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..CADERNOS DO ISTA | ||
Selvagem: não será qualificar a religião de uma maneira pejorativa? Não será conferir desde o principio a supremacia à fé cristã? Não, porque o qualificativo vem de uma constatação: nos nossos contemporâneos a religiosidade já não é canalizada ou organizada pelas instituições mas está dependente de um livre desenvolvimento da subjectividade. O Homem religioso já não é aquele que integra uma Igreja mas o que pensa que a produção pessoal do sentido não se esgota nos interesses razoavelmente definidos pelas ciências e pelas técnicas; que o sentido emerge algures e só a intuição, o desejo ou o afecto o percebem. Assim a religiosidade já não é mediatizada por instituições cuja função é definir o espaço religioso, as formas de vida e pensamento que nele se integram, mas nasce das necessidades da subjectividade, lugar dos afectos. As instituições fornecem conteúdo para a alimentar, mas não têm que impor nem normas nem dogmas. Se é assim, o “paranormal” (1) é um conceito sem pertinência, porque sugere que quem o utiliza sabe o que é normal. Tradicionalmente, no ocidente, foram as instituições eclesiais que o definiram em matéria religiosa. Este privilégio já não é reconhecido por muitos dos que se confessam religiosos. Todo e qualquer consenso desapareceu a este respeito, cada qual definindo a normalidade religiosa em função do seu desenvolvimento subjectivo. Selvagem tornou-se por isso a religião porquanto os sujeitos religiosos não aceitam qualquer outra regra senão a da sua própria conveniência. Nesta perspectiva, pode-se falar de um supermercado do sentido ou do religioso, onde todas as crenças e religiões têm uma loja e aonde cada um se abastece segundo os seus gostos; não se pode designar qualquer instituição que tenha a mestria do sentido. As Igrejas cristãs mantêm socialmente o seu comércio como qualquer outra crença: participam nas múltiplas propostas que procuram satisfazer as necessidades religiosas. O ateísmo facilitava a tarefa apostólica: organizava um espaço dual, o do sim ou do não. A multiplicidade das crenças ou das opiniões religiosas transpõe o modelo democrático de tolerância até ao próprio movimento do transcendente, com toda a polissemia de que este termo é actualmente portador dado que a sua consistência desaparece a proveito dos benefícios subjectivos que activa. Por relação à regra austera do Credo cristão, o florescimento religioso actual parece sacrificar ao “paranormal”, ao menos para aqueles que veneram a razão. Mas não se pode esquecer que o próprio cristianismo, em relação ao juízo da razão organizada pelo Iluminismo, é uma fábula e inscreve-se para muitos dos nossos contemporâneos na ordem do “paranormal”. O normal veiculando uma forte ambiguidade, a minha exposição fará economia da discussão sobre o seu estatuto, e atenho-me à regra do Credo cristão submetendo-a à questão fecunda ou destruidora da efervescência religiosa actual e da extraordinária multiplicidade das suas formas de expressão. Por necessidade de clareza faço a recensão de três atitudes possíveis a partir do núcleo cristão: a recusa, o compromisso e a reciprocidade. Como conclusão tentarei esboçar o sentido de uma questão que continue este debate. Esta austeridade do Novo Testamento teve efeitos consideráveis: permitiu que as comunidades cristãs se demarcassem dos sonhos milenaristas, das fábulas gnósticas, das práticas esotéricas. A rejeição de numerosos escritos que testemunhavam de Jesus, de actos de apóstolos que mobilizavam o maravilhoso ou que levavam a uma leitura intempestiva dos sinais dos tempos é uma consequência da sobriedade da fé em Cristo: é inútil conhecer os segredos do Cosmos, do Além, do futuro, da psicologia messiânica de Jesus, dado que o único segredo de Deus, o Verbo, foi manifestado na vida não messiânica de Jesus e revelado no Espírito. Que Deus no seu Filho se tenha feito um de nós, em tudo semelhante ao humano excepto no pecado, sem alterar as leis do mundo e sem intervir na história pelo poder, foi norma do juízo sobre tudo o que a imaginação religiosa e o desejo de um algures propunham. A sobriedade da vinda humana de Deus e da sua palavra não têm nada a fazer com experiências religiosas que arrancam o divino ao quotidiano e o separam do reconhecimento do outro. Imagina-se dificilmente hoje o poder da efervescência religiosa e espiritual dos primeiros séculos do cristianismo. Suspeita-se raramente a que ponto o sentimento religioso tentou reintrepretar a personalidade de Jesus Cristo noutro espaço que não o da sobriedade bíblica: os apócrifos testemunham desta vontade de demonstrar no tempo a energia e a glória supostas do Filho do Homem. Não se dá o justo valor à pressão que a efervescência religiosa e quase mística da Antiguidade tardia exerceu sobre o cristianismo. A intransigência cristã foi o meio de defesa da jovem Igreja na sua luta para que Cristo não fosse reinterpretado a partir de um caminho diferente do que ele próprio traçou e o levou a ser rejeitado e crucificado. Este caminho não recebeu nada de representações religiosas exacerbadas. Esta recusa não é um juízo sobre a religiosidade, é a preservação de um caminho original: o Deus sempre maior que se revela no mais humano e no mais pobre. Esta regra de sobriedade continua hoje pertinente, mesmo se não esgota inteiramente o sentido do caminho cristão e se não serve para integrar o diálogo inter-religioso. A pressão popular levou o cristianismo à tolerância, a aceitar um compromisso que não nascia da fé como tal. Esta ruptura radical pôde manter-se num contexto de rejeição social de uma minoria muito restrita: esta fortalece a sua união na esperança de que o caminho do mundo, dominado por deuses perversos, vai desaparecer a breve trecho. Desde que o cristianismo se tornou o caminho maioritário que aceitou assumir à sua conta crenças e práticas que tinham mais a ver com a religiosidade efervescente do que com a entrega incondicional de si mesmo a Deus na noite da fé. Foi necessário criarem-se oásis que permitissem ao maior número de pessoas a apropriação sob formas simbólicas, rituais, e a maior parte do tempo ambíguas ou impuras, da riqueza austera e no entanto alegre da mensagem essencial. O retomar cristão dos lugares sagrados do paganismo, o assumir de múltiplas formas de práticas devocionais, a criação de lendas maravilhosas, as peregrinações aos templos dos santos homens ou mulheres, as narrativas de milagres e de curas, as cerimónias grandiosas, um clero dispondo de meios poderosos de intercessão…tornaram-se na forma que tomou a fé quando, por preocupação do povo, se resignou a ser “religião”. Este processo teve múltiplas vantagens e alguns inconvenientes. Múltiplas vantagens aos olhos do maior número de gente porque humanizou a fé favorecendo a sua aculturação nos meios populares afastados das grandes tradições culturais. Este processo permitiu a muita gente viver sem angústia o trágico humano dado que os santos familiares a protegiam no quotidiano e que as práticas simples de devoção conseguiam a sua ajuda benéfica. Assim a especialização dos santos na cura de tal doença ou no resguardo face a tal aflição contribuiu para alargar a compreensão da miséria humana ao mesmo tempo que instituiu uma economia frutuosa na gestão das misérias físicas e espirituais. As práticas devocionais tinham igualmente o privilégio de tornar suportável o anúncio do juízo final; toda a imaginação fantástica à volta do purgatório nasceu destes compromissos populares, no limite do aceitável. Apaziguavam-se facilmente as mais altas autoridades celestes para que no dia da comparência diante de Deus santo se pudesse estar sem muito medo, certos de todos os apoios adquiridos pelas múltiplas práticas peregrinantes ou devocionais. Não é preciso, de resto, ir a épocas muito afastadas para verificar a expansão deste comportamento: Marcel Jouhandeau conta que o patrão parisiense de uma casa de passe ia a todas as procissões do Santíssimo Sacramento quando voltava à sua Bretanha natal: esperava assim atenuar diante de Deus o carácter ousado do seu comércio (2). Basta igualmente pensar no extremo sucesso das celebrações dos Ramos ou de Todos os Santos para perceber o carácter pacificador destas práticas religiosas que a fé eclesial tolera sem aprovar plenamente. A religião popular tem qualquer coisa de processo comercial, parente do regateio de Abraão com Deus a propósito de Sodoma (Gn 18, 22-23). Compreende-se que nas situações de aflição, nas guerras por exemplo, as Igrejas se encham como se Deus fosse o último recurso. Uma sondagem recente mostra que uma situação exasperante é o momento mais favorável à expressão da oração. Os inconvenientes não são no entanto mínimos. Os cristãos mais lúcidos sabem medi-los. Assim, o discernimento de desvios graves conduziu por vezes a movimentos de reforma. À reforma protestante não estranha uma vontade de ruptura com práticas que, segundo ela, tinham mais a ver com o paganismo do que com as Escrituras. Mais próxima de nós, a oposição entre fé e religião segundo K. Barth, representa a teorização da radicalidade do cristianismo contra todas as tentativas para enquadrar Deus em esquemas humanos. No princípio do seu movimento, os teólogos latino-americanos da libertação, em reacção contra uma gestão eclesiástica da religião popular tida por muito laxista, quiseram aclimatar o rigor barthiano à alegre anarquia devocional reinante nos seus países e que eles julgavam nefasta para uma responsabilidade séria no plano político. Compreenderam rapidamente que esta intolerância contribuía para lhes afastar o povo mesmo se ganhava alguns militantes. Assim começaram por julgar mais favoravelmente a religião popular, fonte potencial de libertação política porque protesto do desespero humano diante de Deus. Seria um erro integrar a efervescência religiosa actual nas liberdades que se dá a religião popular em relação à norma que é a Escritura. A religião popular aceita o quadro geral da fé eclesial, mesmo se dele não se inspira mais do que moderadamente. Ela permite-se certamente extravagâncias e transgressões, mas não tem qualquer desprezo por uma prática mais austera; mantém-se num espaço intermédio, pensando que um cristianismo só com fé diz apenas respeito aos heróis ou aos santos exemplares, e que as práticas tradicionais no limite da superstição testemunham da misericórdia de Deus num tempo em que a sua presença é tão ténue. O maravilhoso das lendas e das fascinação dos ritos permitem caminhar na noite sem muitos riscos. Mas a religião popular sabe que o sentido último vem dos evangelhos que testemunham de Jesus Cristo, mensageiro de Deus. O que é designado como religiosidade selvagem, o esoterismo ou o New Age, é de uma outra ordem. O compromisso que é a religião popular representa uma terapia mais ou menos eficaz da efervescência religiosa. Não é certo que o compromisso possa ser hoje a forma de responder às questões levantadas por uma experiência religiosa marcada por um carácter extremamente subjectivo. O Compromisso organizado pela Igreja entre a fé cristã e práticas religiosas recorrentes não pode servir de modelo a uma política de abertura em relação aos desejos religiosos contemporâneos, mesmo se pode justificar o facto de que a intransigência não é o único caminho da situação religiosa presente. Dois elementos definem o que está em causa: a falta de credibilidade da Igreja e a relativização da mediação crística. A falta de credibilidade da Igreja é um dado adquirido. A sua autoridade já não é um critério de validade ou de legitimação de uma crença. Esta última é agora aceite na medida em que convém ao desejo e desenvolve a subjectividade. Se alguém tem autoridade na transmissão, não a detém em função do seu lugar numa instituição, mas pela força da sua experiência subjectiva. O descrédito da autoridade funcional ou objectiva explica o sincretismo das crenças: cada qual escolhe o que lhe convém no depósito das crenças propostas pelas instituições. A relativização crística é outro elemento maior das novas religiosidades. Jerôme Rousse-Lacordaire escreve justamente: Para muitos membros das espiritualidades alternativas, Jesus, segundo um modelo doceta(doutrina segundo a qual o corpo de Jesus era uma pura aparência), é dissociado de Cristo, no sentido em que a sua natureza humana não seria mais do que uma expressão transitória e totalmente contingente, uma forma divina adaptada a uma situação dada, eventualmente exemplar, de um Deus radicalmente inacessível, ou ainda um guia e um modelo particularmente ilustre de homem divinizado (3). E acrescenta, com pertinência, que o termo “espiritualidade” substitui hoje frequentemente o termo “religião” e goza de uma acepção tal que perde todo e qualquer conteúdo determinado, para designar uma espécie de atitude de espírito que visa a harmonia com um cosmos mais ou menos sacralizado (4). As formas contemporâneas extremamente variadas de expressões espirituais que definem o campo religioso têm a ver com um movimento no qual a razão instrumental (ciência e técnica) é tida como insuficiente para preencher os desejos de desenvolvimento subjectivo. Um “algures” é pressentido como capaz de manter a abertura do desejo e de fazer da existência uma procura infinita de desenvolvimento e de felicidade: nunca é conceptualizado. Toda a certeza dogmática é por isso mesmo tida como perniciosa porque acaba com o movimento e impõe um conhecimento fechado e uma prática repetitiva. O efémero e a fluidez da crença são inseparáveis do seu poder de transformação subjectiva. Toda a autoridade institucional é esterilizante porque fecha a porta à interpretação múltipla e sempre renascente. As novas espiritualidades preenchem o desejo subjectivo e por isso singular porque nunca fecham a porta a qualquer abertura potencial. Esta fluidez é o seu poder de fascinação: não é dissociável do seu poder de provocação em relação às instituições eclesiásticas que emitem normas para organizar o fluxo afectivo e imaginário no reconhecimento de Deus. Fascinação que tem a ver com o seu carácter informal e que se enquadra em termos sedutores como: investigação, procura, liberdade, abertura, tolerância, experiência, outros modos de vida, diálogo…Descrédito das instituições que reúnem em si os termos que simbolizam a clausura: certeza, verdade, lei, norma, autoridade, intolerância, rigidez…Assim a fluidez e a leveza das crenças, a sua dança inovadora, são condições da liberdade subjectiva e do seu desenvolvimento, for a do quadro das certezas dogmáticas e das intransigências institucionais. A verdade não tem lugar, eclesial ou crístico, mas existe na procura indefinida de si mesmo como elemento activo e passivo de um cosmos em constante transformação. Se divino há, ele não se identifica ao fixismo do monoteísmo de que as instituições religiosas do sentido são os representantes policiais. Designar esta religiosidade como “paranormal” não é pertinente senão por relação a uma normalidade institucional ou crente rejeitada sem mais como desprovida de sentido para as espiritualidades alternativas. Como é que o cristianismo pode questionar e deixar-se questionar por um movimento tão presente como sedutor na sua leveza? Confesso a minha perplexidade. O movimento de abandono actual em relação ao cristianismo, a sua marginalização cultural, a desatenção teológica em relação às novas sensibilidades religiosas não favorecem o começo de um debate construtivo. Como com efeito, tratar positivamente, não apenas a partir de uma perspectiva razoável, mas a partir do coração da fé cristã, tentativas espirituais de que as antecipações comparáveis na Antiguidade foram a maior parte do tempo mais rudemente afastadas do que ouvidas? Por modéstia, penso numa dupla atitude, a meu ver inseparável, capaz de inspirar um trabalho teológico adaptado ao espaço democrático que é o nosso: ouvir e questionar. Ouvir: a atracção pelo esoterismo articulada ao abandono das instituições religiosas de sentido é um sintoma de mal estar em relação às nossas sociedades racionais e em relação à sua administração religiosa. Podem-se constatar práticas diversas que vão da extrema popularidade da astrologia e dos videntes até às utilizações mais heterogéneas das diferentes tradições religiosas mas não se entrevê uma única teoria; contam-se experiências relevando de um afecto comum mas não se vê nascer uma doutrina geral comparável à que fundamenta as religiões instituídas. A heterogeneidade das práticas ligadas a um horizonte de sensibilidade comum é um traço do disfuncionamento das nossas sociedades e das religiões maioritárias no tratamento da vida afectiva, sensível, corporal, a saber no tomar em linha de conta da subjectividade singular. Muitos dos nossos contemporâneos julgam que nem a sociedade nem as religiões instituídas escutam o apelo que vem do mais profundo da sua experiência e por vezes da sua angústia. Nem a razão nem a fé cristã dão o que desejam: estar em harmonia consigo mesmos e com o mundo. Não é que abandonem a razão: eles compreendem todas as vantagens da aplicação prática dos seus princípios. A ciência continua venerada mas não esperam que assegure o progresso moral e o desenvolvimento subjectivo. A sua ordem de conhecimento não satisfaz o desejo singular. Quanto às religiões instituídas, estas não os escutam, segundo pensam, cegas como estão pela sua boa consciência e afogadas nas suas certezas. Escutar o desejo expresso na reivindicação da harmonia, segundo as orientações de uma subjectividade sempre singular, é sem dúvida o primeiro trabalho da Igreja em relação ao que nasce no novo mundo religioso, o mais das vezes esotérico. A tarefa é tanto mais difícil que elementos próximos da contradição entram na reivindicação religiosa presente: a ligação de uma instituição primeira do cristianismo, a singularidade insubstituível do sujeito livre e do seu destino, com o pensamento repousante de uma desaparição no devir universal. Uma citação retirada de um romancista japonês, Eiji Yoshikawa , exprime notavelmente este último elemento. O herói, o samurai Masashi prepara-se para enfrentar num combate singular um terrível guerreiro. É a hora de partir ao combate mas prepara-se para desenhar: Olhava o papel branco como o grande universo da não existência. Um simples toque de pincel faria nascer a existência. Podia evocar a chuva e o vento à sua vontade mas, fosse o que fosse que desenhasse, o seu coração subsistiria para sempre no quadro. Se o seu coração estivesse agitado, o quadro também o seria. Se tentasse exibir o seu endereço, seria impossível escondê-lo. O corpo humano desaparece, mas a tinta sobrevive. A imagem do seu coração havia de sobreviver depois do seu desaparecimento. Compreendeu que estes pensamentos o retinham. Estava a entrar no mundo da não existência , tempo de deixar o seu coração falar sozinho, para além do seu eu, libertado do toque pessoal da mão. Tentava fazer o vazio, esperando o estado sublime em que o seu coração se exprimiria a uma só voz com o universo. Os barulhos da rua não atingiam o quarto. O combate do dia parecia-lhe simplesmente exterior. Só tinha consciência do murmúrio dos bambus no jardim fechado (5) Escutar a reivindicação é entrar na lógica da contradição, talvez aparente, entre o extremo interesse dado à singularidade do eu para a escuta de uma palavra que nunca pode emanar de si mesmo, a de Deus que se anuncia como inesperada e imprevista. Que Deus se manifeste no rosto de Jesus Cristo singulariza absolutamente o eu do homem e ao mesmo tempo abre-o tão radicalmente que nele todo e qualquer rosto humano se reflecte e se alarga. A Palavra de Deus é uma ferida e leva até à incandescência última o eu ao mesmo tempo que o convoca para a urgência que nasce de um desejo sempre sem nome: sem o outro que vem até mim, eu não sou nada, estou perdido. A fraternidade é a expressão desta felicidade que o eu começa a experimentar quando renuncia a ser apenas o eu próprio. Esta felicidade nascida do abandono de todo o egoísmo não é idêntica à procura de fusão e de convivialidade calorosa a partir das quais joga a publicidade de tantas seitas. A questão do outro, índice para o crente cristão do Deus que se fez próximo porque se fez um de nós, é infinitamente mais importante do que a harmonia consigo mesmo ou com o universo. Mas nenhuma técnica espiritual ou esotérica a pode fazer aparecer: ela é tão gratuita como aquilo a que se chama graça. Talvez que o cristianismo apenas pode provocar a dúvida nos que vivem nesse espaço. Esta dúvida nasce de uma palavra que vem desse homem já longínquo, Jesus Cristo, e no entanto sempre presente numa experiência múltipla e multissecular no que diz respeito à subjectividade mais singular. Mário Botas (1) Como é utilizado por H. Bourgeois, “Contemplation et New Age”, in Lumière et Vie 207 (1992), pp.93-97; ou por J.-L. Schlegel, «L’attirance pour le supra-normal», in Lumière et Vie 236 (1998), pp. 43-56. |