A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

 

MODELOS
E IMAGENS
DA IGREJA (5)

Luís de França OP

 

 

 


CADERNOS DO ISTA, 15

Imaginar a Igreja católica

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O Concílio Vaticano II deu-nos a Lumen Gentium a primeira Constituição da Igreja sobre ela própria. Mas esta Constituição deixou a porta aberta a muitas ambiguidades. Após 40 anos onde nos encontramos? Verifica-se que nenhuma eclesiologia sistemática foi elaborada depois da tentativa de Hans Kung em 1978. É esta também a conclusão de Hervé Legrand, o dominicano professor do Instituto Católico de Paris, com quem me encontrei há poucos meses para falar do estado actual da eclesiologia.

O que parece tornar-se mais saliente são os limites do modelo hierárquico na era da globalização, quer se considere o movimento ecuménico cristão, quer se busque a constituição de uma teologia do diálogo interreligioso.

Permanece o desafio posto à eclesiologia desde sempre. Como encontrar um paradigma que possa a ajudar a viver e a crescer em Igreja e garantir que ela esteja sempre ao serviço do anúncio do reino de Deus?

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Como imaginar paradigmas?
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O paradigma da estrela é muito usado nas ciências humanas, mas tem o inconveniente de colocar em pé de igualdade todos os modelos. Mas, por outro lado, permite leituras de todos os azimutes conforme as culturas e as heranças históricas.

O paradigma trinitário tem a vantagem de partir da referência fundamental para a compreensão da Igreja mas facilmente pode determinar a sobredeterminação de um dos modelos.

E o paradigma da cruz conduz à Igreja comunhão estruturante mas crucificante.

Através destas várias tentativas da teologia contemporânea, o que se pode constatar aqui é que, nos últimos quinze anos quase todos os estudos e ensaios publicados no mundo cristão se encaminham para uma preferência dada ao modelo ou ao paradigma da comunhão.

Contudo, temos de reconhecer que a história da eclesiologia regista muitos períodos durante os quais o modelo da comunhão foi desprezado a favor de um predomínio de modelos institucionais, jurídicos, em contextos sócio culturais diferentes, mesmo na história contemporânea.

Verifica-se, porém, que após os anos de hesitação que se seguiram ao Concílio Vaticano II, assistiu-se desde 1985 a uma focalização sobre o modelo da comunhão. Aquela data, é marcada por um Sínodo Romano, onde o actual papa fez apelo ao modelo da comunhão entendida à maneira de João Paulo II.

Só a partir desse Sínodo é que o modelo eclesial da comunhão começou a impor-se como herança de Vaticano II.

Desde então teólogos tais como: Tillard, Lafont, Rigal, Bimerlé entre outros, procuram formular eclesiologias de comunhão.

De modo ecuménico, podemos ainda referir a herança de Yves Congar para o mundo católico, João Zizioulas para o mundo ortodoxo e Jurgen Moltann para o mundo evangélico, todos trabalhando nas suas obras a eclesiologia da comunhão.

Todos estes teólogos fazem a unanimidade sobre as questões relativas ao enraizamento trinitário da Igreja, o que os leva a falar da Igreja como mistério segundo o Espírito. E como ressonâncias da comunhão falam ainda da Igreja como sacramento do mundo, e uns mais do que outros, da Igreja comunhão no coração do diálogo ecuménico.

Mas onde começam as divergências, é quando começam a abordar as questões do ministério. Ou seja quando se toca o universo do poder. Quem manda em quem?

O limite colocado à recente “Declaração do acordo entre Luteranos e Católicos” é revelador deste impasse não só do diálogo ecuménico mas sobretudo da incapacidade das Igrejas em lidar com a questão humana e espiritualmente tão delicada do exercício do poder. O compromisso do “consenso diferenciado” que tornou possível a assinatura daquela Declaração ecuménica é bem revelador dos impasses onde nos encontramos mesmo com o recurso à teologia da comunhão.

De forma sistemática, poderemos dizer que enquanto não se clarificar a teologia dos ministérios nas Igrejas cristãs não haverá unidade possível e muita energia se perderá na gestão do poder e no seu exercício, energias que deveriam ser canalizadas para o testemunho evangélico das Igrejas num mundo globalizado.

Devemos ainda reconhecer que a cultura actual veicula elementos que concorrem para a implementação de uma teologia da comunhão eclesial. Estamo-nos a referir ao lugar do diálogo, ao apelo ao pluralismo e à diversidade, assim como ao apelo e à quase pressão da comunicação em muitas das culturas de hoje sobretudo no mundo ocidental.

Um por um, podemos verificar como o papa tira partido destes elementos da cultura dominante nos seus contactos com as multidões e particularmente com os jovens. Mas a positividade desta leitura não pode escamotear a ambiguidade deste comportamento eclesial. A comunhão como valor, como atitude interior informando o desejo humano, não tem valor de mercado, não é objecto de consumo. O mercado não se interessa pela comunhão, daí a ambiguidade. Os cristãos proclamam essa comunhão e procuram internaliza-la, mas o mercado não lhe dá cotação, aproveitando somente aquilo que possa servir ao espectáculo.

O menos que se pode dizer é que os cristãos têm de estar atentos a esta ambivalência e não se devem iludir com ela. A imagem captada é uma. A imagem que se queria transmitir é outra. Donde os cristãos têm sobretudo de se interrogar sobre o conteúdo ou seja sobre o modelo de Igreja que querem promover e sobretudo incarnar.

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Conclusão
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Quanto à imagem, temos de reconhecer que ela terá sempre de ser relativizada em confronto, ou incarnação, com as culturas locais e os percursos históricos. Verificaremos também com facilidade que, na era da globalização, a sociedade do espectáculo escolherá as suas imagens sobre a Igreja, sobre as Igrejas. Nada a fazer é o seu negócio...

Quanto ao modelo, a conclusão exige outra profundidade. A Igreja vive do mistério de Cristo, particularmente da incarnação de Cristo no mundo. E mais do que uma analogia é quase uma “homososias”. Ou seja, a eclesiologia não se cria a si-mesma mas confonta-se, compara-se com a cristologia. A Igreja revê-se constantemente no seu Senhor, o Cristo da História.

Foi em Calcedónia, após três séculos de tentativas, que os cristãos de então com um grau de participação muito superior aquele que vivemos hoje, moldaram a compreensão do mistério do Deus incarnado quando num texto agora dogmático formularam a seguinte compreensão do mistério de Cristo, a saber: “sem divisão nem confusão; sem separação nem mistura”. Segundo Ghislain Lafont, que cito de seguida: a chave de ouro da teologia e da vida cristã é nos fornecida pelo axioma estabelecido naquele concílio com os seus famosos advérbios e que ainda que sejam difíceis de manter em equilíbrio asseguram à Igreja o manter-se na verdade e no equilíbrio da sua mensagem evangelizadora.

Os grandes períodos da história do pensamento e da prática cristã são aqueles durante os quais o respeito por este axioma se manteve. Mas compreende-se que este equilíbrio sendo difícil de manter a história registe vários desvios do pêndulo. Creio, diz Lafont, que a longo prazo um certo excesso do lado da confusão de tipo monofisita – ou mais directamente da Escola de Alexandria, acaba por ser mais prejudicial do que o excesso da separação. Esta ultima situação, que se identifica com a Escola de Antioquia - o nestorianismo – acaba por se corrigir a si própria, pelo menos enquanto permanece no interior do cristianismo, já que a força do desejo de união com Deus mantêm-se forte; pelo contrário, o perigo monofisita pode dar a ilusão de se estar na verdade e facilmente se passa à radicalização da sua defesa.

De modo geral, poderíamos afirmar que cada vez que a Igreja teve medo do humano, das suas manifestações, do seu desenvolvimento, ou dito de outro modo, cada vez que se furtou, por razões espirituais ou outras, ao dever de pensar e impediu os seus fiéis de o fazer, ela agiu contra o evangelho.

Certamente, nesses momentos de tentação, a Igreja continuou a agir e a falar mas o homem real não estava exactamente no lugar exacto para a ouvir e continuar com a sua ajuda uma tarefa de conversão nos novos espaços; uma separação acontece quando se procura, talvez em excesso, a unidade. A razão mais profunda mas evidentemente não a única da descristianização reside provavelmente aqui. E tendo em conta esta verificação histórica temos de pelo menos reconhecer o risco que existe no actual projecto de nova evangelização da Europa.

Enfim, a comunhão, como troca simbólica, dom e reciprocidade, é o paradigma cristão por excelência; não exclui os outros; mas orienta-os numa direcção desconhecida da própria razão humana; mas que a transfigura quando isso lhe é revelado, ou seja, a centralidade do mistério pascal de Jesus Cristo na história dos homens, essência de Deus. Ser em plenitude no interior de um Amor trinitário onde tudo é de todos e nada pertence a cada um.

Qualquer que seja a tirania, que os media, os fazedores de imagem ou os public opinion, queiram impor à Igreja e ao seu espectáculo no mundo, para os verdadeiros crentes, ela será sempre e acima de tudo, o Mistério que não se deixa ver.

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Luís de França OP









ISTA
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