A TIRANIA DA IMAGEM

 

 

 

Da metafísica do fluxo
à treva luminosa:
Eckhart e a tirania da imagem (3)

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

CADERNOS DO ISTA, 15

I - O destino da imagem
 

A metafísica eckhartiana da imagem está no centro do seu pensamento. O Mestre parte da tradição filosófica e teológica em que a questão da imagem é apresentada9. É evidente que Mestre Eckhart não é o único, no começo do século catorze, a desenvolver o tema da imagem. Muito antes dele, os Padres da Igreja glosaram esse tema que chega a Mestre Eckhart e que será desenvolvido também pelos seus contemporâneos e seguidores, tais como Johannes Tauler, Henrich Suso, Jan van Ruisbroec e Hendrik Herp. O homem é à imagem de Deus porque escapa a qualquer definição, como o próprio Deus. Dizer que o homem é à imagem de Deus (Gn 1, 26) significa em definitivo que é uma existência pessoal, uma liberdade. Irineu de Lião dizia que “o homem é livre desde o começo. Porque Deus é liberdade e foi à semelhança de Deus que o homem foi feito”(10). E Gregório de Nissa dizia:

“A imagem só é verdadeiramente a imagem na medida em que possui todos os atributos do seu modelo (...) A característica da divindade é ser inapreensível: também isso o deve exprimir a imagem. Se a essência da imagem pudesse ser compreendida enquanto o seu modelo escapa a qualquer apreensão, essa diferença anularia o próprio facto da imagem. Mas nós não chegamos a definir a natureza da nossa dimensão espiritual, justamente á imagem do nosso criador: (...) é pois porque transportamos a impressão da incapturável divindade através do mistério que está em nós” (11).

Eckhart concebe o esquema do exitus-reditus tal como a lei fundamental da realidade ensinado pela Bíblia, tanto in toto, como se mostra na apresentação da criação e da consumação, como em versículos individuais (e.g. Ecle. 1,7: ...ad locum unde exeunt flumina, revertuntur, ut iterum fluant - "Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não se transborda“ (12). Uma imagem não é por si mesma nem para ela mesma; provém daquilo de que ela é imagem e lhe pertence com tudo o que ela é. Não é a propriedade e não provém do que é estranho àquilo de que é imagem. Uma imagem toma o seu ser directa e unicamente daquilo de que ela é a imagem, tem um mesmo ser com ele e é o mesmo ser” Este resumo da teoria da imagem que se refere unicamente ao modelo (Urbild) e de que a imagem é a cópia (Abbild) pode traduzir-se directamente em termos ontológicos. O acento é colocado no pólo “transcendental-unívoco” da relação analógica entre o modelo e a imagem, isto é entre o ser divino e o ser criado. Abstrair das imagens sensíveis para chegar ao Verbo-Imagem não é só questão das genealogia conceptual da Entbildung, mas da própria Entbildung enquanto centro de interesse duma doutrina filosófica, sobretudo, enquanto experiência subjectiva.

A Teologia mística de Denis o Pseudo Areopagita descreve o encadeamento dos métodos a seguir para chegar a Deus. O caminho passa essencialmente pela travessia da linguagem e do pensamento, através da ultrapassagem da afirmação e da negação, e mais profundamente pelo despojamento de todas as imagens até ao extenuamento do pensável e do dizível - agnosia - em que se dá uma "união com aquele que está para lá da essência e do conhecimento. Experiência de deserto. O deserto que é Deus só se ganha percorrendo a senda estreita em que o homem já não está sujeito nem à audição nem à visão, nem ao espaço nem ao tempo - são realidades que é preciso banir (para) além de todo o sentido, abandonar enquanto princípios de um conhecimento representativo para os encontrar na limpidez do termo, onde não são nem isto nem aquilo, mas se encontram no sem fundo da sua origem:

Ó minha alma
Sai, que entre!
Sucumba todo o meu ser
No nada de Deus,
Sucumba nesse fluxo sem fundo!
(13)

O deserto é um símbolo equívoco, pode significar o lugar da serenidade, do silêncio interior, da solidão, mas também da prova e mesmo da tentação (Mt 4, 1-11 e Lc 4, 1-13). Eckhart joga nos dois registos. A primeira significação está mais próxima do contexto da “entbildung”, enquanto a segunda tem o sentido da prova, mais harmonizada com a ideia da solidão do que da tentação. Eckhart evoca assim a tentação de S. Antão no deserto: “Quando ele triunfou desta tribulação, Nosso Senhor apareceu-lhe em pessoa, repleto de alegria. O santo homem disse então: ‘Ah! meu caro Senhor, onde estavas quando eu me encontrava em tão grande aflição?’ Nosso Senhor respondeu-lhe: ‘Eu estava aqui como estou agora’”14. “A interioridade está sempre presente, mas é necessário franquear o vau do Iaboc, desligar-se do efémero, transmutar as imagens na imagem, desmarcarar as imagens e encontrar o “homem” que sofre na solidão e que luta toda a noite com o seu escudeiro, Gen 32,30: Vidi Deum facie ad faciem, et salva facta est anima mea (15).

É claro que a significação do deserto está ligada à do silêncio e do despojamento e logo à do vazio. “O Pai diz: ‘conduzi-lo-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração’. Coração a coração, um no Um, eis o que este Deus ama. Deus detesta tudo o que é estranho, longe desta unidade. Deus arrasta e atrai para a unidade. Todas as criaturas procuram a unidade, mesmo as mais baixas, e as mais altas encontram-na; arrastadas e transformadas acima da sua natureza, elas procuram o um no Um, o Um em si próprio” (16). Lê-se nas Instruções espirituais, obra do Eckhart jovem: “O homem não deve contentar-se com um Deus que pensa, porque quando o pensamento se esvai, Deus esvai-se também” (17). Procurar Deus no deserto não significa fugir do mundo; há que aprender a solidão interior (aprender o deserto interior) onde e próximo de quem quer que seja. O deserto interior só na aparência se opõe a uma vida entre os homens. Rito de passagem, benção do homem pela vida nas aparências e nas coisas transitórias.

“Onde não há imagens nem formas”. É evidente: Imago, como species, similitudo, effigies, opõe-se a signum; este pode ser abstracto; mesmo se podem combinar-se (v.g. numa inicial ornada), o signum é anicónico (como a cruz), enquanto a imago é antropomórfica (uma Virgem com o Filho) (18). A palavra “imagens” remete para a visão especular, para a captação de Deus e do criado no espelho da verdade. A “residência” ou fixação na deidade abole a visão especular, suprimindo o espelho, o modelo e a imagem. Esta abolição é aquilo a que o Mestre chama “Entbildung”. Este estado de não conhecimento ou melhor, de “conhecimento sem imagens” é descrito no Sermão (40):

“Quando o homem se une totalmente a Deus com amor, desliga-se das imagens, formado e transformado na conformidade divina na qual é um com Deus”

Para Wolfgang Wackernagel a obra de Mestre Eckhart contribuiu grandemente para o desenvolvimento das possibilidades filosóficas da língua alemã, nomeadamente no que tange ao vocabulário da imagem (19). Autor situado no cruzamento das línguas latina e germânica, Eckhart é reconhecidamente um inovador da terminologia da imagem, inspirada dos contextos filosóficos e teológicos subjacentes à definição latina de imago, alimentando-se também do contexto sobrenatural, mágico e religioso do vocábulo oeste-germânico bilidi.

Ninguém melhor do que este autor para tratar do semantismo do verbo “Entbilden” ou do substantivo bilde que confina com os seus equivalentes latinos ratio, forma, phantasma e species. Wackernagel encara o vocabulário eckhartiano da imagem a partir da sua dupla origem: como síntese entre a definição latina da imago e a genealogia pré-eckhartiana do termo oeste alemão bilidi (p. 15). A “entbildung” permite aceder à “unitio” (20) divina, ao fundo abissal (abgrund) do divino, como se esta “uniformidade” estivesse aquém e acima da trindade das Pessoas. A “entbildung” pode ser entendida como a “superação” - a aufhbeung - da “creaturalidade”. Pode também definir-se como um processo de transmutação quase “alquímica”: “Se estivesse seguro que todas as minhas pedras fossem mudadas em ouro, quanto mais pedras tivesse e maiores, mais contente estaria e mesmo pediria pedras, e se pudesse, adquiriria maiores e em maior quantidade; quanto mais tivesse, maiores seriam e mais me seriam caras.” Despojar-se de si mesmo é o mesmo que morrer para si mesmo (21). É assim que o Mestre diz que “os bem-aventurados no reino dos céus conhecem as criaturas despojadas de todas as imagens das criaturas e conhecem a única imagem que é Deus” (22). S. Tomás já dissera o mesmo, afinal (23).

 









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