«À imagem e semelhança de Deus».
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Pela leitura do nosso autor percebemos que os gnósticos menosprezam a realidade da Encarnação de Jesus, o que não é motivo de surpresa para nós. Negam que o Logos ou o Unigénito alguma vez tenha descido ao nosso mundo. Esta vinda foi realizada pelo Cristo ou pelo Salvador pertencentes ao grupo dos eónes mais novos do Pleroma . Negam ainda que tanto o Cristo ou o Salvador tenham assumido a carne humana. Simplesmente desceram num Jesus aparentemente real, residindo neste apenas o tempo necessário para a revelação do innominabilem Patrem . Passemos ao livro IV da obra de St. Ireneu. Como já tivemos oportunidade de referir, este livro tem como intenção estabelecer a unidade dos dois Testamentos. Divide-se em três partes. Há uma pequena introdução ao tema proposto. A primeira parte (1), através das palavras do Cristo, demonstra a unidade dos dois Testamentos. A segunda (2) evidencia o Antigo Testamento como profecia do Novo. A terceira parte (3) mostra a unidade dos dois Testamentos a partir das parábolas de Jesus. No prefácio ou introdução, o bispo de Lyon recorda o trabalho já feito nos livros precedentes anunciando que recordará as teses mais blasfemadoras dos seus adversários que tocam não apenas Deus, mas também a própria natureza do Homem. No seguimento desta ideia, St. Ireneu afirmará que a carne do Homem foi formada à imagem de Deus (4). Na primeira parte, o nosso autor através de algumas passagens dos evangelhos estabelece ligação entre estas e o Antigo Testamento. O mesmo Deus Pai e Criador é autor da Lei (5) manifestando-se aos patriarcas e profetas (6). Cristo veio não para revogar a Lei, mas para a completar (7). A unidade de Deus Pai e Criador e das Escrituras é revelada pela passagem da antiga para a nova Aliança (8) através do conteúdo das suas alianças (9) e pelos sacrifícios do Antigo como do Novo Testamento (10). A preocupação do bispo de Lyon, como sabemos, é salvaguardar a unidade dos dois Testamentos assim como fazer frente às posições negativas avançadas pelos gnósticos em relação ao Antigo Testamento (11). A lógica desenvolvida por St. Ireneu segue a estrutura: um só Deus, um só Cristo, uma só revelação. É claro que o problema é muito mais complexo porque importava fazer compreender como uma única revelação podia englobar as diferentes economias. Na segunda parte deste livro, defende-se a ideia de que é o mesmo Deus Pai e Criador que se revelou aos profetas do Antigo Testamento (12) e cujas profecias se realizaram no Evangelho e na Igreja. Quem detém a verdadeira interpretação da Escritura? Esta pergunta é legítima e não nos será difícil perceber que só a Igreja possui tal capacidade. Quem acreditar e confessar um só Deus que tudo fez por meio do seu Verbo “então toda a palavra lhe será compreensível se ler as Escrituras com atenção, de acordo com os presbíteros da Igreja, junto dos quais está a doutrina apostólica” (13). Todo aquele que se mantém fiel à tradição e à doutrina apostólica conseguirá interpretar correctamente a Sagrada Escritura. Este será o verdadeiro discípulo de Cristo, capaz de refutar os heréticos (14). Na nossa leitura do livro IV poderíamos ainda assinalar um aspecto recorrente nos livros anteriores. St. Ireneu critica o ensinamento de certos gnósticos que concebem o Homem como feito à imagem de Deus pelos anjos (15). Para impugnar esta visão, o nosso autor cita e comenta Gn 1,26 recordando que o Homem foi criado à imagem e semelhança de Deus pelas suas próprias Mãos, a saber, o Filho e o Espírito Santo (16). Defenderá acertadamente o bispo de Lyon que o Homem foi feito à semelhança do próprio Filho de Deus que é manifestada na sua Encarnação (17). Na terceira parte deste livro podemos destacar a utilização, por parte do nosso autor, das parábolas de Jesus para novamente reafirmar a unidade dos dois Testamentos (18). Com a ajuda das parábolas do Novo Testamento, St. Ireneu comprova a unidade do desejo salvífico de Deus Pai e Criador para com a sua criatura (19). Não há dúvida de que o Homem é livre de escolher ou não, de aceitar ou recusar a proposta de salvação que Deus lhe oferece. Perante esta possibilidade, St. Ireneu analisa, através das parábolas relativas ao juízo final, as consequências que daí podem advir para o ser humano. Para St. Ireneu a liberdade humana, esta possibilidade de aceder ao projecto divino e de o aceitar, é resultante da própria Criação, isto é, sendo criado à imagem e semelhança de Deus, o Homem é criado na liberdade pois afirma: “Sendo, porém, o homem livre na sua vontade, desde o princípio, e livre é Deus, à semelhança do qual foi feito, foi-lhe dado, desde sempre, o conselho de se ater ao bem, o que se realiza pela obediência a Deus” (20). Convém agora passar ao livro V. No percurso desta apresentação da obra ireneana fomos, algumas vezes, apontando aspectos relacionados com este livro. Segundo o nosso autor, este livro culmina e encerra toda a sua obra. Ao longo dos quatro livros, recorda o bispo de Lyon, procurou desmascarar a heresia gnóstica (livro I), refutá-la com os seus próprios argumentos (livro II), assim como baseando-se na verdade dos ensinamentos tradicionais da Igreja, através das inúmeras provas retiradas da Escritura (livros III e IV). É esta demonstração pelas Escrituras que o nosso santo se propõe concluir no livro V. Admirável livro V! Neste escrito somos confrontados com a Salus carnis e a reflexão outorgada por St. Ireneu nesta matéria encerra intuições – não só esquecidas no decorrer do tempo, mas injustamente ignoradas – que importa considerar (21). Este livro compreende três partes. A primeira refere-se à ressurreição da carne onde se refuta a exegese gnóstica de 1Co 15,50 (22). A segunda parte toca o tema de um só Deus Criador e Pai, comprovado através de três episódios da vida de Jesus Cristo (23). A última parte também aborda a questão de um só Deus Criador e Pai, mas atestado pelo ensinamento das Escrituras sobre o fim dos tempos (24). Na primeira parte, aponta-se o facto de os gnósticos excluírem a Salus carnis justificando-se com textos paulinos, como por exemplo o de 1Co 15,50. Num primeiro momento, St. Ireneu demonstra que a Salvação diz respeito também à carne porque a ressurreição da carne é consequência do mistério da Encarnação e esta é obra do poder de Deus. Em complemento destas afirmações, o nosso autor prova a realidade da ressurreição com a ajuda de textos paulinos. Este facto permite-lhe fazer uma exegese justa de 1Co 15,50. Sublinhe-se que, na reflexão elaborada pelo nosso autor, o nosso tema: À imagem e semelhança de Deus, é retomado com insistência. Neste sentido adianta que o Homem é imagem de Deus desde o começo (Criação) e é pela sua carne, chamada obra modelada, que é imagem do Criador. O Homem recebe de Deus a semelhança que é o dom do Espírito Santo (25). Percebemos que o bispo de Lyon integra a noção de imagem e de semelhança na sua apresentação e compreensão de Salvação. O Homem perfeito e espiritual possui em si a imagem e semelhança de Deus (26). Para que este propósito se realize em plenitude o Verbo encarna e restaura no Homem (imagem de Deus) a sua semelhança com o Criador mediante o dom do Espírito Santo. Na segunda parte do livro, St. Ireneu através de três episódios da vida de Jesus Cristo consegue demonstrar a existência de um Deus que é, ao mesmo tempo, Pai e Criador. Os três acontecimentos são a cura do cego de nascença (27), a crucifixão (28)e a tentação no deserto (29). Por meio de Cristo, é-nos revelado o papel criador e salvador do Verbo. Repare-se que o acto curativo, no caso do cego de nascença, é percebido como uma nova modelagem, ou seja, o Verbo modela o Homem na Criação, assim como em todos os tempos. A acção modeladora exercida pelo Verbo entende-se como recriação. Na terceira parte do livro, o nosso autor brinda-nos com algumas reflexões sobre os últimos tempos . Com estes comentários em torno da Escritura nada mais quer atestar St. Ireneu que a sua fé na unidade de Deus Pai e Criador (30). Quais são então os temas referidos? O Anticristo (31); o Milenarismo (32) ou a primeira ressurreição (33) e a etapa última e definitiva: o Reino de Deus (34). |
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Notas |
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(1) Cf. Adv haer IV 1-19. (2) Cf. Adv haer IV 20-35. (3) Cf. Adv haer IV 36-41, 3. (4) “O homem é um composto de alma e de carne, formado o homem à imagem de Deus e modelado pelas suas mãos, isto é, pelo Filho e o Espírito”, Adv haer IV Pr. 4. A tradução deste texto levanta algumas dificuldades. O texto latino afirma que o Homem foi formado e moldado à imagem de Deus, porém, o texto arménio refere que a carne humana foi formada e moldada à imagem de Deus. Que tradução seguir? Os especialistas divergem, mas o responsável pela edição crítica usada por nós inclina-se mais para o texto arménio. É óbvio que esta tradução coloca algumas dúvidas pois a ideia de que a carne, realidade material, foi formada à imagem de Deus, ser espiritual, tem qualquer coisa de paradoxal. Graças aos textos paralelos, encontramos em Adv haer V 6, 1 a afirmação, tanto do lado da tradução latina como da arménia, que a carne foi modelada segundo a imagem de Deus. Cremos poder afirmar que é da salvação da carne que St. Ireneu trata porque esta era totalmente negada pelos gnósticos. Veja-se os comentários de Antonio Orbe às passagens Adv haer V 6, 1 e Adv haer V 8, 2, in Teología de San Ireneo I , 278-283; 380-382 respectivamente; cf. Idem , El hombre ideal en la teología de San Ireneo , in Gregoriaum 43 (1962) 449-491. (5) Cf. Adv haer IV 1-5, 1. (6) Cf. Adv haer IV 5, 2-8, 1. (7) Cf. Adv haer IV 8, 2s. (8) Cf. Adv haer IV 9-11. (9) Cf. Adv haer IV 12-16. (10) Cf. Adv haer IV 17-19. (11) Cf. André Benoît, Saint Irénée, 182s. (12) Cf. Adv haer IV 20-22. (13) Adv haer IV 32, 1 . (14) Cf. Adv haer IV 33. !5) Cf. Adv haer IV 20, 1. (16) “Portanto, não foram os anjos que nos plasmaram – os anjos não poderiam fazer uma imagem de Deus – nem outro qualquer que não fosse o Deus verdadeiro, nem uma Potência que estivesse afastada do Pai de todas as coisas. Nem Deus precisava deles para fazer o que em si mesmo já tinha decretado fazer, como se ele não tivesse as suas próprias mãos! Desde sempre, de facto, ele tem junto de si o Verbo e a Sabedoria, o Filho e o Espírito. É por meio deles e neles que fez todas as coisas, soberanamente e com toda liberdade, e é a eles que se dirige, quando diz: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança [Gn 1,26], tirando de si mesmo a substância das criaturas, o modelo daquilo que fez e a forma dos adornos do mundo”, Adv haer IV 20, 1. (17) Do texto que a seguir citamos bastaria a última parte para justificar a nossa afirmação, mas parece-nos importante dá-lo a conhecer na totalidade porque ilustra à saciedade toda a problemática antropológica que St. Ireneu procura repetidas vezes afirmar e defender. “Como se podem os homens salvar se Deus não é quem operou a sua salvação na terra? Ou como o homem irá a Deus se Deus não veio ao homem? Como poderão eles abandonar a geração de morte se não for por novo nascimento dado por Deus de maneira inesperada e maravilhosa em sinal de salvação aquele que aconteceu no seio da Virgem e serem regenerados pela fé? Ou como receberão de Deus a adopção permanecendo neste nascimento que é segundo o homem neste mundo? Como poderia ser maior do que Salomão ou do que Jonas e como seria o Senhor de David se fosse da mesma substância deles? Como poderia derrotar aquele que era mais forte que o homem, que tinha vencido o homem e o mantinha em seu poder e como poderia triunfar do vencedor e libertar o vencido se não fosse superior ao homem vencido? Maior que o homem, feito à semelhança de Deus, quem poderia ser, exceptuando-se o Filho de Deus, à semelhança do qual o homem foi feito? Por isso, no fim, o próprio Filho de Deus mostrou esta semelhança, fazendo-se homem assumindo em si a antiga criatura, como explicamos no livro anterior”, Adv haer IV 33, 4 . (18) Cf. Adv haer IV 36-41, 3. (19) Cf. Adv haer IV 36, 1 . (20) Adv haer IV 37, 4 . (21) Cito em defesa desta posição o jesuíta Antonio O rbe que no seu importante comentário ao livro V adverte: “Ireneo combate en el libro V a marcionitas y discípulos de Valentín. Pero también, en segundo plano, a individuos de la magna Iglesia, muy poco amigos de la Salus carnis y muy mucho de alegorizar en las Escrituras. Los dos perfiles van unidos: el amor a la alegoría les lleva a subir de la letra a lo invisible, de la dispensación de la Salus carnis a la de la Salus animae. Tal aspecto, silenciado por la crítica, denuncia un fenómeno palpable desde los días de San Justino: la aparición en el seno de la Iglesia de una antropología (platonizante de color filoniano), paralela a la de los Presbíteros del Asia, con grave repercusión en los novísimos. Doctrina que se resume en la identidad homo=anima, y no tardará en prevalecer por obra de los dos alejandrinos Clemente y Orígenes. El platónico homo = mens, connaturalizado entre los exegetas del Génesis por Filón, sustituirá al escriturario homo = humus (resp. homo=caro), arrastrando con la antropología la dispensación correspondiente”, Teología de San Ireneo I, 11s. Ver toda a introdução a este comentário: ibidem , 3-25. Cf. Idem , Adversarios anónimos de la Salus carnis . (Iren., adv. haer. V,2,2s) , in Gregorianum 60 (1979) 9-53. (22) Cf. Adv haer V 1-14. (23) Cf. Adv haer V 15-24. (24) Cf. Adv haer V 26-36, 2. (25) Cf. Adv haer V 6, 1; V 11, 2 . (26) Cf. Adv haer V 6, 1. (27) Cf. Adv haer V 15-16, 2. (28) Cf. Adv haer V 16, 3-20. (29) Cf. Adv haer V 21-24. (30) Cf. Adv haer V 25-36. (31) Cf. Adv haer V 25, 1-30, 4. (32) Sobre a doutrina quiliasta de St. Ireneu veja-se José Eduardo Franco & José Manuel Fernandes, O Mito do Milénio, Lisboa: Paulinas 1999, 55s. (33) Cf. Adv haer V 31, 1-35, 2. (34) Cf. Adv haer V 35, 2-36, 3. |
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