para a esquerda. Os operadores da televisão seguem os mudjahidins no quartel de terra, de que apenas restam as paredes. Descobrem a um canto um homem ferido, sentado num tapete, estendido na terra. O comentário off previne que se trata de um talibã. O operador de imagem conserva o olho colado ao óculo da câmara. O operador de som põe o gravador a gravar. Um mudjahidin junta-se a eles, revista o homem ferido: não tem arma, nem walkie-talkie. A presença da câmara incita-o a tomar a palavra: "Quero dizer a todos os talibãs que devem render-se sem combater". A câmara continua a filmar. Surge um segundo mudjahidin. Decidido, espanca violentamente o homem que está por terra. Depois, volta a espancá-lo, com mais força. E espanca-o, de novo, ainda com maior brutalidade. A câmara filma. O som regista o barulho das pancadas.

O homem anuncia que vai matar o talibã. O comentário off dá ao telespectador uma explicação psicológica: este mudjahidin "acaba de perder o irmão no combate aos talibãs". As ameaças não chegam, todavia, a concretizar-se. O homem da Aliança deixa a cena. Ficando sozinha no local, a equipa de televisão continua a filmar. O rosto do homem que jaz por terra contorce-se com dores. O plano de imagem é prolongado e fixo. Segue-se, depois, um bem conseguido movimento de rotação. O camaraman abandona a cena às arrecuas, continuando sempre a filmar. O operador de som segue-o mas não se deixa ver na imagem. O ferido sai da imagem.

Por princípio, a leitura que habitualmente fazemos de um telejornal ignora os processos de fabricação das imagens. O que já não acontece com uma análise crítica, para a qual toda a imagem da violência é suspeita, por nela se esconderem os indícios da sua fabricação, distribuição ou difusão. Numa análise crítica, são muitas as questões que se podem formular. Podemos perguntar se a sua difusão não tem em vista fixar a audiência, criar fascínio através da emoção ou evitar o zapping. E também se podem colocar outras questões. Por exemplo, teria a televisão difundido estas imagens se o homem tivesse morrido? E que peso tiveram as técnicas e as instituições televisivas na cena observada, sendo certo que a presença de uma equipa de filmagem estrutura sempre o campo da interacção dos actores sociais? E se os operadores se esforçassem por impedir o espancamento, em vez de manterem o olho colado à objectiva, ou a mão no microfone? E se o mujahidin apenas se tivesse disposto ao espancamento por saber que a máquina de filmar estava ali como sua testemunha e difundiria universalmente a imagem da sua 'bravura'?

Complexa questão esta a da violência das imagens de produção tecnológica, que de novo remete para a diabolia e para a produção e a administração maquínica das nossas emoções. Um alerta, todavia. Mesmo que lancemos hoje, inapelavelmente, o olhar para os ecrãs, tenho a convicção de que a palavra não pode palavra deixar de nos ligar, nem o.outro pode deixar de ser o nosso destino.

Moisés Lemos Marfins

 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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NOTAS
1 Sobre a imagem na modernidade fez J. Bragança de Miranda a lição de síntese das provas de agregação, a que se apresentou na Universidade Nova de Lisboa, em Janeiro de 2000. Propôs então uma "crítica do devir espectral da experiência pelos dispositivos de virtualização técnica" (Miranda, 2000).



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