Em Filosofia, importa conceptualizar as formas por que foram
acontecendo relações diferentes quando se confrontam ciências
e crenças. Para isso é preciso identificar as suas condições de
existência, passadas e presentes. Ou seja, delimitar o modo de
ser da instância perceptiva-cognitiva e modalidades respectivas;
especificar a táctica operatória actuando no exercício do acreditar
ou do conhecer; dilucidar as estratégias nos actos de fé e nas
provas.
Caso particular da maneira como o devir psicológico e o
processo histórico contrariam a mesmidade, as nossas ligações ao
natural e ao sobrenatural não têm tido a mesma identidade e
expressão, ao longo dos tempos, colectivos ou individuais. Com
efeito, elas não só apresentaram, desde sempre, mudanças nos
comportamentos e no agir, como também representaram vários
ritmos de estar-no-mundo. A existência do universo teórico e experimental obriga a que
lembrem as diferenças entre conhecimento empírico = percepção
das aparências = universo dos fenómenos e conhecimento científico = construção conceptual = universo fenomenológico =
factos científicos, bem como a distinção entre observação
espontânea, observação dirigida e experimentação sistemática. Por sua vez, a existência do mundo das crenças exige que se
questionem a falsidade destas identidades: crença = medo de
saber = demissão do entendimento = fantasia?
Ao longo deste texto, atenderam-se a alguns prolegómenos quando
se procuram as configurações vigentes no sistema epistémico
moderno. Sendo ele a matriz, percebe-se melhor, agora, como
somos tributários deste sistema, pelo que remanesce dele, nas
possibilidades e limites que nos permitem e proibem de pensar ou
crer.
Com efeito, os jogos em questão do entendimento, abordados no
interior da dialéctica entre sujeito e objecto do conhecimento, são
passíveis desta sequência: transmissão centrada sobre o(a)
autor(idade) e o comentário; conhecimento dependendo da via
perceptiva e de certo formalismo conceptual; inteligibilidade inserida
num dispositivo teórico e numa estrutura lógico-matemática. Por
outras palavras e sob uma perspectiva «gnosiológica» e «cronológica», os prolegómenos às epistemologias modernas encontram-se
com estas figuras paradigmáticas: ouvir e ler, olhar e ver, observar e
experimentar.
Assim sendo, foi contra ou dentro destas figuras paradigmáticas,
no todo ou em parte, que emergiram três tipos de relação entre
ciência e crença: relação de disputa - modernidade, defesa da
complementaridade - crise modernista, reconhecimento da
dualidade - postmodernidade.
Seguidamente, indicam-se algumas afirmações que merecem ser
reflectidas e, porque não?, levadas para o próximo milénio.
Ciências e crenças estabelecem entre si interrelações culturais, no
meio de umas tantas formas de relativismo cultural. Apesar disso,
convém distinguir: a figura da crença-fé está relacionada com
a figura do ouvir-escutar; a figura da razão-ciência relaciona-se com as figuras do olhar-ver e observar-experimentar. Emergindo dentro de ordens diferentes, parece não se justificar a
necessidade, e utilidade, de qualquer esforço de uniformidade entre
figuras fundamentadas e autónomas. Por isso, a postmodernidade
tende a consignar o estigma do saber, a imagem, num lado, e o
estigma da sabedoria, a palavra, no outro.
A crença não é um medo de saber, demissão do entendimento,
fantasia. Sem anular procuras e inseguranças, resulta de um
conhecer partilhado no interior de uma comunidade reconhecida de
fieis, sua garante.
A ciência não é só audácia, racionalidade, crítica. Apesar da
parcialidade e da possibilidade de erro, ela faz crer por via de
uma argumentação tendendo para a persuasão, seja através de
demonstrações ou provas. Prova absoluta é impossível.
Radicalizadas monoliticamente, quer a ciência - cientismo -, quer
a crença - fideísmo - representam mundos fechados que tendem
para ideologias ou apologéticas.
Em cada época, há áreas determinadas em que (não) se
pode pensar. Também por isso, não podemos conhecer tudo. A
consciência dos limites do conhecimento não equivale a uma paralisia
mental, devendo, quando bem orientada, servir como acicate para a
inteligibilidade.
Por isso, os sonhos que nos levarão para o século XXI vão
passar pela consciência de que a parte como disciplina científica, o
particular como especialidade profissional, a análise como
atomicidade, a desharmonia como falta de qualidade, a viagem
como excursão turística rodearam-nos de um mundo que só
será diferente quando voltar a incluir a metamorfose de certos
valores. Isso acontecerá, por certo, no contexto de utopias onde
a identidade-desejo-necessário-essencial-diverso concorra
para superar a massa-produto-supérfluo-secundário-uniforme.
Só assim reduziremos estas perdas: perda da analogia em favor
da diferença, perda da harmonia em favor do domínio da natureza,
perda da segurança ontológica em favor da instabilidade gnosiológica,
perda do todo em favor da especialização absurda, perda do intocável
em favor de tudo é possível, perda do fruto proibido em favor do
acesso a tudo, perda do transcendente em favor do imanente, perda
do limite, perda do próximo em favor do distante, perda do real em
favor do virtual, perda de ser em favor do ter. |