CADERNOS DO ISTA, 15 |
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Não nos enganemos: nada de humano é perfeito e o que é perfeito está para além do humano. E sobre isso, essa perfeição que não nos é dado atingir nem, portanto, saber, não podemos senão calar-nos, como há muito o estabeleceu Wittgenstein, nem a devemos transformar em objecto de fatal paixão pois que, como muito antes daquele já Nietzsche tinha avisado, o que há de amável no homem é a sua incompletude, o seu não encerramento em qualquer (per)feição acabada. Porquê, então, a crença e a obsessão actuais, ostensivas, omnipresentes, com um corpo perfeito? Como tese geral, quero adiantar que a ideia de um corpo perfeito corresponde à secularização - recente - do ideal de aperfeiçoamento moral da humanidade desenvolvido pela escatologia cristã. Por sua vez, ele encontrava-se de algum modo já presente na antropologia metafísica socrático-platónica, que de facto, o cristianismo fêz sua, escatologizando-a. Na verdade, a ciência moderna não hesitou em subscrever, com pouco ou nenhum embaraço ante as suas origens e motivações não-científicas, a concepção segundo a qual a condição humana é passível de ser aperfeiçoada. O que essencialmente faz divergir a ciência e a religião, neste campo, é o facto de a matéria-prima da emancipação da condição humana se ter entretanto transferido, entre a primeira e a segunda, da alma para o corpo. O aperfeiçoamento do corpo, um pobre sucedâneo a que se terá então agarrado um mundo que perdeu a sua alma? Nem tanto. Ao certo, não teria sido possível pensar, na Modernidade, o aperfeiçoamento tecnocientífico do corpo sem que se fisicalizasse o aperfeiçoamento moral outrora proposto pela filosofia e pela teologia. Mas este deslocamento antropológico, que tem por eixo a substituição de uma natura humana inamovível por um devir humano cuja matéria-prima biológica é indefinidamente moldável, e que se pode dizer que consiste, no essencial, numa fisicalização da antiga alma no moderno corpo, passou pelo menos por três grandes etapas: o mecanicismo, o darwinismo e a actual revolução biotecnológica. Cada uma destas retoma à sua maneira, com os seus próprios meios e perseguindo interesses cognitivo-instrumentais específicos, a transformação da matriz grega, a qual se mantém até aos alvores da modernidade, através da tradição médica e alquímica, por um lado, e, por outro, e paralelamente, filtrada pela metafísica patrística que moldou o pensamento cristão medieval. De facto, o naturalismo grego não deixou de atravessar a Idade Média cristã, de tal modo que alguns dos seus temas puderam ser reactivados pela concepção moderna de corpo e inclusive alimentar o equívoco segundo o qual a biotecnociência actual mais não faz que retomar, a um nível apenas superior de sofisticação cognitiva e instrumental, o ideal clássico de perfeição física expresso na ideia de uma mente sã num corpo são. Efectivamente, não é assim. A actual manipulação biotecnocientífica do corpo não retoma o ethos grego do corpo senão ao preço de transformações tão radicais que o tornam irreconhecível. O ethos grego era um ethos juvenil, aristocrático e saudável. Juvenil, moldado no corpo glorioso do kouros que é imagem visível da perfectibilidade humana, o ideal de kalo kagathía que une indissoluvelmente a beleza física e a superioridade moral. Na iconografia clássica, espelham-se uns nos outros os corpos dos mortais e dos imortais. É igualmente certo que, do ponto de vista grego, que inverte o antropomorfismo, é do super-corpo dos deuses que os homens retêm, por um instante tão glorioso como fugidio, a inexaurível vitalidade que é apanágio divino. No entanto, a separação socrático-platónica entre corpo e alma só se imporá, por via neo-platónica com o cristianismo, já na época medieval. Tal como todos os antigos e os não-ocidentais, o homem grego desconhecia a experiência moderna de ter um corpo, ele era, indiviso, o seu próprio corpo. Exclusivamente corpo, só o soma , o cadáver na sua irremediável inércia. Com efeito, para os gregos arcaicos, o infortúnio do homem não reside no facto de a sua alma imortal estar presa num corpo perecível mas no facto de este não ser o super-corpo divino. Aceder a ele após a morte era algo que só aos heróis era possível, colhidos na flor da juventude, o momento da akme física em que mais amados eram pelos deuses. Com efeito, aos Gregos, era-lhes de todo alheia a ressurreição cristã da carne, conheciam tão-só a eterna juventude. Aristocrático, o corpo grego é portador das marcas da desigualdade determinada pela própria natureza. A excelência física que se comprova no estádio mais não reflecte do que a condição natural dos bem-nascidos, daqueles que são livres e nobres por natureza, uma natura medicatrix que elimina as suas próprias imperfeições e que, nessa medida, constitui o horizonte normativo da acção humana a qual, sob pena de hybris , mais não deve que copiá-la. Daí, a sanção da prática eugénica, enquadrada na mesma moldura da mimesis a que obedece a grande tradição médica clássica, assente na distinção primordial entre patologias do acaso e patologias da necessidade. Saudável, o corpo grego é-o por necessidade, só se melhora ou aperfeiçoa aquilo que é já excelente por natureza. O melhorismo inerente às tecnociências biomédicas contemporâneas é interdito por princípio à medicina grega que se abstém de intervir contra a natureza, para physin . Por princípio, o médico, pelo menos o médico hipocrático, nunca abre o corpo, nem com uma finalidade diagnóstica nem com uma finalidade terapêutica e, quando o seu conhecimento ou o tratamento do doente o exigem, caberá ao cirurgião fazê-lo porquanto a invasividade está estatutariamente vedada ao médico. O corpo individual é um microcosmos, composto de humores (bílis, atrabílis, sangue e fleuma), que se articula com o mesocosmos, a ordem da comunidade humana, e o macrocosmos, a ordem cósmica com os seus quatro elementos (ar, água, terra, fogo) e com as respectivas qualidades (quente, frio, seco e húmido). A arte da restituição da saúde, a tekne iatrike , caracteriza-se pela submissão à physis que é ordo naturae , ordenada e ordenadora, harmoniosa e equilibrada em si mesma, dotada de isonomia, de uma necessidade interna ( ananke ) que faz com que ela contenha aquilo que mais tarde os latinos esclarecerão como uma vis medicatrix naturae , a capacidade de curar por si mesma (automatê), de se instruir a si mesma ou cuidar do que é seu sem interferência externa. Daí que os médicos gregos deixassem ao arbítrio da physis as doenças devidas à necessidade e só se ocupassem das doenças devidas ao acaso. A physis que cura ou mata segundo a necessidade surge assim como limite normativo da intervenção humana, já que a inexorabilidade da lei que internamente a rege a alça ao divino. A divina physis estabelece pois a esfera de legitimidade da intervenção humana e define com clareza a impiedade, a hybris, que comporta o quebrar com os limites por ela impostos. Para o médico hipocrático, tratar é essencialmente ocupar-se daquilo que, na physis, é “nómico”, da alteração do equilíbrio das qualidades de um corpo, isto é, da doença, tal como ela é então definida. O conhecimento do corpo e a intervenção nele articulam-se com um conhecimento cosmológico. A intervenção médica poderia então exprimir-se como a restituição de uma situação anómala, de pathos, à situação de ethos ou conformidade à ordem harmoniosa da physis. Mais especificamente, a medicina hipocrática proporciona ao pensamento clássico, do qual é contemporânea, uma concepção empírica sistematizada do corpo humano e delimita o quadro teórico-prático em que é possível e legítimo intervir nele, desde as técnicas diagnósticas e terapêuticas até à deontologia médica. Tal não significa que a reflexão filosófica dependa, em sentido estrito, das concepções médicas mas antes que ambas compartilham uma mesma representação do corpo e que será sobre ela que se irá erguer uma antropologia metafísica que, pretendendo afastar-se dela, não deixa de a corroborar. Medicina e filosofia antigas encontram-se pois precisamente no ponto onde se dá a transformação da “fisiologia” médica (no sentido dos fisiólogos que procuram um princípio explicativo universal, da arke) em que assenta o cânone ético-estético do corpo humano belo, verdadeiro e justo, numa ontologia, própria do pensamento socrático-platónico, a contemplação teórica da beleza, da verdade e da justiça intemporais do ser. Ou, em termos mais simples: a “metafísica” filosófica distingue-se mas, de modo nenhum, exclui a “física” médica; ou ainda: a corporeidade desta não é desmentida mas antes reflectida, pela incorporeidade daquela. Ao que medicina e filosofia compartilham já foi chamado a eidologia antropológica grega: eidologia é o que reunia aquilo que modernamente se desdobrou em anatomia e fisiologia, é o conhecimento da forma humana, capacidade de perceber figuras, aspectos da realidade ordenados em conjuntos, a visão do corpo como um todo uno dotado de uma virtude ou arete global, precisamente a mesma que Fídias e Policleto, coectâneos do corpus hipocraticum , realizam na sua arte. É este o corpo clássico que herdámos do modelo grego mas que passou por sucessivas revisões, a começar pela alquimia, até à manipulação biotecnocientífica actual. A alquimia constitui, até certo ponto, uma transição entre a ciência antiga e a ciência moderna quanto às atitudes acerca da possibilidade de intervir no corpo para o transformar. Com efeito, ela é o veículo de transmissão de uma antiquíssima tradição de criaturas artificiais, que remontam à mais alta Antiguidade, de que são exemplo as estátuas animadas egípcias mas de que a literatura clássica também se fêz eco com a história de Pigmalião e Galateia. As histórias desses sucedâneos do homem culminam com o homúnculo de Paracelso, no período renascentista, e o golem da alquimia rabínica, no século XVII, este retomando um tema já detectável no judaísmo contemporâneo do início da era cristã. Na verdade, a alquimia revela a origem oriental da tradição de intervenção no corpo humano, que a medicina hipocrática rejeitava, menorizando a cirurgia e que a tradição ocidental só assimila com a síntese operada pela medicina helenística alexandrina, a qual chega inclusive a praticar a vivissecção humana. O legado da alquimia às ciências actuais encontra-se bem estabelecido desde há muito. A alquimia ilustra exemplarmente a duplicidade de continuidades e de rupturas que, em paralelo, moldaram a revolução científica moderna. No que estritamente diz respeito ao tema em apreço, e em última análise, a cultura da alquimia é triplamente responsável: pela moldagem de um arquétipo de criatura artificial cuja memória se conserva hoje no imaginário biotecnocientífico que informa a criação de seres vivos de design, humanos e não-humanos, e que chegaria aos nossos dias sobretudo por via literária; pela valorização, contra uma ciência puramente livresca e exegética, do trabalho de laboratório (com cujos meios se fabrica a criatura artificial) que a racionalidade científica haveria de alçar a uma metodologia experimental; e pela fermentação de um ideário regenerador universal (de que a criatura artificial é um dos avatares) reactivado na vocação utópica e emancipadora da ciência moderna. Esta não só aproveita técnicas e instrumentos de laboratório, medicamentos de base mineral, que os alquimistas legaram aos futuros físicos, químicos e médicos, mas também projectos que os cientistas modernos recuperam expurgando-os da filosofia hermética que sustentava as práticas alquímicas, a qual substituem pela mathesis universalis . Newton é porventura o caso mais célebre, ao pretender prosseguir o mito de uma verdadeira alquimia com a ambição de ter êxito onde a sua antecessora falhara, isto é, dotando-a dos meios, credores de superior eficácia, da moderna ciência experimental. A dimensão emancipadora e utópica da ciência moderna irá beber na anterior vocação da alquimia de renovatio universal que passava pela mudança de todas as instituições religiosas, sociais e culturais cujo primeiro e indispensável passo era, precisamente, o da reforma da própria ciência em que homens como Newton se encontravam já empenhados. O opus alchimicum é encarado como a continuação do projecto divino, outorgando ao homem criador a faculdade de regenerar e aperfeiçoar a obra do supremo demiurgo, incluindo a conservação da saúde humana, até à promessa da eterna juventude e mesmo da imortalidade. Disso se ocupava, precisamente, a Medicina universal, na qual se procedia à liquefacção da pedra filosofal, de que resultavam a panaceia universal, que permitia a reconstituição da saúde e a regeneração do corpo, e o elixir da longa vida que possibilitava prolongamento da vida e a conservação de um estado de eterna juventude. Segundo uma interpretação mística dos processos de depuração alquímica conducentes à obtenção da pedra filosofal, estes mais não fazem que alegorizar as sucessivas purificações do ser humano na demanda do conhecimento total. A pedra filosofal aludiria assim, em última instância, ao processo de transformação do próprio homem rumo à perfeição, a iniciação que faz renascer e ressurgir espiritualmente, tal como os organismos vivos renascem da matéria putrefacta. Na medida em que supera a sua condição humana de origem, o iniciado apresenta-se como exemplo vivo da transmutação alquímica mediante a qual ele teve acesso a um corpo glorioso análogo ao de Adão antes da queda e que o comum dos pecadores só adquirirá se lhe forem perdoados os pecados no Juízo Final. O modelo aqui presente é o do deus que morre e ressuscita, garantindo com isso a regeneração da humanidade e do mundo, mito já presente nos mistérios egípcios de Osíris e Ísis que se encontra posteriormente nos mistérios órficos e no culto de Mitra mas que os alquimistas cristãos não hesitarão em reconhecer no Cristo salvador. O imaginário alquímico ecoaria numa longa série de narrativas sobre o homem artificial, a começar pelo golem por cujo intermédio se haveria de insinuar nos interesses cognitivos que hoje conduzem as tecnociências do vivo, aplicadas quer ao homem, quer aos demais seres vivos. Foram as artes, e em particular a literatura e o cinema, que constituíram o veículo, por excelência, de transmissão do arquétipo alquímico da criatura artificial para as actuais tecnociências, as quais a reconfiguram no ser vivo de design, quer ele seja vegetal, animal, ou humano. Em palavras mais simples: o que o nosso mundo tecnocientífico se propõe fazer com o vivo em geral, e os corpos humanos em particular, exibe inegáveis afinidades, ao nível do imaginário que lhe molda os interesses cognitivos, com os sonhos alquímicos de uma Medicina universal. E é o mesmo arquétipo que encontramos nos projectos da engenharia genética, de construção de seres transgénicos, já em curso para fins industriais ou biomédicos, ou de quimeras biológicas, para fins por enquanto exclusivamente cognitivos. Também não são alheios a esse arquétipo o mapeamento e a sequenciação integrais do genoma humano, que visam possibilitar um conhecimento manipulativo assente na redução do vivo ao informacional do código genético. Identicamente, a vida artificial, tal como se exprime na prossecução da clonagem, e a vida humana artificial, tal como a almeja a clonagem humana. O clone humano transgénico, que pretensamente deveria repetir as características desejáveis do humano aperfeiçoando-as para lá do que alguma vez poderia prometer a condição biológica humana, mais não é que a consumação do projecto demiúrgico de uma engenharia de melhoramento mediante a qual a tecnociência moderna faz seu o sonho alquímico da transmutação superadora da condição humana. No entanto, essa passagem não é directa mas antes filtrada pela tentativa de construção de simulacros de corpos humanos, o que acontece com os autómatos imaginados pelo mecanicismo dos séculos XVII e XVIII. A seu tempo, será o próprio corpo humano a medir-se com o simulacro artificial das suas próprias características escolhidas, pois que um simulacro não é uma mera cópia de um original mas uma reprodução selectiva de qualidades discriminadas. As actuais intervenções melhoristas nos corpos humanos não deixaram de ser moldadas sobre os simulacros - as criaturas artificiais - construídas a partir dos corpos naturais. |
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