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Historial |
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Em 1992 publiquei o meu primeiro trabalho de História das ciências, sobre uma espécie famosa de Cabo Verde: uns lagartos ainda hoje estudados por cientistas de todo o mundo (1). A história envolve celebridades em vários campos, basta mencionar Napoleão. Fiz um levantamento de textos que falavam dos lagartos, e dispunha assim de um corpus muito significativo. Apercebi-me da existência de contradições, incongruências, e em especial dei-me conta de que a nomenclatura científica variava e apresentava erros de ortografia. Concluí que os cientistas eram um bocado tontos, coitados, e além disso eram ignorantes, não sabiam latim. Neste poleiro de superioridade, ao lidar com manuscritos, nem sempre me apercebi de que havia neles nomes gralhados. Por isso, na transcrição, redigi-os em boa nomenclatura. Este fenómeno é corrente, grave, e já chamei a atenção para ele: os investigadores nem sempre transcrevem com fidelidade, e não avisam que emendaram o texto. Uma das razões é este automatismo intelectual que nos impede de ler no papel aquilo que já sabemos. O conhecimento dá um salto sobre a leitura, e o que se transcreve é o resultado da exegese e não o texto original. Isto resulta numa fraude involuntária. Se for deliberada, é por excesso de boa fé e não por falta dela. Os originais podem nem ser manuscritos, sim textos publicados. No nosso trono sapiencial, sentimos dó de Baltasar Osório, por exemplo – mas informo que este exemplo não é meu -, quando fala de um peixe apanhado no Rio Matosinhos (2). Infelizmente, este curso de água não faz parte da nossa rede hidrográfica. Então emendamos para Rio Leça, que é verdadeiro, se aceitarmos a proposição platónica de que verdadeiro é aquilo que existe realmente. Verdade se diga que no texto de Baltasar Osório o que existe realmente é o Rio Matosinhos, por isso, pese embora a Platão, falso é o Rio Leça. Posto isto, já fiz em público mea culpa , por ter falsificado informação, ao redigir bem o que no manuscrito só há pouco tempo reparei que estava errado. Se originalmente à espécie foi atribuído o nome Macroscincus coctei , está errado escrever Manroscinco , Macroscincus cocteani, M. cocty e por aí adiante. O meu trabalho, fundado nas descrições originais, tinha nelas a sua referência em verdade. Todas as gralhas, embora também existissem realmente, devendo por isso considerar-se verdadeiras, tomei-as por falsidades involuntárias. Mas nessa altura eu não pensava em verdade e mentira, a mentira implica um acto de vontade; a minha cabeça não sonhava sequer com a hipótese de que a ciência errasse de propósito. Pensava, claro, na ignorância de cientistas que, mesmo nascidos no Douro e tendo estudado na Universidade de Coimbra, situavam Coimbra na região do Douro. No cadeiral de arrogância em que o disparate alheio nos entroniza, eu estava indefesa, a ser ludibriada e a receber caneladas de todos os lados. O erro é aquilo que a ciência mais abomina, os textos passam de mão em mão antes de publicados, e eu tinha a experiência de trabalhos que os cientistas me confiavam para lhes corrigir as gralhas. Eis pois o meu primeiro elogio da mentira: usar o erro como código é uma ideia genial. Nem vós acreditais nisso, apesar de vos ter passado para as mãos fotocópias da Flora de Portugal , de Gonçalo Sampaio (3), com os nomes em latim ornamentados com acentos gráficos, e do catálogo dos “Moluscos terrestres de Portugal”, de Augusto Nobre, com uma série de localidades portuguesas deslocadas da região em que se situam, entre elas Coimbra, que ora aparece no Douro ora na Estremadura (4). Embora o sentimento de superioridade me tivesse transformado numa toupeira, a verdade é que eu sou escritora, e o artista goza de luz própria. Então resolvi não assumir o trabalho sobre os lagartos como ensaio, sim como autobiografia deles, declinando a responsabilidade da enunciação no próprio Macroscincus coctei . Daí que o texto tenha por título “Memórias do lagarto cabo-verdiano”. No correr dos anos, alargando o campo da investigação a outras áreas e a outros temas, descobri que estava a ser enganada em permanência por uma literatura contaminada em toda a sua extensão pelo vírus das gralhas, mas aprendi com isso uma grande lição. Eis pois o meu segundo elogio da mentira: aprende-se muito com ela. Habituei-me a verificar todos os factos suspeitos, a usar mapas para ver bem por onde passa o Equador, a consultar livros de Genética, para descobrir que ela exprime a alteração de caracteres dos híbridos através de um código de letras – a, b, x, y, etc. -, significando isto que nomes de espécies com caracteres tipográficos alterados denunciam animais e plantas com os caracteres biológicos alterados. Animais com caracteres biológicos alterados são por exemplo esses cãezinhos de luxo, a que já só falta nascerem com laçarotes na cabeça. Plantas com caracteres alterados são as tulipas negras, azuis ou verdes, e de resto todas as flores dos nossos canteiros. Então, se as gralhas informam sobre o que existe realmente, e o que existe realmente é um mundo totalmente transformado pelo homem, aí está o terceiro motivo para elogiar a ciência: a sua mentira diz a verdade, e di-la de um ponto de vista do criador e não do cientista. |
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Notas
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(1) GUEDES, Maria Estela (1992) - Memórias do lagarto Cabo-Verdiano. "O Escritor" Revista de Cultura da Associação Portuguesa de Escritores, nova Série, nº 1, [1992] p. 83-104. Em linha em http://triplov.com . Citado em 2004. (2) OSORIO, Balthazar (1896) - Peixes de Mattosinhos (Terceiro appendice ao catalogo dos peixes de Portugal de Felix Capello). Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Naturaes, Segunda Série, IV (15): 131-159. (3) SAMPAIO, Gonçalo (1946) - Flora Portuguesa. Porto, 2ª edição. (4) NOBRE, Augusto (1908) - Mollusques terrestres du Portugal. I. Monographie des familles Pupidae et Stenogyridae. Extracto do tomo III dos Annaes da Academia Polytechnica do Porto. Coimbra, Imprensa da Universidade, 22 págs, 2 estampas. Em linha no TriploV. |
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