A SECULARIZAÇÃO DA LINGUAGEM MESSIÂNICA: A UTOPIA
MARIA LEONOR TELLES


..CADERNOS DO ISTA

Do ponto de vista da literatura e da história da cultura ocidental, não há dúvida de que uma das projecções mais marcantes da linguagem messiânica é a forma secularizada que assume nas chamadas “utopias”, surgidas a partir do Renascimento, a época em que Sir Thomas More (1478-1535) cunhou o termo “utopia”, hoje de uso corrente - a par do adjectivo “utópico” - para designar o irrealizável.

Anteriormente, a linguagem messiânica esteve sempre associada a um contexto religioso, à promessa divina de tempos vindouros, melhores, mais felizes, como no Antigo Testamento. Mesmo o próprio entendimento cristão do papel desempenhado por Jesus de Nazaré exprime-se em termos de realização de promessas que vinham desde Adão, passando pela aliança, simbolizada pelo arco-íris no episódio de Noé, reatada com o Patriarca Abraão e concretizada na conquista da Terra Prometida, mas que o Povo Escolhido constantemente atraiçoava por desobediência à Lei Mosaica. Reconheceu-se em Jesus o Cristo, o Ungido, destinado a instaurar definitivamente o Reinado de Deus, na medida em que nele se confirmavam as características messiânicas consignadas nos Livros Proféticos, nomeadamente em Isaías.

Nos Evangelhos torna-se, porém, muito claro que Jesus recusa o papel político tradicionalmente associado ao Messias, príncipe da linhagem de David que viria restaurar o Reino de Israel, libertando-o do domínio estrangeiro, na época representado pela sujeição a Roma: “O meu reino não é deste mundo...” (Jo,18,36)

Para o Cristianismo, portanto, o reino de Deus estaria entre nós, mas a sua plena realização, a parúsia, que traria a presença transfigurada do Filho do Homem, quando Jesus Cristo, triunfante, assumisse a sua realeza para julgar o mundo, situar-se-ia fora do tempo actual.

Assim, enquanto vigorou o regime de Cristandade, ou seja, durante a Idade Média, não foi possível isolar o messianismo do seu enquadramento religioso. Para além do facto de a unção real ter chegado a ser considerada sacramento, a figura messiânica do Rei Artur (destinado a regressar um dia para restaurar a ordem no país, como o seu equivalente português tardio, D. Sebastião) liga-se à demanda do Santo Graal, o cálice da primeira eucaristia, a despeito dos elementos célticos pagãos que persistem na lenda.

Ora, se o pensamento da era medieval, na esteira de Santo Agostinho (354-430), continuava voltado para “a Cidade de Deus”, situando-se a obra mais célebre de então, a Commedia de Dante (1265-1321), nas três zonas do Além: Inferno, Purgatório e Paraíso, com o Humanismo renascentista a perspectiva teocêntrica vai atenuar-se, permitindo uma recuperação do antropocentrismo clássico, cuja expressão mais radical, sempre citada, será a máxima do sofista Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto existem e das que não são, enquanto não existem.”(1).

Assim, é compreensível que a ideia platónica de construção terrena de uma cidade ideal (A República) viesse a ser retomada, tanto mais que os descobrimentos abriam novo espaço ao sonho de recuperar ou reedificar um mundo perfeito, alheio aos males que contaminavam o velho continente (2).

A Utopia de Thomas More, escrita em latim, e portanto destinada a ser lida apenas em círculos eruditos, é um produto acabado do ambiente intelectual do Humanismo. Nela o autor contrapõe às injustiças vigentes na sociedade europeia, em geral, e na Inglaterra em particular, comentadas no diálogo que constitui o Livro Primeiro, a descrição, no Livro Segundo, de uma ilha onde a paz, a igualdade de oportunidade, a divisão equitativa do trabalho, a partilha dos bens e consequente desprezo pela riqueza e pelas honrarias, permitem aos seus habitantes a felicidade que consiste na fruição dos prazeres honestos. O nome da ilha, que no esboço inicial da obra se chamava Nusquama, é Utopia, versão latina do que em grego significaria “não-lugar”, ou “nenhures”, mas que consente o jogo verbal entre o prefixo negativo ou- e aquele que significa “bom”, eu-. Na edição ne varietur da obra, publicada em Basileia em 1518 (3) essa ambiguidade é evidenciada num pequeno poema que precede o texto e é atribuído a um sobrinho da personagem Hitlodeu, o que, a par de características formais reconhecidas pelos especialistas, desde logo aponta para a autoria de More:

Utopia priscis dicta, ob infrequentiam,
Nunc civitatis aemula Platonicae,
Fortasse vitrix (nam quod illa literis
Deliniavit, hoc ego una praestiti,
Viris et opibus, optimisque legibus)
Eutopia merito sum vocanda nomine
(4).

Em português:

Utopia, assim chamada pelos antigos, devido ao meu isolamento,
Da cidade platónica agora rival,
Ou talvez superior a ela (pois o que com letras
Delineou, só eu própria demonstrei,
Com homens e obras e óptimas leis),
Eutopia é o nome por que mereço ser chamada.

Para além desta caracterização da Utopia como lugar perfeito, onde a promessa messiânica de paz, harmonia e felicidade parece realizada sobre a terra, nestes versos explicita-se a inspiração clássica da obra, que, aliás, não é a única afinidade que apresenta com os escritos de outros humanistas. Basta lembrar como a denúncia dos abusos de poder e da corrupção vigentes na sociedade contemporânea, na primeira parte do texto de More, desenvolve, se bem que em tom mais sério e com maior profundidade, as críticas do seu amigo Erasmo (1467-1536) em Elogio da Loucura, ou como, na segunda parte, se encontram ecos da teoria do prazer exposta por Lorenzo Valla (1407-1457) em De Voluptate, pois os utopianos, rejeitando a tradição ascética, “não consideram que a felicidade consiste em qualquer prazer, mas sim no prazer bom e honesto. É, de facto, para essa felicidade, como para o bem supremo, que é atraída a nossa natureza pela própria virtude, à qual unicamente a facção oposta atribui a felicidade”(5).

Quanto à descrição do governo e das instituições da ilha imaginária, que permite equiparar a Utopia a um tratado de filosofia política, parece concebida no intuito de refutar as propostas de Maquiavel (1469-1527) na obra O Príncipe, publicada em 1513. More contrapõe à razão de estado, que, para o autor italiano, tudo legitima, o zelo pelo bem comum, encarando, como Platão, o exercício do poder em termos de serviço e não como um fim em si que justifica todos os meios utilizados para o manter.

Surpreendentemente, porém, será o cristianíssimo Thomas More e não o diabolizado Maquiavel quem inicia o processo de secularização da linguagem messiânica, pois esta ainda vai ser usada, na exortação a Lourenço de Médicis com que termina O Príncipe, para anunciar o salvador da pátria, escolhido por Deus para libertar o povo dos seus opressores, numa simples transferência do contexto vetero-testamentário para o do nacionalismo moderno:

E se, como disse, foi necessário o povo de Israel ser escravizado no Egipto para se revelar o valor de Moisés, os Persas serem tiranizados pelos Medos para se conhecer a grandeza de espírito de Ciro e os Atenienses serem dispersos para se saber a excelência de Teseu, assim agora, para se conhecer o valor de um espírito italiano, foi necessário a Itália ser reduzida ao estado em que a vemos: mais escrava do que os Judeus, mais serva do que os Persas, mais dividida do que os Atenienses, sem chefe, sem ordem, vencida, pilhada, desmembrada, varrida por estrangeiros... Em resumo, foi necessário que sofresse todos os infortúnios.

E se bem que, até ao presente, se notassem em certo homem alguns vislumbres capazes de fazer crer que fora escolhido por Deus para a libertar, depressa se viu como, no apogeu das suas acções, a fortuna o repeliu. Assim, sem vida, ela espera o aparecimento daquele que sare as suas feridas e ponha fim às pilhagens da Lombardia e à espoliação de Nápoles e da Toscana, que lhe cure as chagas que há muito tempo já degeneraram em fístulas. Vemos como suplica a Deus que lhe envie alguém capaz de a libertar destas crueldades e bárbaras tiranias, vemos, também, como está pronta e disposta a seguir uma bandeira, desde que surja alguém que a queira transportar ? e não se alcança, presentemente, em que outra casa ela possa ter esperança, a não ser na vossa muito ilustre, a qual, com a sua fortuna e os seus talentos, e favorecida por Deus e pela Igreja (cujo leme segura), poderia chefiar a ansiada libertação (6).

A radical novidade da perspectiva de More, que abre caminho para as concepções laicas de sociedade ideal, reside sobretudo na tese implícita de que o conhecimento da Revelação não levou à prática dos preceitos evangélicos, nem contribuíu para instaurar um regime político tão perfeito como o da Utopia, estabelecido a partir do simples recurso à razão humana, desprovida da iluminação da fé cristã. E a própria associação da ideia de felicidade, não à promessa escatológica de “novo céu e nova terra” (Is. 65,17), mas sim à vivência temporal dos habitantes de uma ilha, ainda que imaginária, implicou uma secularização da linguagem messiânica que, subsequentemente, a desviará da esperança no desígnio salvífico de Deus para a confiança na capacidade de progresso do ser humano.

Note-se, porém, que a subversão de valores que essa mudança implica não se verifica no âmbito do Humanismo renascentista. São ainda de inspiração evangélica as propostas de reforma dos comportamentos, dos costumes e das instituições, implícitas nas críticas de More e Erasmo, como nas de Lutero (1483-1546), que “chocou os ovos postos por Erasmo” (7). E, se More inaugurou o chamado “socialismo utópico”, tendo sido o seu nome inscrito num monumento da Praça Vermelha de Moscovo, após a instauração do comunismo na Rússia (8), nada poderia estar mais longe das intenções do católico convicto, que preferiu o martírio à aceitação da supremacia laica do rei sobre a Igreja de Inglaterra, do que a implantação de um sistema político fundamentado no materialismo ateu.

A Utopia foi concebida pelo seu autor como uma ficção inofensiva, de inspiração platónica, quer no tema quer na forma de diálogo, mas também cristã, na medida em que é visível a transposição para a ilha ideal de aspectos do estilo de vida dos monges cartuxos - de que More tivera experiência directa, ao habitar por algum tempo com a comunidade de Londres -, como a partilha dos bens ou a singeleza e relativa uniformidade do vestuário.

E esta deliberada conjugação de elementos de origem diversa preside a todo o processo de construção da Utopia, que não pretende ser um texto programático, mas antes um exercício lúdico, elaborado por um humanista para deleite intelectual dos seus pares. Assim, o enquadramento da descrição inverosímil do lugar ideal inexistente são as pormenorizadas referências a uma viagem real à Flandres, empreendida por More, e à sua verdadeira relação de amizade com um humanista de Antuérpia. Este último passa, porém, a desempenhar um papel ficcional quando apresenta ao amigo a personagem Rafael Hitlodeu, um pretenso navegador português, que, em abono da verosimilhança, é associado às últimas viagens de Américo Vespúcio. A partir daí, More, autor, cria a personagem More, interlocutor de Rafael, que, no diálogo subsequente, refuta com argumentos moderados o radicalismo das opiniões atribuídas - por More autor - ao português. Por exemplo:

Não deveis esforçar-vos por inculcar no espírito de pessoas com opiniões completamente diferentes ideias insólitas e desconcertantes, que não teriam peso algum. É preferível adoptar uma via indirecta: na medida do possível, tratar tudo com habilidade e, se os vossos esforços não podem transformar o mal em bem, que sirvam ao menos para atenuar o mal. De facto, como é impossível que tudo seja bom sem que todos sejam bons, não espero que este ideal se realize antes que passem muitos anos (9).

Recusando-se a aceitar como inevitável um tal adiamento sine die da era messiânica, Rafael reagirá, incluindo na sua longa contra-argumentação uma das mais severas críticas às atitudes nada evangélicas dos que se dizem cristãos:

Na verdade, se tivesse de omitir-se, por desconcertante e absurdo, tudo o que parece estranho aos hábitos pervertidos dos homens, teriamos nós, cristãos, de ocultar a maior parte dos ensinamentos de Cristo, mesmo aquilo que ele expressamente proibiu de ocultar, ordenando aos discípulos que proclamassem abertamente sobre os telhados o que lhes havia murmurado aos ouvidos. [...] É certo que os pregadores, homens hábeis, segundo creio, seguiram o vosso conselho e, vendo que os homens tinham grande dificuldade em adaptar os seus costumes à lei de Cristo, acomodaram aos costumes a sua doutrina, como quem verga uma régua de chumbo (10).

Contudo, mesmo depois de Hitlodeu comprovar com o exemplo da Utopia a possibilidade de construir uma sociedade perfeita baseada nos ditames da razão, a personagem More não se mostra inteiramente persuadida, e é a sua dúvida quanto à vantagem da abolição da propriedade privada e de tudo quanto dela deriva que remata o Livro Segundo. Assim, na obra de More, o elemento paradoxal característico dos topónimos inventados - de que Utopia é o caso exemplar, mas não único -, longe de confinar-se à geografia, abrange a construção do texto e o próprio ideário subjacente, porque, para o autor, se tratava de um jogo, de palavras, personagens e conceitos, cuja maior ou menor seriedade competiria ao leitor esclarecido avaliar.

De facto, ao longo dos tempos, muitos foram os leitores da Utopia e, desde cedo, teve imitadores. O humanista francês François Rabelais (1483-1553), decerto inspirado pelo carácter aparentemente hedonista da sociedade ideal de More, introduz, nos capítulos finais da sua obra Gargantua, a descrição da Abadia de Thélème, considerada “uma utopia pedagógica”, cuja regra era “fay ce que voudras” (hoje dir-se-ia “fais ce que tu voudras”). É esse, aliás, o único ponto de contacto entre as duas obras, visto que os jovens escolhidos para frequentar esta instituição, que de abadia só tem o nome, pois aí não existe clausura nem separação de sexos, em vez de se sujeitarem à monástica disciplina rigorosa da vida dos utopianos, nos horários, nos trabalhos e no vestuário, desenvolvem livremente os gostos, as artes e os estudos típicos da aristocracia humanista:

Toda a sua vida era orientada, não por leis, estatutos ou regras, mas de acordo com a vontade e o livre arbítrio deles. Levantavam-se da cama quando bem lhes parecia, bebiam, comiam, trabalhavam, dormiam quando lhes apetecia. Ninguém os acordava, ninguém os forçava nem a beber nem a comer nem a fazer qualquer outra coisa. Assim o estabelecera Gargantua.

Na sua regra só havia esta cláusula: FAZ O QUE QUISERES, porque as pessoas livres, bem nascidas, bem instruídas, convivendo com companhias honestas, têm por natureza um aguilhão que as estimula sempre a praticar actos virtuosos e as afasta do vício, instinto esse a que chamavam honra. Quando, por vil sujeição e constrangimento se sentem oprimidas e dominadas, desviam esta nobre tendência que livremente as impeliria para a virtude, para sacudir e contrariar esse jugo de servidão, pois nós fazemos sempre as coisas proíbidas e desejamos o que nos é recusado (11).

Embora se possa conceber esta proposta de restabelecimento terrestre do paraíso como uma idealização do comportamento humano que ignora as más inclinações naturais, tradicionalmente encaradas como consequência do pecado original, antecipando as ideias pedagógicas de Rousseau (1712-1778) (12), não será esta a tendência para a secularização mais significativa nas obras que fazem parte da chamada “literatura utópica”, nem a que se tornará determinante para a sua evolução posterior, como, a partir de alguns exemplos apenas (13), seguidamente procurará demonstrar-se.

Nas utopias do século XVII reflectem-se as duas tendências, se não opostas, pelo menos divergentes, que marcaram o universo cultural da época - o zelo religioso e a curiosidade científica -, onde facilmente se reconhece a herança legada pelo Humanismo. A Contra-Reforma, ou Reforma Católica (14), logo seguida por uma radicalização das posições protestantes no puritanismo de Calvino (1509-1564), longe de remediar a ruptura iniciada por Lutero, conduziu a um confronto sangrento entre cristãos, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), e à insanável intransigência de atitudes de parte a parte, traduzida em inúmeras perseguições. Entre as vítimas desta situação contam-se dois imitadores da Utopia: o protestante alemão Johann Valentin Andreae (1586-1624), autor de Reipublicae Christianopolitanae Descriptio (1619) e o frade dominicano que, acusado de heresia, passou longos anos em prisões da Itália, Thommaso Campanella (1568-1639), a quem se deve Civitas Solis Poetica: Idea Reipublicae Philosophicae (1623).

Andreae, que publicou as Bodas Alquímicas, compilação dos ensinamentos atribuídos a um fictício Christian Rosenkreutz, sendo por isso sobretudo conhecido pela sua relação com o movimento esotérico Rosa-Cruz, é uma figura bem representativa da sua época: fundou uma Fraternidade que “tinha como objectivo separar a teologia cristã de todas as controvérsias que o tempo nela introduzira, alcançando assim um sistema religioso mais simples e mais depurado” (15), e o seu interesse pela ciência patenteia-se na preocupação com a alquimia, pois ainda não se estabelecera então a barreira que a separa da química, nem a distinção clara entre astronomia e astrologia, esta, aliás, já reconhecida por More (16).

Campanella manifesta também as tendências marcantes da época. Nas “Questões sobre a óptima república”, apensas à Cidade do Sol, defende a ortodoxia dos seus propósitos, invocando o facto de se ter inspirado nas instituições da “república imaginária” criada pelo “mártir recente” Thomas More, e recorrendo, por fim, à autoridade dos Padres da Igreja:

Apresentamos, pois, a nossa república não como dada por Deus, mas como uma descoberta filosófica e de razão humana para demonstrar que a verdade do Evangelho é conforme à natureza. [...]

Para ensinar os gentios a viver rectamente, se não quiserem ser abandonados por Deus, e convencer os cristãos de que a vida de Cristo é conforme à natureza, tomámos o exemplo desta república, como São Clemente tomou o da república socrática e como fizeram São Crisóstomo e Santo Ambrósio (17).

Mas, para além das muitas semelhanças com a Utopia, o que em A Cidade do Sol mais sobressai, no diálogo entre o Almirante genovês, lídimo sucessor de Hitlodeu, e o Grão Mestre dos Hospitalários, é a sedução exercida por toda uma série de conhecimentos científicos que transcendem os limites tradicionais do trivium e do quadrivium: além de “figuras matemáticas, bem mais numerosas do que as descobertas por Arquimedes e Euclides” e de “uma completa e extensa descrição de toda a terra” (18), a geografia, a mineralogia, a botânica, a zoologia, a medicina, as artes mecânicas.

É evidente que Campanella, como a maioria dos seus contemporâneos, não associava ao saber critérios de rigor: os dragões são incluídos na lista dos répteis (19), e do currículo solar fazem parte “as ciências metafísicas e teológicas”, sendo objecto de estudo aprofundado “as profecias e a astrologia” (20).

Será o inglês Francis Bacon (1561-1626), erudito, filósofo e cientista, autor de Novum Organum, onde expõe os princípios de um método indutivo precursor do experimentalismo moderno, quem construirá uma utopia, New Atlantis (1626), inteiramente baseada na ideia de que a felicidade sobre a terra depende do avanço científico e tecnológico da sociedade. É certo que a redacção da obra ficou incompleta devido à morte do seu autor, mas parece evidente que as questões de ordem religiosa ou metafísica são relegadas para segundo plano, na medida em que Bacon adopta a estratégia de cristianizar a sua ilha utópica, pela “miraculosa evangelização de S. Bartolomeu” (21), que se efectua mediante a chegada de uma arca contendo, além de uma carta do Apóstolo, a Sagrada Escritura (22), elemento necessário e suficiente para a conversão, do ponto de vista de uma Igreja reformada como a que se estabelecera em Inglaterra.

Na Nova Atlântida o narrador descreve como, após longos meses de navegação, uma tempestade arrastou o seu barco para a ilha desconhecida de Bensalem, algures nos Mares do Sul, onde ele e os companheiros de viagem foram tão bem acolhidos que são levados a dizer:

Parecia-nos que tinhamos perante nós uma imagem da nossa salvação no céu; porque nós, que pouco tempo atrás estiveramos prestes a ser tragados pela morte, tinhamos sido transportados a um lugar onde só encontrávamos consolações (23).

Ora esta ilha paradisíaca, ao contrário da Utopia, não se distingue do mundo ocidental nem pela religião, nem por alterações significativas no esquema social ou económico, nem pela ausência de ostentação de riqueza (24), mas sim porque os seus habitantes devem uma óptima qualidade de vida à existência de um centro dedicado à investigação científica, a Casa de Salomão, ou Academia das Obras dos Seis Dias (25) cuja finalidade "é o conhecimento das causas e dos movimentos secretos das coisas, e o alargamento dos limites do domínio humano, para a realização de tudo o que é possível" (26).

Entre os prodigiosos resultados obtidos contam-se alguns que fazem da Nova Atlântida uma obra de antecipação científica, pois correspondem a descobertas de épocas futuras, tais como câmaras frigoríficas, materiais sintéticos, adubos, microscópios, fábricas de ilusões. E, sobretudo, a Casa de Salomão é a representação simbólica do sonho utópico de transcender as limitações da condição humana mediante o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, que só muito mais tarde viria a transformar-se em pesadelo.

Esta crença optimista no progresso será uma das características do pensamento iluminista, dominante no século XVIII, e é geralmente atribuída à influência das teorias do filósofo alemão Leibniz (1646-1716) acerca da harmonia preestabelecida, associada à ideia de que Deus criou “o melhor dos mundos possíveis”, submetendo-o a normas susceptíveis de encaminhá-lo para a perfeição. Daí deriva o deísmo setecentista, que substitui a crença teísta na providencial intervenção divina nos assuntos humanos pela noção, compatível até com o rigoroso racionalismo de Descartes (1596-1650), da existência de um Criador que concebeu as leis perfeitas que regem o universo e a elas o abandonou, como quem põe a funcionar o mecanismo de um relógio. Ligada a essa concepção do “Deus relojoeiro” está a procura da “religião natural”, ou seja, dos princípios fundamentais comuns a todos os credos, que permitiriam ultrapassar as divergências entre eles, segundo o projecto universalista que igualmente preside à preocupação com o “direito natural”, cujas consequências políticas são por demais evidentes (27).

A contestação deste optimismo quanto à perfectibilidade das instituições e da própria natureza humana vai surgir, porém, em obras satíricas, onde a viagem imaginária, tal como na Utopia de More, serve de pretexto para apontar os defeitos incorrigíveis dos homens e da sociedade, como é o caso de duas narrativas igualmente célebres, Gullivers Travels, da autoria do irlandês Jonathan Swift (1667-1745), cuja primeira edição data de 1726 (28), e Candide ou loptimisme, de Voltaire, publicada em 1759. Mas tanto uma como outra se desviam da tradição utópica, porque o que prevalece é a representação caricatural da sociedade contemporânea, a crítica acerba às instituições vigentes, sem qualquer proposta alternativa de um mundo perfeito susceptível de ser habitado, e muito menos criado, pelo homem comum, de que os respectivos protagonistas são representativos.

As Viagens de Guliver pode mesmo considerar-se uma “distopia”, no sentido restrito da palavra,29 pois nenhum dos lugares visitados corresponde a uma imagem ideal de sociedade humana. No império minatural de Lilliput, em guerra permanente com Blefuscu, espelha-se a mesquinhez reinante na Europa, reduzida a diminutas proporções grotescas, como, por exemplo, no longo passo sobre a questiúncula religiosa resultante da nova maneira de partir ovos adoptada em Lilliput, que termina assim:

No decurso destes conflitos, os imperadores de Blefuscu protestavam frequentemente através dos seus embaixadores, acusando-nos de provocar um cisma religioso, por transgredir uma doutrina fundamental do nosso grande profeta Lustrog, no quinquagésimo quarto capítulo do Brundecral (que é o Alcorão deles). Pensa-se, contudo, que isto é mera distorção do texto: porque as palavras são estas; Todos os verdadeiros crentes partirão os seus ovos pela extremidade adequada: e qual é a extremidade adequada, na minha humilde opinião, parece-me ser deixado à decisão da consciência de cada um, ou pelo menos ao arbítrio do supremo magistrado (30).

Brobdingnac, a segunda região imaginada, estabelece um contraste positivo com a primeira, mas o facto de ser povoada por uma raça de gigantes marca desde logo a impossibilidade de constituir um paraíso terreal à escala humana; e, no relato da última viagem, a perspectiva distópica de Swift atinge o auge, na descrição de um país cujos únicos habitantes racionais, benevolentes e civilizados, são cavalos, os Houyhnhmns, enquanto os antropomórficos Yahoos não passam de animais selvagens dominados pelos piores instintos.

Candide de Voltaire, uma sátira sobretudo dirigida contra o optimismo leibniziano, caricaturalmente representado por Pangloss, que “ensinava a metafísico-teologo-cosmolo-nigologia” (31), conta como o jovem Cândido, expulso do castelo onde a sua inocência projectava a visão do paraíso, corre mundo e adquire experiência, através do contacto com as duras realidades do tempo: a guerra na Europa, a catástrofe do terramoto de Lisboa, a violência da Inquisição, a escravatura na América. Mas a viagem, aliás sempre semeada de grotescas peripécias inverosímeis, também leva o protagonista a lugares inexistentes, nomeadamente ao país do Eldorado, onde, como na Utopia, ao ouro e às pedrarias não é atribuído valor algum, e onde existe um “palácio das ciências” (32) como na Nova Atlântida. Essa imaginária pátria da liberdade, onde a religião é definida como a “de toda a gente” (33), pois consiste no simples e perpétuo louvor a Deus, não consegue, porém, reter Cândido e o seu companheiro Cacambo, que, tolamente, preferem abandoná-la, seduzidos por uma falsa promessa de riqueza e poder:

Se aqui ficarmos, seremos iguais aos outros que cá estão; enquanto que, se regressarmos ao nosso mundo, apenas com doze carneiros carregados das pedras do Eldorado, seremos mais ricos que todos os reis juntos, já não teremos de temer os inquisidores... (34)

Esta visão pessimista de que o homem não é feito para a utopia, ou vice-versa, será ultrapassada no século XIX, marcado por inúmeras tentativas de transferir, em teoria e na prática, para a vida terrena do indivíduo, de comunidades, de países e até de todo o mundo, a felicidade prometida para a era messiânica. O idealismo romântico oitocentista vai projectar-se no campo político, contrapondo ao liberalismo económico, responsável pelas injustiças desumanas da era da Revolução Industrial, o projecto de um novo regime, o socialismo (35), que cedo passa de “utópico” a “científico”, quando às primeiras concepções, de inspiração rousseauista ou cristã, se sobrepõe o materialismo dialéctico da versão comunista. Seria descabido tentar um esboço da história, por demais conhecida deste movimento, desde o início em que desempenharam papel de relevo as doutrinas de Charles Fourier (1772-1837), Robert Owen (1771-1858) e Étienne Cabet (1788-1856), que muito influenciaram a prática de comunidades “utópicas” dos Estados Unidos (36), até à publicação do Manifesto do Partido Comunista (37), de Karl Marx e Friedrich Engels, onde Vladimir Ilich Ulianov, aliás Lenine (1870-1924), encontrará a base teórica para a implantação do regime soviético na Rússia, num desvio radical do comunitarismo cristão que Tolstoi (1828-1910) aí idealizara anteriormente.

Para não alongar demasiado estas considerações acerca da secularização da linguagem messiânica, bastará dizer que a herança da literatura utópica recebida pelo século XX foi marcada por duas linhas mestras derivadas da perspectiva antropocêntrica da Utopia de More: a confiança no progresso da humanidade devido ao desenvolvimento científico e tecnológico, já manifesta no século XVII, e a esperança de alcançar a felicidade mediante o estabelecimento de um regime político de índole socialista, dominante no século XIX, variando, em ambos os casos, a atitude perante a religião, a que é atribuído um papel ora primordial ora secundário, até ser abolida como obstáculo à ordem justa que deveria permitir ao homem realizar-se plenamente neste mundo.

Tendo-se verificado, porém, que as promessas de instauração laica da era messiânica, quando postas em prática, longe de se cumprirem, se transformavam em ameaças de destruição dos valores essenciais da humanidade, a decepção com o presente leva a antever um futuro ainda mais sombrio, justificando o carácter distópico das obras do século XX que transportam o leitor a um mundo imaginário, numa viagem efectuada através do tempo (38). Entre estas merecem particular referência Brave New World, de Aldous Huxley (1894-1963), e Nineteen Eighty-Four de George Orwell (1903-1950), publicadas em 1932 e em 1949, respectivamente, porque correspondem a uma visão pessimista das conquistas no campo da ciência, da técnica e da política, em que, anteriormente, os autores de obras utópicas haviam depositado as maiores esperanças.

Huxley descreve um “admirável mundo novo” cujo planeamento científico é posto em execução pelos mais avançados meios técnicos, de modo garantir o bem-estar dos indivíduos e a harmonia social. As crianças, produzidas em laboratório, são condicionadas para o desempenho das funções a que se destinam, agrupando-se em cinco categorias, de alfa a epsilon, e são educadas através da “hipnopedia”, isto é, adquirem, por meio de mensagens que lhes são repetidamente transmitidas durante o sono, não só os necessários conhecimentos como também a persuasão de que o grupo a que pertencem é o ideal:

As crianças Alfa vestem-se de cinzento. Trabalham muitíssimo mais do que nós, por serem tão pavorosamente inteligentes. Gosto mesmo imenso de ser Beta, por não ter de trabalhar tanto. Além disso, somos muito melhores do que os Gamas e os Deltas. Os Gamas são estúpidos. Todos se vestem de verde, e as crianças Delta vestem-se de castanho. Ai, não, não quero brincar com crianças Delta. E os Epsilons ainda são piores (39).

Tanto bastará para se entender como a paz interna e o impecável funcionamento mecânico desta sociedade são conseguidos através da abolição de todos os valores básicos da cultura ocidental, mantidos apenas pelos Selvagens, que vivem marginalizados. Além da falta de liberdade, neste mundo vazio há sexo, mas não há amor, nem família, nem lares, baniu-se a história, a literatura e a religião. Num jogo verbal, que se perde em português, “Our Lord”, Nosso Senhor, é substituído por “Our Ford”, num grotesco endeusamento do patrono americano da indústria automóvel.

Mais assustadora ainda do que a descrição do Admirável Mundo Novo é a de Oceania, em 1984 de Orwell, o que se entende facilmente lembrando acontecimentos históricos dos anos que separam a publicação das duas obras, nomeadamente a instrumentalização do socialismo pelos regimes totalitários (40) estabelecidos por Estaline na Rússia e por Hitler na Alemanha (o chamado Nationalsozialismus); a Guerra Civil de Espanha (41) e a Segunda Guerra Mundial.

Orwell descreve um estado dominado por um Partido cuja figura dominante é o Grande Irmão (Big Brother), a quem são atribuídas faculdades que o tornam uma espécie de divindade omnipotente e omnipresente, exercendo uma vigilância constante sobre tudo e todos. “O Grande Irmão está a observar-te” é uma das frases inscritas por toda a parte (42), insistentemente repetida, a par das palavras de ordem do Partido “A GUERRA É A PAZ; A LIBERDADE É A ESCRAVIDÃO; A IGNORÂNCIA É A FORÇA” (43). Enfim, 1984, talvez a distopia mais radical do século XX, não perdeu actualidade com a passagem do ano que lhe deu o título, porque a invasão abusiva da privacidade resultante do progresso técnico, a distorção da verdade histórica para justificar alianças e guerras, a perseguição ideológica, a pressão dos meios de comunicação social sobre a opinião pública, a própria tentativa de usurpar o poder divino, não são apenas características do universo imaginário de Orwell.

Mas, embora a secularização da linguagem messiânica, iniciada com a Utopia, tenha evoluído num sentido tal que o optimismo das promessas de um mundo perfeito deu lugar ao pessimismo da antevisão de um futuro ameaçador, é a esperança que deve ter sempre a última palavra, por isso a citação mais adequada para concluir estas brevíssimas considerações será o penúltimo trecho da obra poética de José Saramago O Ano de 1993, que redime a visão distópica anterior através do regresso à inocência do paraíso recuperado, e onde as ressonâncias bíblicas são evidentes:

Levantou-se então um grande vento que varreu de estrema a estrema entre o mar e a fronteira a terra dos homens

Durante três dias soprou constantemente arrastando as nuvens dos incêndios e o cheiro da carne morta dos invasores

Durante três dias as árvores foram sacudidas mas nenhuma arrancada porque este vento era igual a uma mão apenas firme

As carcaças dos animais mecânicos rolavam pelas planícies como arbustos desenraizados e tudo era arrastado para longe para os países onde os pesadelos nascem e o terror

Depois choveu e a terra ficou subitamente verde com um enorme arco-íris que não se desvaneceu nem quando o sol se pôs

Nessa primeira noite ninguém dormiu e toda a gente saiu das cidades para ver melhor as sete cores contra o fundo negríssimo do céu

E houve quem chorasse de joelhos na terra branda nas ervas que rescendiam do vertiginoso cheiro do húmus

E houve quem ininterruptamente cantasse uma extática melodia não ouvida antes que era o longo suspiro soluço da vida que nascendo se sufoca plena na garganta

E pelos campos fora arderam fogueiras altas que fizeram da terra vista do espaço um outro céu estrelado

E um homem e uma mulher caminharam entre a noite e as ervas naturais e foram deitar-se no lugar precioso onde nascia o arco-íris

Ali se despiram e nus debaixo das sete cores foram toda a noite um novelo de vida murmurante sobre a erva calcada e cheirosa das seivas derramadas

Enquanto longe no mar o outro ramo do arco-íris mergulhava até ao fundo das águas e os peixes deslumbrados giravam em redor da luminosa coluna

O dia amanheceu numa terra livre por onde corriam soltos e claros os rios e onde as montanhas azuis mal repousavam sobre as planícies

A mulher e o homem voltaram à cidade deixando pelo chão um rasto de sete cores lentamente diluídas até se fundirem no verde absoluto dos prados

Aqui os animais verdadeiros pastavam erguendo os focinhos húmidos de orvalho e as árvores carregavam-se de frutos pesados e ácidos enquanto no interior delas se preparavam as doces combinações químicas do outono

Entretanto o arco-íris tem voltado todas as noites e isso é um bom sinal (44).

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NOTAS

1 Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira (Cf. Hélade, Coimbra, 1995, p. 257).

2 A América, onde Cristóvão Colombo, à chegada, julgou encontrar os rios do Paraíso descrito na Bíblia, veio a ser encarada pelos calvinistas ingleses que aí estabeleceram colónias no século XVII como o espaço ideal para a construção da Nova Jerusalém.

3 A primeira edição da Utopia, de 1516, foi impressa no final desse ano na tipografia da Academia de Lovaina, seguindo-se-lhe, em 1517, uma edição de Paris e, em Março de 1518, a de Basileia que, estando a esgotar-se rapidamente, foi revista e corrigida, para publicação na mesma cidade. Essa edição definitiva data de Novembro de 1518.

4 Cf. André Prévost, LUtopie de Thomas More (Présentation, texte original, apparat critique, exégèse, traduction et notes), Paris (Mame), 1978, p.331 (facsimile, p. 11). Introduziram-se as alterações do texto original necessárias para a transcrição, tais como desdobramento de abreviaturas.

5 Cf. id., ibid., p. 516 (104).

6 Cf. Niccolò Machiavelli, Il Principe, cap. XXVI - tradução de Fernanda Pinto Rodrigues, in O Príncipe, publicações Europa-América, 1976, pp.134s.

7 “Erasmus posuit ova et Luterus eduxit pullos”, frase proferida por um detractor de Erasmo na reunião de teólogos de 1527 em Valladolid, citada por A. Costa Ramalho, no Prefácio à tradução portuguesa da obra de Roland H. Bainton, Erasmo da Cristandade, Lisboa (Fundação Calouste Gulbenkian),1988, p. IX.

8 Uma reprodução fotográfica deste monumento figura apensa à colectânea de ensaios de Fernando de Mello Moser, Thomas More e os caminhos da perfeição humana, Lisboa (Vega), 1982.

9 Cf. André Prévost, op. cit., p. 432 (62).

10 Cf. id., ibid., p.435 (63).

11 Cf. Rabelais, Gargantua / Pantagruel (adapté au français moderne par Maurice Rat), Paris (Marabout), 1962, pp. 255s.

12 Em Émile ou De léducation (1762), Jean-Jacques Rousseau encara a educação como o livre desenvolvimento das tendências naturais positivas do ser humano, cuja corrupção decorre unicamente da má influência da sociedade. Algumas das suas propostas quanto à formação do seu pupilo imaginário lembram o currículo dos utopianos, nomeadamente a obrigatoriedade de aprendizagem de um ofício.

13 Seria impossível referir sequer as múltiplas obras classificadas como “utópicas”. Da lista compilada por Angele B. Samaan em 1971 e apresentada como incompleta, que compreende apenas autores de língua inglesa ou autores de obras cuja influência em Inglaterra foi notória, constam dezassete títulos do século XVII, dez do século XVIII, quase uma centena do século XIX e mais de cinquenta do século XX. (Cf. Moreana, Nov. 1971, nº 31-32, pp. 285-293).

Uma listagem muito mais abrangente de autores, com descrição do conteúdo de cada obra, a par de referências a tentativas de práticas comunitárias utópicas e indicação de bibliografia para cada entrada, pode encontrar-se nas 457 páginas da compilação de Richard C. S. Trahair, Utopias and Utopians: An Historical Dictionary, London & Chicago (Fitzroy Dearborn), 1999.

14 Em que se inscrevem a fundação da Companhia de Jesus, em 1541 e o Concílio de Trento (1545-1563).

15 Cf. Les Noces Chimiques de Christian Rosenkreutz par Jean Valentin Andreae, Paris (Librairie Génerale des Sciences Occultes - Chacornac Frères), 1928, p. XIX.

16 Hitlodeu sublinha os profundos conhecimentos astronómicos dos utopianos, acrescentando que não se interessam por “essa impostura da adivinhação pelos astros”. Cf. Prévost, op. cit., p.512 (102).

17 Cf. Tomás Campanella, A Cidade do Sol, Lisboa (Guimarães), 1980, pp. 102 s. (Tradução do italiano de Álvaro Ribeiro).

18 Cf. id., ibid., p. 18.

19 Cf. id., ibid., p. 20.

20 Cf. id., ibid., p. 29.

21 Cf. Bacon, New Atlantis, London (University Tutorial Press), s. d., p. 13.

22 Miraculosamente também, nela estavam já incluídos os livros posteriores à época em que o Apóstolo a enviava, e o texto foi imediatamente compreendido pelos leitores de várias línguas, por dom do Espírito Santo.

23 Bacon, op. cit., p. 9.

24 Em New Atlantis, Bacon, além de discordar explicitamente de alguns costumes atribuídos por More aos utopianos, descreve uma sociedade hierárquica, onde ouro e prata são moeda de troca e o luxo requintado excede o dos reinos europeus. Quanto à religião, os judeus são tolerados, havendo uma curiosa referência à versão local do messianismo, que os levava a crer “que Moisés, por uma cabala secreta, ordenara as leis de Bensalem agora vigentes; e que quando o Mesias viesse e se sentasse no seu trono de Jerusalém, o rei de Bensalem se sentaria a seus pés, enquanto os outros reis se manteriam a grande distância.” (Cf. Bacon, op. cit., pp. 27s.)

25 Embora College seja um estabelecimento de ensino universitário equivalente a Faculdade, neste contexto Academia parece uma tradução mais aceitável.

26 Bacon, op. cit., p. 33.

27 É óbvia a repercussão da doutrina acerca dos direitos fundamentais do homem, primeiro definidos por Locke (1632-1704) como “a vida, a liberdade e a propriedade”, nos ideais revolucionários expressos, tanto na Declaração da Independência dos Estados Unidos (1776), como na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que instaura a Primeira República francesa, cujo lema será “liberdade, igualdade, fraternidade”. Vale a pena transcrever, a título de ilustração do pensamento iluminista, os termos usados por Thomas Jefferson (1743-1826) para justificar as razões dos colonos americanos, que os levam a “assumir entre as Potências da terra o estatuto de separação e igualdade que as Leis da Natureza e do Deus da Natureza lhes outorgam”: “onsideramos evidentes em si próprias estas verdades: que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de certos Direitos inalienáveis, que entre esses estão a Vida, a Liberdade e a procura da Felicidade.”

28 A obra, intitulada Travels into Several Remote Nations of the World. In Four Parts. By Lemuel Gulliver, First a Surgeon, and then a captain of several Ships, sofreu, nesta edição, cortes editorais destinados a suprimir os passos politicamente mais contundentes, vindo o texto completo a ser publicado em 1735.

29 O termo “distopia” é, por vezes, utilizado em sentido lato, para significar simplesmente o “lugar mau”, de acordo com a própria etimologia da palavra. Em sentido restrito, porém, aplica-se às obras que descrevem um lugar mau imaginário, também chamadas “contra-utopias” ou “cacotopias”, nomeadamente as narrativas século XX cuja acção se situa no futuro.

30 Cf. Jonathan Swift, Gullivers Travels, London, etc. (Penguin), 2003, p. 48. É evidente, até pelos pormenores históricos anteriormente referidos no texto, que se trata de uma caricatura das divergências entre católicos e anglicanos, correspondendo Lilliput à Inglaterra e Blefuscu à França.

31 Cf. Voltaire, Candide, Évreux (Hachette), 1991, p. 12.

32 Cf. id., ibid., p. 99.

33 Cf. id., ibid., p. 97.

34 Cf. id., ibid., p. 100.

35 A própria palavra “socialismo”, hoje retrospectivamente aplicada a épocas anteriores, é uma criação do século XIX, primeiro introduzida no vocabulário francês em 1832, e, a partir daí, transposta para as outras línguas, nomeadamente para o inglês, onde “socialism”, como tradução de“socialisme”, aparece em 1839.

36 A experiência de “Brook Farm”, empreendida, entre 1841 e 1847, pelos “transcendentalistas”, nome dado a alguns autores românticos norte-americanos, baseou-se nas ideias de Fourier (cuja obra fora traduzida por Brisbane), como prova o nome Brook Farm Phalanx, adoptado para a comunidade nos seus dois últimos anos de existência; a Robert Owen deveu-se a efémera New Harmony; a Cabet a fundação de comunidades icarianas (entre 1848 e 1886), cujo nome deriva da sua obra utópica Voyage en Icarie, de 1840, muito influenciada por Owen.

37 Publicado em Londres, em Fevereiro de 1848, com o título Manifest der Kommunistischen Partei, na capa da primeira edição figurava o apelo final “Proletarier aller Laender vereinigt euch”, “Proletários de todos os países uni-vos”, como pode ver-se na fotografia inserida entre as páginas 31 e 32 da edição que reproduz a primeira tradução para inglês, datada de 1888: Marx and Engels, Manifesto of the Communist Party, Moscow (Progress Publishers), 1971.

38 Um exemplo paradigmático da viagem no tempo, típica da chamada “ficção científica”, é o conto da autoria de H. G. Wells (1866-1946) The Time Machine, publicado em 1895, onde já prevalece uma visão distópica do futuro, pois o Viajante no Tempo “encarava sombriamente o Progresso da Humanidade, e não via na pilha cada vez maior de produtos da civilização senão um insensato amontoado que inevitavelmente teria de abater-se sobre aqueles que o haviam criado e acabar por destruí-los”.

Cf. H. G. Wells, Selected Short Stories, Harmondsworth (Penguin), 1958, p. 83.

39 Aldous Huxley, Brave New World, Harmondsworth (Penguin), 1958, p. 33.

40 Orwell publicou em 1945 Animal Farm (O Triunfo dos Porcos, na tradução portuguesa), onde o totalitarismo é satirizado, ficando célebre a substituição dos sete mandamentos revolucionários dos primeiros tempos por um único, o último, em versão correcta e aumentada: “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que outros” Cf. George Orwell, Animal Farm, Harmondsworth (Penguin), 1960, p.114.

41 Em que Orwell participou, combatendo do lado republicano, e descreveu em Homage to Catalonia, publicada em 1938.

42 Cf. George Orwell, Nineteen Eighty-Four, Harmondsworth (Penguin), 1984, p. 7.

43 Cf. id., ibid., p. 18 etc.

44 José Saramago, O Ano de 1993, Lisboa (Futura), 1975, pp. 66s.