É um facto, os dispositivos tecnológicos aparelham-nos
esteticamente, reorganizando a nossa experiência em torno da
subjectividade e da emotividade, dando-lhe uma feição retórica e
libidinal: hoje consumimo-nos em emoção, sensação e sedução. O
poder da tecnologia passa também muito por esta conjunção actual
da técnica e da estética. Muito do poder das imagens tecnológicas
radica exactamente neste "bloco alucinatório", produzido pela ligação
da técnica e da estética, de que fala Bragança de Miranda {s.d.:
101).
Era já claro para Walter Benjamin, na primeira metade do século
XX, que os dispositivos de imagens causavam comoção e impacto
generalizado e que, portanto, a nossa sensibilidade estava a ser
penetrada pela aparelhagem técnica, de um modo simultaneamente
óptico e táctil {Teresa Cruz, s.d.: 112). Nos anos sessenta, também
McLuhan {1968: 37) insistiu neste ponto: não é ao nível das ideias e
dos conceitos que a tecnologia tem os seus efeitos; são as relações dos sentidos e os modelos de percepção que ela transforma a pouco
e pouco e sem encontrar a menor resistência. Mas foram Gilles
Deleuze e Félix Guattari quem fez o diagnóstico mais completo
desta situação, em que a técnica e a estética fazem bloco. No Anti-Oedipe, Deleuze e Guattari propõem a equivalência entre corpo,
máquina e desejo. Sendo a máquina desejante e o desejo maquinado,
é ideia de ambos que existem "tantos seres vivos na máquina como
máquinas nos seres vivos" (Deleuze e Guattari, 1972: 230}.
Guy Debord, o consagrado autor da Teoria do Espectáculo,
tematizou esta actual conjunção da técnica com a estética como um
crescente anestesiamento da vida ou por outra, como uma crescente
congelação dissimulada do mundo. Nas exactas palavras de Debord
(1991: 16, n. 21}, "a sociedade moderna accorrentada [...] não
exprime senão o seu desejo de dormir. O espectáculo é o guardião
deste sono". .E ainda: "É porque a própria história persegue a
sociedade moderna como espectro, que se encontra a pseudo-história
construída a todos os níveis do consumo da vida, para preservar o
equilíbrio ameaçado do actual tempo congelado" (Ibidem: 159, n.
200}.
A linguagem dos dispositivos tecnológicos parece constituir hoje,
com efeito, a ligação que nos resta. Para dar um exemplo, as imagens
televisivas ligam-nos e desligam-nos do mundo e dos outros: ligam-nos e desligam-nos do caso Moderna, do caso Pedofilia, do caso
da Guerra do lraque. E uma vez que, nas imagens televisivas, a
realidade se cumpre em representação, quando somos ligados ao
caso Moderna, a realidade, toda a realidade, são as imagens do
caso Moderna; quando somos ligados ao caso da Pedofilia, a
realidade, toda a realidade, são as imagens do caso da Pedofilia;
quando somos ligados ao caso da Guerra no lraque, a realidade,
toda a realidade, são as imagens do caso da Guerra do lraque.
É um facto que o dispositivo tecnológico em que consiste a
televisão nos liga e desliga do mundo e dos outros. Simplesmente,
tanto esta ligação como esta desligação são um efeito em nós do
funcionamento da máquina. Ela liga-nos por acção de um
aquecimento emocional e desliga-nos pela acção oposta de um
arrefecimento. A imagem de produção tecnológica reconforta-nos
numa calda de emoções. Mas o resultado é o de uma Cidade a
viver anestesiada, sem "nenhuma espécie de compromisso com a
época e com as ideias que a motivam" (Benjamin, 1993: 490) e a
chafurdar, sem esperança, num quotidiano em que ninguém parece
disposto a arriscar a pele.
Tenho vindo a acentuar o poder dos dispositivos tecnológicos de
imagens: eles aparelham-nos esteticamente, reorganizando a nossa
experiência em torno da nossa subjectividade e emotividade,
modelam em nós uma sensibilidade artificial, uma sensibilidade que
eu disse ser puxada à manivela, uma vez que esses dispositivos
tecnológicos funcionam em nós como próteses de produção de
emoções, como maquinetas que produzem e administram afectos.
Há, todavia, um aspecto sobre o poder das imagens, a que já
aludi, que não pode ser iludido: a imagem tecnológica tem poder
mas não é o poder; por muito tentada que seja pela diabolia, pela
separação, a imagem tecnológica apenas representa o poder e o
simboliza.
A grande questão que, em meu entender, está toda por resolver,
num mundo modelado por tecnologias que administram emoções,
é a da razão e da exigência do outro, ou seja, é a do horizonte de
uma comunidade partilhada. Permanece, pois, por resolver o
problema da configuração de um novo espaço democrático, um
espaço ordenado pela "metáfora do outro", sendo o outro o excluído,
o iletrado, o iliterato, o marginalizado, o desqualificado.
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Dada a circunstância de termos vivido, ainda há pouco, os
acontecimentos excepcionais da Guerra do Iraque e de continuarmos
a viver as suas extraordinárias consequências, gostaria de terminar a
minha reflexão colocando uma última questão, a da violência das
imagens.
O que é uma violência pela imagem? Ao falar da imagem, vou
manter-me dentro do ponto de vista que adoptei: referir-me-ei, pois, à imagem de produção tecnológica. Poderia convocar aqui
imagens publicitárias, fotográficas, jornalísticas, cinematográficas,
videográficas, ou mesmo imagens tomadas da Internet. Vou ater-
-me, todavia, às imagens jornalísticas.
Sabemos bem que as imagens são fabricadas. No entanto,
fazemos de conta que elas são a coisa mesma. Tranquilizam-nos as
leituras imediatas, simples, que confundem a imagem com o seu
referente, dado o facto de ser profunda em nós a crença na
transparência das imagens: realidade é aquilo que nos é dado a ver
pela imagem.
Acontece, no entanto, que são para nós absolutamente
insuportáveis as inúmeras imagens que teledifundem o sofrimento
das vítimas (de guerras, atentados, actos de tortura, catástrofes
naturais...), sempre que se manifesta na imagem a sombra de uma
câmara ou a presença de um micrifone.
Durante a Guerra do Ruanda, o Le Monde Diplomatique publicou
a fotografia de um jornalista europeu, munido de uma grande tele-objectiva, a captar uma cena longínqua, bem agachado no meio de
um montão de cadáveres de africanos. Pode dizer-se que o jornal
teve o cuidado de não publicar uma fotografia em que o jornalista
estivesse apoiado em cadáveres, a fazer o seu dever de fotografar
(podendo, todavia, fazê-Io, dado que é plausível que uma tal situação
também pudesse ter acontecido). Imagens de violência, sem dúvida,
mas imagens que nos fazem suspeitar de todas as imagens de guerra,
de todas as captações de imagens, de todas as redes de informação.
Todavia aquele homem, o jornalista, apenas obedecia ao dever de
informar. Aqueles que estão à sua volta estão já mortos e não
sentem nada. Não é visível o coração sólido da violência -mutilações
e assassinatos. Mas a sequência lembra, com uma brutalidade
insuportável, a nossa pobre condição de obselVador cego a fazer
clic por dever de informar.
Mudo de cena, agora. Canal 1 da televisão portuguesa. Telejornal
das 13 horas, 16 de Novembro de 2001. Afeganistão. Libertação
de Cabul. Tiros. Os mudjahidins da Aliança do Norte entram
finalmente por um quartel dentro, um quartel de terra, em ruínas evazio. Apenas a presença de um soldado. O inimigo, ferido, está
sentado sobre o tapete e segura nas duas mãos a perna
ensanguentada. Com brutalidade, um dos mudjahidins avança e
espanca o homem que jaz por terra, por três vezes, com a coronha
da espingarda. Diz-Ihe, depois, que o vai matar. Contra todas as
expectativas, no entanto, o homem da Aliança pára abruptamente e
desaparece de cena.
Agora, outra narrativa, ou seja, uma outra recepção, embora da
mesma sequência. Canal 1 da televisão portuguesa, telejomal das
13 horas, 16 de Novembro de 2001. Afeganistão. Libertação de
Cabul. "Vamos atacar agora um quartel de terra". Os homens correm.
Entre eles, um captador de som e um operador de imagem de
televisão: as suas sombras precedem-nos. Troca de tiros. É preciso
correr e não parar de filmar: a imagem treme para a direita e para a
esquerda. Os operadores da televisão seguem os mudjahidins no
quartel de terra, de que apenas restam as paredes. Descobrem a um
canto um homem ferido, sentado num tapete, estendido na terra. O
comentário off previne que se trata de um talibã. O operador de
imagem conserva o olho colado ao óculo da câmara. O operador
de som põe o gravador a gravar. Um mudjahidin junta-se a eles,
revista o homem ferido: não tem arma, nem walkie-talkie. A presença
da câmara incita-o a tomar a palavra: "Quero dizer a todos os
talibãs que devem render-se sem combater". A câmara continua a
filmar. Surge um segundo mudjahidin. Decidido, espanca
violentamente o homem que está por terra. Depois, volta a espancá-lo, com mais força. E espanca-o, de novo, ainda com maior
brutalidade. A câmara filma. O som regista o barulho das pancadas.
O homem anuncia que vai matar o talibã. O comentário off dá ao
telespectador uma explicação psicológica: este mudjahidin "acaba
de perder o irmão no combate aos talibãs". As ameaças não chegam,
todavia, a concretizar-se. O homem da Aliança deixa a cena. Ficando
sozinha no local, a equipa de televisão continua a filmar. O rosto do
homem que jaz por terra contorce-se com dores. O plano de imagem
é prolongado e fixo. Segue-se, depois, um bem conseguido
movimento de rotação. O camaraman abandona a cena às arrecuas, continuando sempre a filmar. O operador de som segue-o mas não
se deixa ver na imagem. O ferido sai da imagem.
Por princípio, a leitura que habitualmente fazemos de um
telejornal ignora os processos de fabricação das imagens. O que já
não acontece com uma análise crítica, para a qual toda a imagem da violência é suspeita, por nela se esconderem os indícios da sua
fabricação, distribuição ou difusão. Numa análise crítica, são muitas
as questões que se podem formular. Podemos perguntar se a sua
difusão não tem em vista fixar a audiência, criar fascínio através da
emoção ou evitar o zapping. E também se podem colocar outras
questões. Por exemplo, teria a televisão difundido estas imagens se
o homem tivesse morrido? E que peso tiveram as técnicas e as
instituições televisivas na cena observada, sendo certo que a presença
de uma equipa de filmagem estrutura sempre o campo da interacção
dos actores sociais? E se os operadores se esforçassem por impedir
o espancamento, em vez de manterem o olho colado à objectiva,
ou a mão no microfone? E se o mujahidin apenas se tivesse disposto
ao espancamento por saber que a máquina de filmar estava ali
como sua testemunha e difundiria universalmente a imagem da sua
'bravura'?
Complexa questão esta a da violência das imagens de produção
tecnológica, que de novo remete para a diabolia e para a produção
e a administração maquínica das nossas emoções. Um alerta, todavia.
Mesmo que lancemos hoje, inapelavelmente, o olhar para os ecrãs,
tenho a convicção de que a palavra não pode palavra deixar de nos
ligar, nem o.outro pode deixar de ser o nosso destino.
Moisés Lemos Marfins |
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294, pp. 135-138.
NOTAS
1 Sobre a imagem na modernidade fez J. Bragança de Miranda a lição de síntese
das provas de agregação, a que se apresentou na Universidade Nova de Lisboa,
em Janeiro de 2000. Propôs então uma "crítica do devir espectral da experiência
pelos dispositivos de virtualização técnica" (Miranda, 2000).
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