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Porquê a Igreja assina Concordatas?
LUÍS DE FRANÇA

 
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•  Dos Poderes às Liberdades – do uso exclusivo do poder como afirmação do homem até à emergência e ao gosto pela liberdade.  

No primeiro milénio da cristandade é o poder, por vezes nas suas faces mais cruéis, que se apresenta como primeira manifestação da vida e da afirmação da vontade entre os homens e entre as sociedades. Mas é verdade que a Igreja e os seus pensadores procuraram mostrar distância face a essa situação mais não seja com a invocação do poder espiritual. Só que na prática os métodos utilizados foram bem pouco espirituais.

Na reflexão da Igreja isso conduziu à elaboração das teorias sobre o poder directo e sobre o poder vicarial. Uma longa história teológica. Ou seja, primeiro a Igreja teve de resolver o seu problema interno. Como legitimar o seu poder no mundo dos homens, ora defendendo a supremacia total, ora compondo com os poderes reais deste mundo. Por fim, e estamos a falar de longos séculos, a Igreja aceita a existência da liberdade e a partir daí torna possível toda outra forma de se relacionar com o mundo.

•  Liberdades e Direitos – liberdade questão fundamental para o homem e tardia para a Igreja cristã.

Todo o emergir da liberdade na Igreja foi tratado na Semana de Verão de Teologia de 1998, e por isso basta lembrar o que então se disse e que foi publicado nos Cadernos do ISTA ( nº 6 – 1998 – Ano III) . Convém contudo transcrever aqui o parágrafo sobre a aceitação da liberdade religiosa pois aí está o nó górdio da relação da Igreja com o mundo nos últimos cem anos.

“Assim do ponto de vista da doutrina da Igreja a grande transformação não vai ser propriamente a adopção dos Direitos Humanos, mas sim a aprovação pelo Concílio da Declaração da Liberdade Religiosa.

O objectivo concreto da Declaração sobre a Liberdade Religiosa era o de colocar a Igreja ao nível da consciência comum da humanidade civilizada, que já aceitara o princípio e a instituição legal da liberdade religiosa. Esta aceitação marca, um passo a frente no progresso da civilização. Quando em 1965 a Igreja Católica deu esse passo, um progresso foi dado também na doutrina católica, como reconhece um dos protagonistas dessa Declaração - Mgr. Pavan.  

Para se chegar a essa Declaração de 1965 um longo caminho doutrinal foi percorrido, e durante o qual se operou uma grande transformação nas mentalidades de juristas, canonistas e pastores da Igreja.

Antes de mais convém recordar alguns passos que tornaram possível a aceitação da via democrática no seio da doutrina católica que se considerava constitucionalmente uma monarquia. Ora, em meados deste século e face aos totalitarismos que negavam a dignidade da pessoa humana, Pio XII vai construir uma obra doutrinal e pastoral que tinha como objectivo devolver à pessoa humana a dignidade com a qual foi dotada desde o início.

“A função essencial de qualquer poder público é o de salvaguardar os direitos invioláveis da pessoa humana e de garantir que todos os possam usar em liberdade “ ( Pio XII).

Assim se afirma a concepção jurídica do Estado ou noutros termos o conceito de governo constitucional. A Igreja retoma a tradição autêntica do constitucionalismo ocidental e cristão da qual a Europa continental se afastara quando abandonou o conceito medieval de realeza.  

Aceitando esta concepção jurídica do Estado, Pio XII deu a sua primeira contribuição importante ao desenvolvimento da doutrina da Igreja sobre a liberdade religiosa.

O governo constitucional é aquele que limita os poderes, que se consagra à protecção dos Direitos Humanos e à promoção da liberdade do povo, é o corolário político obrigatório da liberdade religiosa como noção jurídica, direito humano e civil, pessoal e colectivo.

Pois, enquanto a Igreja deu a sua adesão a uma noção pagã pelas suas origens e especificamente pós medieval quanto ao seu desenvolvimento e segundo a qual o governo é o representante duma verdade religiosa transcendente, e igualmente representante do povo no que diz respeito à verdade religiosa, e do mesmo modo o guardião e o vigilante da fé religiosa do povo, enquanto a Igreja defendeu essa noção, uma afirmação da liberdade religiosa era impossível. 

Aquele que não aderisse à religião de Estado não poderia pretender adquirir nenhuma imunidade na manifestação pública das suas crenças religiosas, no culto e no apostolado.

Em nome da verdade religiosa, da qual ele era o guarda e o vigilante, o governo podia opor uma contra-reivindicação e excluir da vida pública as crenças do dissidente.

É por isso que o abandono feito por Pio XII desta pseudo-tradição, e a adesão à tradição autêntica, e mais antiga, constituiu um passo decisivo para a doutrina dos Direitos do Homem.

A segunda contribuição de Pio XII foi uma clarificação das exigências essenciais da Igreja face à sociedade civil e ao governo. Com Leão XIII, a verdadeira tradição para a qual estas exigências estão todas compreendidas na fórmula ‘liberdade religiosa' foi de certo modo obscurecida pela defesa do Estado confessional em favor da Igreja, defesa que Leão XIII manteve até ao fim do seu pontificado. Pio XII de modo nenhum quer reclamar esse privilégio – o do Estado confessional – para a Igreja. Pio XII afirma o direito da Igreja à liberdade.

A terceira contribuição do papa Pacelli para a evolução da doutrina da liberdade religiosa acontece quando, ao se opor à escola canonista romana, o papa toma posição sobre uma questão de jurisprudência essencial. A escola de pensamento que apoiava a teoria disjuntiva da tese e do seu contrário mantinha como regra de jurisprudência que o erro e o mal deviam ser reprimidos pelo governo, onde e na medida em que essa repressão fosse possível, e deviam ser tolerados somente onde, e na medida onde uma tal tolerância fosse necessária.  

Para os defensores desta escola de direito eclesial não reprimir o erro e o mal quando a sua repressão fosse possível constituíam uma falta aos deveres dos governantes. Pio XII rejeitou essa norma: “Logo a afirmação segundo a qual o erros religioso e moral devem ser sempre reprimidos quando isso é possível já que tolerá-lo é imoral, não pode ter valor absoluto e incondicional “. A doutrina de Pio XII recusa em aceitar o bem comum como norma limitativa ao exercício da liberdade religiosa. Na concepção jurídica do Estado que é a deste papa, a componente primordial do bem comum é necessariamente jurídica, a saber a protecção e a promoção dos direitos humanos e civis dos cidadãos.

O bem comum requer que o exercício dos direitos civis seja limitado tanto quanto possível e restringido somente em caso de necessidade justificado e só no caso de exigência de ordem pública. Leão XIII tinha insistido sobre a tríade das forças espirituais – verdade, justiça e amor; com João XXIII acrescenta-se uma quarta força, a liberdade, como essencial.  

Com João XXIII e particularmente na Pacem in Terris descreveu-se mais claramente: a noção jurídica do Estado; o conceito de governo constitucional; afirma-se mais vigorosamente que a dignidade da pessoa humana é o fundamento da sociedade e do Estado.

De Leão XII a João XXIII um longo caminho foi percorrido pela Igreja na clarificação doutrinal, primeiro sobre o Direito à Liberdade religiosa e depois sobre a implementação dos Direitos Humanos permitindo assim ao actual papa afrontar os desafios de uma evangelização para o próximo milénio, nomeadamente em todas as frentes nas quais se luta hoje pelos Direitos Humanos.

As propostas pastorais de João Paulo II colocam desafios enormes à vida dos cristãos e à vida da Igreja. Evangelizar na era da globalização é confrontar o testemunho e a prática do Evangelho com o ideal democrático de organização das sociedade, nomeadamente aceitar estar na primeira linha da promoção e defesa dos Direitos do Homem. João Paulo II reconhece o caminho trilhado pelos seus antecessores mais próximos na proclamação da Liberdade Religiosa e por isso pode ser hoje reconhecido como uma testemunha da Igreja de Jesus Cristo na defesa universal e intransigente de todos os Direitos do Homem.”

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3 . Porquê, a Igreja Católica assina concordatas?

Fazemos aqui referência formal à Igreja católica, já que a assinatura de concordatas é efectivamente uma especificidade da Igreja católica no dizer do direito público internacional. Normalmente, as outras confissões cristãs estabelecem com os Estados convenções ou acordos.

As concordatas tem uma longa história da qual convém aqui recordar as principais etapas e os pressupostos que as sustentaram nessa longa marcha quase milenária. Aliás a história das concordatas ocupa um lugar privilegiado na reflexão dos canonistas. Dois princípios essenciais da ordem política estão aqui em jogo: a liberdade da Igreja e o respeito do Estado. A história das concordatas permite rever o modo como os espíritos ao longo dos séculos foram tentando o compromisso entre duas realidades por vezes antagónicas. Uma concordata é sempre o resultado de uma negociação, na qual uma das partes ocupa uma posição de força. Trata-se do confronto de duas soberanias de natureza diferente:

•  a soberania política do Estado, no sentido nobre do termo, e onde o governo deve fazer respeitar essa soberania;

•  a soberania da Igreja, representada pela santa Sé, preocupada em assegurar plenamente a sua missão espiritual.

Tratam-se de duas ordens diferentes, tendo cada uma o seu domínio próprio, mas que dizem respeito aos mesmos homens. Uma concordata supõe duas partes, mas nos factos compreende três agentes. A Santa Sé e o Estado comprometidos nas negociações. Mas a igreja local com o seu clero, a sua hierarquia, os seus fiéis, aparece como objecto da negociação. A maior parte das vezes não é consultada ou completamente tida em conta. Aqui está a origem de muitas situações difíceis e dolorosas para os fiéis. Na realidade a igreja local é o verdadeiro destinatário de uma dada concordata, quando na maior parte das vezes não entrou como agente na negociação, ainda que essa concordata acabe por ser a carta da sua vida quotidiana.

Mil anos na história das concordatas

De modo incipiente a ideia de concordata começa a esboçar-se ao longo dos séculos durante os quais a Igreja e o imperador se degladiaram nem sempre com as armas mais nobres na querela das investiduras. E nesses tempos o poder maior estava quase sempre do lado temporal. O primeiro documento que poderia receber o nome de concordata foi um acordo entre o imperador Henrique IV e o papa Pascal II no ano de 1111, a “concordata de Sutri”, mas que segundo alguns historiadores não teve cumprimento. Mais tarde a concordata de Worms, em 1122, regula de novo o poder entre o papa e o imperador. Tal como nas civilizações primitivas, noutros continentes todo o problema estava em saber quem detinha e quem outorgava o ceptro – símbolo do poder. Sabe-se que na porta da catedral de Gniezo (construída em 1160) se desenhou Adalberto Bispo de Praga recebendo o báculo das mãos do imperador Otão III.

E pouco se avançou nos séculos seguintes. Com efeito só em meados do século XV, com a aurora dos tempos modernos, as concordatas começam a entrar na história como tal. Até lá, e de modo muito unilateral, reis e imperadores impunham a sua vontade. Era a Pragmatica Sanção em França, o Beneplácito Régio em Portugal. Os canonistas consideram a concordata de Bolonha como o primeiro instrumento concordatário dos tempos modernos. Negociada entre o papa Leão X e o rei Francisco I de França, essa concordata regularia a vida da igreja galicana durante três séculos e serviu de modelo a acordos com outros países. Pela primeira vez os respectivos poderes fazem outorgar o acordo pelas instituições próprias. O papa promulga a Bula da Concordata em 1517 com a aprovação do concílio e Francisco I faz aprovar pelo parlamento o acordo obtido com o papa. Desde então e até ao fim do antigo regime na Europa, cerca de 20 concordatas são assinadas nomeadamente com Portugal.

No caso do nosso país, a história do Beneplácito régio é bem reveladora dos jogos de poder neste canto da península. D. Pedro I estabeleceu-o apesar dos protestos dos prelados nas cortes de Elvas (1361). Nas cortes de Santarém os bispos fazem novas queixas mas D. João I não o revogou. Nas Ordenações afonsinas (Livro II, Título XII), mantém-se até 1487, data em que D. João II o aboliu a pedido expresso de Inocêncio VIII. D. João V voltou a estabelecê-lo ocasionalmente até se entrar no período do regalismo durante o qual o Beneplácito régio é muitas vezes invocado.

O liberalismo não melhorou a independência da Igreja em Portugal. A Constituição de 1822 (art. 123,XII) e a Constituição de 1838 (art.º 82,12), assim como a Carta Constitucional (art.º 75 & 14) mantiveram esse preceito legal impositivo para a Igreja Católica em Portugal. Nesse período, aliás, o Beneplácito régio estendeu-se até aos próprios documentos episcopais a nível das dioceses.

As perturbações originadas nas lutas liberais concorrem para que no período entre 1800 e 1845 a Igreja quase não assine concordatas pelo menos com as grandes nações. Napoleão, contudo, não se esquivou a assinar uma concordata na qual se forjou pela primeira vez a expressão “de que a religião católica era a religião da maioria dos franceses”.

Mas com Pio IX (1846-1878) contam-se só nesse pontificado mais de vinte. São de realçar as concordatas assinadas com a Rússia em 1847, com a Espanha em 185, com a Áustria em 1855 e depois as concordatas com os novos países da América Latina entre 1852 a 1884, à medida que ascendem à independência política. Na Europa o mesmo vai acontecer com o desmembramento dos impérios centrais, russo, austro-húngaro, alemão e turco. São os casos da concordatas assinadas com a Letónia (1922), com a Lituânia (1927), com a Polónia (1925), com a Roménia (1927), com a Checoslováquia (1927). Uma tentativa de concordata com a Yugoslávia (1935) foi bloqueada pela oposição dos Santo Sínodo, que ameaçou de excomunhão os deputados ortodoxos que votassem a ratificação no parlamento nacional.

Um caso muito notado é a concordata estabelecida em Itália com Mussolini em 1929 – Concordata de Latrão – que reconheceu a existência do Estado do Vaticano e, consequentemente, a Santa Sé com estatuto específico no direito publico internacional.

A Alemanha mantém sempre um estatuto especial. Antes mesmo da unificação alemã com Bismarck a Igreja foi negociando concordatas com os Landers, o equivalente aos Estados autónomos. Assim com a Baviera em 1824, com a Prussia em 1929, com Baden em 1932 e só em 1933 é assinada a famosa concordat de Hitler com o Terceiro Reich. Esta concordata respeitava as três concordatas regionais já assinadas, e assim se mantém até hoje, o que torna sempre peculiares as relações da Alemanha com a Santa Sé.

A figura de Pio XII é associada ao papa das concordatas como alguns historiadores apressados gostam de referir. Contudo, no seu longo pontificado (1939-1958) só três concordatas foram assinadas com Portugal em 1940, com a Espanha em 1953 e com a República Dominicana em 1954.

Refira-se a evolução que isso representou para Portugal. O Beneplácito Régio teve vida longa em Portugal. O Código Penal vigente no século passado continha um artigo, o 138 nº2, que previa penas para os violadores das disposições do Beneplácito Régio. Em 1834, por ocasião da reforma da Carta Constitucional, certos católicos, tendo à frente o célebre conde de Samodães, tentaram suprimir o artigo referente ao Beneplácito Régio, mas sem êxito. Até mesmo a lei de separação estabelecida em 20 de Abril de 1911, após a implantação da República, o tentou manter, mas o prelados não se sujeitaram a tais exigências. Finalmente o Beneplácito Régio em Portugal foi expressamente abolido com a concordata de 1940. (Cf. Art.º II).

Ao contrario da situação em Portugal a concordata com a Espanha foi difícil de negociar. Mais de dez anos de negociações entre Franco e a Santa Sé. A Espanha exigiu o reconhecimento do “catolicismo como religião de Estado”. A Igreja era reconhecida como sociedade perfeita, guardou o privilégio do foro mas em contrapartida deu ao poder a possibilidade de intervir na nomeação dos bispos. Restabeleceu-se assim em 1953 um Estado confessional católico, para alguns um modelo, para outros expressão de uma arcaísmo. Esta situação não irá sobreviver ao Concílio Vaticano II.

João XXIII não assinou concordatas e alguns pensaram então que o regime concordatário teria chegado ao fim.

Assim não aconteceu. Nem com Paulo VI, nem com o actual papa. Só desde o Concílio em 1965 até 1981 foram assinadas 39 convenções, das quase nove são concordatas. Com o desmembramento do império soviético após a queda do muro de Berlim repete-se a situação vivida entre as duas grandes guerras como se referiu atrás. Ocupa aqui lugar especial a Concordata com a Polónia (1993) e a muito original concordata com a Hungria. Desde sempre os reis da Hungria se consideraram a si mesmos Reis Apostólicos, fazendo decorrer daí um Patronato supremo dos reis húngaros sobre a Igreja. Esse patronato sempre se achou superior à própria Santa Sé pelo menos na jurisdição local. O que levou o Estado Húngaro a nunca aceitar a ideia de uma concordata tal como aquela que a Igreja costuma assinar. Tendo em conta as exigências do Concílio Vaticano II, mesmo com os países de tradição concordatária muitos e novos acordos e revisões tiveram lugar. Foi o caso da Colômbia em 1973 e de Portugal em 1975, a revisão do acordo de Latrão com a Itália em 1984 e com a própria Espanha no pós franquismo em 1979.

Mas uma nova atitude da Santa Sé manifesta-se quando esta decide estabelecer acordos com países com outras religiões maioritárias, como seja o modus vivendi em 1964 com a Tunisia musulmana, mas sobretudo o acordo fundamental da Santa Sé com o Estado de Israel. Deve-se chamar a atenção para o preâmbulo desse acordo pela importância que ele reveste no conflito actual do médio oriente. No preâmbulo desse acordo faz-se referência ao caracter único e ao “significado universal da Terra Santa” assim como “à natureza única das relações entre a Igreja Católica e o povo judeu”.

Feito este percurso histórico à ”vol d'oiseau”, como diria um historiador francês, chamemos a atenção para as alterações que a renovação conciliar trouxe nesta área de confluência da eclesiologia e do direito eclesial.

Se em vésperas da conclusão do Concílio em 1964 e na concordata então assinada com a Venezuela se refere “o poder espiritual da Igreja Católica” esse vocabulário vai desaparecer. E assim, em 1979, ao negociar uma revisão da concordata com a Espanha pós franquista, os canonistas falarão da “missão apostólica da Igreja”, termos aliás retirados da Constituição Conciliar Lumen Gentium (nº5). Por outro lado é de referir as frequentes alusões à liberdade religiosa, compreendendo nesta a liberdade de culto, de magistério e de jurisdição, ou seja os três munera ou ofícios reconhecidos eclesiologicamente no Concílio.

Relativamente à “Religião de Estado”, que como tal é referida nos acordos de Latrão de 1929, e pela ultima vez na concordata dominicana de 1954, nunca mais se voltará a usar tal expressão no direito concordatário.

Os conteúdos da concordatas  

De que tratam as concordatas dos tempos modernos? Entre as questões que mais retêm a atenção dos negociadores encontramos a questão da modalidade da escolha dos bispos. O Concílio reivindicou com particular acutilância o direito exclusivo para a Igreja de nomear os bispos sem interferência dos poderes públicos. De modo geral todas as revisões das concordatas feitas posteriormente, tiveram em conta esse requisito. Contudo, permanecem na Igreja alguns lugares de conflito, como seja o caso do bispado de Colónia e de algumas dioceses da Áustria e da Suiça.

Segue-se a questão da dupla natureza do acto matrimonial, acto religioso e compromisso secular. E por fim as questões do ensino religioso nas escolas assim como do estatuto dos estabelecimentos de ensino confessionais. Por vezes também se trata do lugar dos clérigos no sistema de ensino, assim como o problema das equivalências dos títulos académicos concedidos pelas instituições da Igreja.

Questões tais como o serviço militar dos clérigos, o privilégio do foro e a imunidade dos bens eclesiásticos desapareceram na maior parte dos acordos ou revisões recentes.

Os pressupostos na assinatura das concordatas

A conclusão de uma concordata supõe sempre um certo compromisso. O Direito Canónico pela sua existência atesta que a Igreja católica romana possui a sua própria soberania espiritual. Ora esta liberdade de religião não concedida pelo poder temporal reivindica um direito inato. Além disso a Igreja católica invoca princípios fundamentais, os quais foram subscritos pela maioria dos Estados, das nações, dos povos e dos indivíduos em matéria de direitos e deveres.

A conclusão de uma concordata por parte da Igreja supõe um consentimento para com a lei civil de cada um dos países, de acordo com o nº 22 do actual Código de Direito Canónico (1983). Trata-se aqui de uma aplicação do principio estabelecido em Gaudium et Spes sobre a autonomia das realidades terrestres.

O Concílio Vaticano II trouxe sem dúvida uma renovação e um aprofundamento do direito público eclesiástico. Assim a noção de Igreja como “sociedade perfeita” (código de 1917) foi abandonada em favor da noção de soberania institucional. E a teoria da potestas indirecta in temporalibus foi abandonada a favor do reconhecimento de uma função de testemunho apostólico e profético. Por outro lado e numa perspectiva mais conciliar prefere-se falar de direito concordatário em vez de direito público eclesiástico. Foi ainda a Constituição Gaudium et Spes que deu à estampa o texto de referência para muitas das alterações já invocadas. Vale a pena reler o parágrafo 76 dessa Constituição:

“Certamente, as realidades temporais e as que perduram na eternidade, estão estreitamente ligadas entre si e a própria Igreja utiliza as realidades temporais na medida em que a sua missão o exige. Porém, não coloca a sua esperança em privilégios dados pela autoridade civil; pelo contrário, renunciará ao exercício de alguns direitos legitimamente adquiridos, quando conste que o seu uso põe em dúvida a sinceridade do seu testemunho, ou novas condições de vida exigirem outras disposições. Mas é justo que a Igreja possa, sempre e em toda a parte, pregar a fé com verdadeira liberdade, ensinar a sua doutrina acerca da sociedade, exercer sem entraves a sua missão entre os homens e proferir um juízo moral mesmo em matérias que dizem respeito à ordem política, quando os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas o exijam, empregando todos e só aqueles meios que sejam conformes ao Evangelho e de harmonia com o bem comum, segundo a diversidade dos tempos e das situações.”  

O Direito Concordatário interpela quer os Estados, quer o Direito Público internacional. Por outro lado devemos ter presente que neste século todos os avanços nos acordos e nas relações internacionais se tornaram possíveis pela situação particular da Igreja Católica. A Cidade do Vaticano só foi reconhecida em 1929 em virtude do tratado de Latrão entre a Santa Sé o reino da Itália, como já se referiu atrás. Assim alguns Estados reconhecem à Igreja a personalidade moral de direito público (Itália 1929 e de novo 1984) ou personalidade moral de direito privado como no caso da Tunísia. O caso da França permanece sempre exclusivo destas categorias. A França limita-se a reconhecer a personalidade jurídica das associações. A França mantém um regime de separação com vários regimes de cultos. Assim, os departamentos da Alsácia mantêm a concordata do tempo de Napoleão, e ainda hoje os bispos dessas regiões se designam em França como bispos concordatários. A Itália, tal como a Espanha, permanecem concordatárias, mas deixaram de ser Estados confessionais.

Pelas concordatas, a Igreja Católica apresenta-se diante do Estado não como uma associação de fiéis, mas como uma instituição religiosa de direito público de natureza não associativa mas hierárquica.

O regime concordatário é aquele que hoje melhor enquadra o voto há muito expresso por Lammenais segundo o qual nos devíamos encaminhar para “Um Estado Livre numa Igreja Livre”. Uma Concordata propõe-se respeitar os direitos dos Estados, mas também o direito da Igreja como seja o de orientar universalmente os seus fiéis. Recordem-se, a este propósito, as aspirações regalistas de François Mauriac em 1955 quando a Santa Sé interveio em França no caso dos padres operários, ou as ameaças de Salazar quando Paulo VI foi a Bombaím.

Leão XIII algumas vezes exprimiu reservas para com a ideia de concordatas, tal era a nostalgia de tempos passados. Hoje mais de trinta anos depois do Vaticano II, e apesar de alguns ainda considerarem as concordatas como meios de o Estado exercer a sua tutela sobre a comunidade dos crentes, para muitos outros o regime concordatário tem-se revelado como o melhor instrumento de regulação da vida internacional para a Igreja católica, já que garante de modo eficaz as relações de uma dada Igreja com o Estado de Direito respectivo.

 
•  A Europa dos cidadãos e o futuro das concordatas. Carta dos Direitos Fundamentais na Europa. Fiéis e cidadãos, todos europeus.

Neste ano de 2000 e nesta Europa que nós habitamos prepara-se a aprovação de uma Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

Ora esta matéria não pode ser exterior a uma reflexão sobre a assinatura de concordatas pela Igreja Católica. Com efeito, a Igreja Católica invoca os princípios fundamentais que foram subscritos pela esmagadora maioria dos Estados, das nações, dos povos e dos indivíduos em matéria de direitos e deveres. Para o lembrar e documentar acaba de ser publicado em Portugal o livro de Giorgio Filibeck – Direitos do Homem de João XXIII a João Paulo II , verdadeira antologia do modo como a Igreja nos últimos 30 anos fez a recepção dos Direitos do Homem.

A universalidade desses princípios fundamentais fazem que eles possam ser invocados por qualquer pessoa, mesmo contra as instituições eclesiásticas e contra os fiéis católicos em caso de violação desses princípios. Esta situação resulta da aplicação do Canon 22 do Código do Direito Canónico de 1983. Assim deve entender-se que mesmo na ausência de um tratado internacional público e concordatário entre a Santa Sé e um dado Estado, o direito canónico prevê, que aqueles e aquelas que estejam sobre a sua jurisdição devem considerar como normas canónicas eventuais disposições tomadas pelos poderes civis, tendo os mesmos efeitos, e na medida em que essas disposições não sejam contrárias ao direito divino e salvo disposição expressa do mesmo Direito Canónico.

Na medida em que a Igreja aceita e respeita os Direitos Humanos consignados em numerosas convenções internacionais e europeias e também ratificadas pela Santa Sé, alguns perguntam se tudo estando regulado por esses instrumentos nas relações entre Estados, ainda será necessário assinar concordatas. A resposta deve ser positiva já que a Concordata é sempre um acordo referido a um espaço, a uma comunidade e a uma história que não cabe no âmbito das convenções universais.

Mas isso não deve levar os fiéis a se des-solidarizarem da promoção e ratificação de novos direitos ou de formulações de novas convenções historicamente situadas. É esse o caso do projecto em curso da Carta dos Direitos Fundamentais para a Europa .

Na perspectiva de uma Igreja Católica maioritariamente presente na Europa convém ter conhecimento desse projecto. É o que passaremos a explicitar de seguida, transcrevendo aqui o preâmbulo da referida Carta.

“1. Os povos europeus estabeleceram entre si uma União cada vez mais estreita e partilham doravante o mesmo destino;

•  Essa União baseia-se nos princípios indivisíveis e universais da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade entre todas as pessoas, homens e mulheres, e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de Direito;

•  A União contribui para o desenvolvimento desses valores comuns, no respeito pela diversidade das culturas e das tradições dos povos europeus, bem como da identidade nacional dos Estados-Membros e da sua organização constitucional a nível nacional, regional e local;

•  A fim de consolidar a protecção dos direitos fundamentais da União e de os tornar visíveis para cada pessoa, é necessário consagrá-los numa Carta dos Direitos Fundamentais da União europeia;

•  A presente Carta reafirma os direitos decorrentes nomeadamente dos princípios constitucionais comuns aos Estados-Membros, do Tratado da União europeia e dos Tratados comunitários, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, das Cartas Sociais adoptadas pela Comunidade e pelo Conselho da Europa, bem como da jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e do tribunal Europeu dos Direitos do homem.

•  A Carta adapta o conteúdo e o alcance desses direitos à evolução da sociedade, ao progresso social e à evolução científica e tecnológica;

•  O gozo destes direitos implica responsabilidades e deveres, tanto para com as outras pessoas como para com a comunidade humana;

•  A presente Carta não alarga nem modifica as compet~encias e missões da Comunidade e da União Europeia tal como se encontram nos tratados. As instituições e orgãos da União, bem como os Estados-Membros ao aplicarem o direito da União, garantem a cada pessoa, na observância do princípio da subsidiaridade, os direitos e liberdades a seguir mencionados” ( Preâmbulo do Projecto da Carta ). 

Algumas entidades defendem que uma nova Carta é desnecessária, porque já existe a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Carta Social Europeia. Mas estes documentos não só não são bastante amplos, como também não são suficientemente vinculativos para garantirem toda a gama dos direitos civis, políticos, sociais e económicos. Uma Carta dos Direitos Humanos Fundamentais daria, pela primeira vez, a todos os que vivem na União Europeia, um quadro comum de direitos aplicáveis e com uma base de sustentabilidade alargada.

O Conselho Europeu de Julho de 1999 decidiu que devia ser elaborada uma “Carta dos Direitos Fundamentais” para a Europa. O apoio ao projecto de integração europeia fora posto em perigo pelos efeitos sociais decorrentes da introdução da moeda única e da realização do Mercado Único. Os cidadãos tinham perdido a confiança na Europa. Era pois importante reafirmar a dimensão social da integração europeia, salientando a importância a nível europeu.

A questão que ficou em aberto foi a natureza da carta a elaborar. Deveria ser uma simples proclamação ou antes um conjunto de direitos legalmente vinculativos, que pudessem ser considerados como uma protecção e um progresso dos direitos humanos na União? Existiam diferenças de opinião entre os dirigentes da UE e por isso o Conselho Europeu deixou a questão delicada do estatuto da Carta para decidir numa fase posterior. Em Outubro do mesmo ano o Conselho Europeu, reunido na cidade finlandesa de Ampere, decidiu confiar a elaboração desta Carta de Direitos a uma Convenção, composta por deputados nacionais e europeus e por representantes dos governos.

A Convenção reunirá periodicamente durante este ano e consultará um amplo leque de organizações da sociedade civil antes de elaborar e propor um texto de em Outubro de 2000. A Carta deverá, então ser aprovada pelo Parlamento Europeu e pela Comissão em tempo útil para uma aprovação definitiva pelo Conselho Europeu de Dezembro de 2000, que se realizará em Nice.

Tudo isso será possível porque nos últimos anos se verificaram avanços significativos no reconhecimento da importância dos direitos fundamentais da União. O tratado de Amsterdão afirma que “ a União assenta nos princípios da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdade fundamentais, bem como no Estado de Direito, princípios que são comuns aos Estados-Membros” (art.º 6º ,nº1 do TUE).

Esclarece ainda que “a União respeitará os direitos fundamentais, tal como os garante a Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, e tal como resulta das tradições constitucionais comuns aos Estado-Membros, enquanto princípios gerais do direito comunitário” (art.º 6º ,nº2 do TUE).

Por outro lado o artigo 46º do Tratado da União Europeia (TUE), que trata da jurisdição do Tribunal das Comunidades Europeias, atribui-lhe competência para decidir da acção das instituições da União Europeia relacionadas com a Convenção Europeia da Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (Conselho da Europa, 1950).

O Tratado de Amsterdão obriga a União a respeitar a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Obriga igualmente os Estados-Membros a respeitarem os princípios da “liberdade, democracia, os direitos humanos e as liberdades fundamentais, bem como o Estado de direito em que União assenta. O Tratado de Amsterdão estabelece um meio de execução político e não jurisdicional, no caso de violação grave de algum dos princípios fundadores da União por um Estado-Membro. O artigo 7º do TUE permite ao Conselho suspender alguns dos direitos de um Estado-Membro, por exemplo a suspensão do direito de voto no Conselho. O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem competência para julgar questões relativas ao respeito dos direitos humanos unicamente em relação a actividades da União ou das suas instituições.

Os Tratados de Maastricht e de Amsterdão progrediram na protecção dos direitos fundamentais dentro da UE. São de salientar as seguintes disposições:

•  O Artigo 13º do Tratado da Comunidade Europeia ( TCE), relativo à não discriminação de pessoas ou grupos com base no sexo, raça ou origem étnica, religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual.

•  A integração nos Tratados de referências à carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores e à carta Social Europeia (Turim,1961). ( Artigo 136º do TCE)

•  Artigo 137º do TCE, que atribui competência à União para adoptar programas para o combate à pobreza e promoção da inclusão social.

•  O reconhecimento da cidadania europeia e atribuição de direitos – como a liberdade de circulação, o direito de voto nas eleições locais e europeias e o direito de petição. (Artigos 17º a 22º do TCE)

Apesar destes progressos, o processo de integração europeia, com as suas implicações evidentes nos direitos humanos, requer que esta protecção real e eficaz dos direitos fundamentais seja concedida aos cidadãos e trabalhadores europeus e que estes direitos sejam reconhecidos explicitamente num texto coerente.

Os direitos fundamentais são um elemento indispensável para reforçar a dimensão social da UE e para salvaguardar e desenvolver o modelo social europeu. A integração da Carta nos Tratados reveste-se de uma importância fundamental face ao futuro alargamento da União.

O respeito dos direitos fundamentais é um elemento essencial para a realização da Europa dos Cidadãos.

Quando a Igreja estabelece Concordatas refere-se a um Estado de cidadãos, os mesmos que para a Igreja são seus fiéis. Esta concomitância de situação na mesma pessoa – cidadão e fiel – suscita uma referência ao projecto axiológico das concordatas.

Na teologia conciliar houve todo o cuidado em separar as soberanias espiritual e temporal, para usar uma linguagem mais tradicional. Mas há quem advogue que nunca se devia aplicar à Igreja a noção de soberania, dado que este termo foi forjado no contexto do absolutismo político e em nenhum caso a Igreja se deveria identificar com tais propósitos. Assim seria preferível falar de testemunho, como vimos acima.

Em 1995 João Paulo II, na Encíclica Evangelium vitae, fez, contudo, uma admoestação aos Estados ao lembrar a existência de uma certa hierarquia de valores em todas as sociedades. Ou seja, afirmou que os Estados não se podem permitir tudo o que quiserem. Recorde-se, aliás, que o conflito sobre os limites da soberania dos Estados não é de hoje. Aqui se devem discernir pelo menos dois tipos de conflito: um propriamente jurisdicional e logo político, o outro axiológico, e que implica dimensões filosóficas e teológicas. O primeiro conflito encontrou expressão quando o Estado moderno se afirmou em oposição à jurisdição canónica católica propondo o regime de separação ou desconfessionalizando os laços concordatários quando eles ainda existem ou são restaurados. Um segundo conflito é de certa maneira mais complexo: origina-se na dissenção por parte do Estado moderno relativamente aos valores morais. Várias famílias políticas que suportam os partidos europeus reivindicam valores saídos da tradição judeo-cristã, mas fazem-no num contexto de secularização, isto é, sem fundamento nos princípios religiosos. Estas sociedades exprimem uma fortíssima reivindicação em matéria de direitos individuais. Na prática cada Estado tem de procurar um ponto de equilíbrio entre as liberdades e os deveres cívicos, que protegem as diferentes ordens publicas. A maior parte dos Estados de Direito acordaram-se consensualmente entre eles, através de compromissos de direito internacional publico e sobretudo no que diz respeito aos direitos humanos.

Após o Vaticano II as concordatas consagram-se de modo mais explícito e menos jurista às comunidades de crentes que lhe estão subjacentes. Começa-se ou deveria começar-se a ter em conta o respeito pela liberdade das outras religiões e também deviam exprimir de modo mais explícito a sua adesão aos direitos humanos.

Na situação de pluralismo existente hoje uma concordata pode garantir eficazmente as relações de uma dada Igreja local à qual se refere. Trinta anos depois do Concílio o instrumento concordatário serve também para melhor situar a Igreja Católica, o seu representante diplomático e eclesiástico da Santa Sé, o episcopado local e todos os católicos interessados, junto de um Estado de Direito, e que por isso mesmo deve assumir um certo pluralismo compatível com a sua própria ordem pública.

Uma concordata sem perspectiva confessionalizante pode ter em conta o caracter não confessional do Estado ou até mesmo da adesão do Estado contratante a uma outra moral, uma outra filosofia, uma outra teologia diferentes da doutrina católica. O Estado concordatário, não sendo católico, não quer dizer que seja necessariamente neutro ou laico: poderá ser protestante, ortodoxo, mulsumano, budista, ou mesmo comunista. De qualquer modo um Estado não confessional, quer seja em regime de separação ou em regime concordatário, pode ser convidado pelas autoridades filosóficas ou teológicas a não se permitir negar os valores que sustentam o equilíbrio do seu povo ou seus povos. O Estado contemporâneo que não seja confessional tem de procurar reconhecer os valores que sustentam o seu povo mesmo se esse reconhecimento supõe algumas dificuldades. Daí a importância do debate sobre a noção de ordem pública. Assim, um Estado de Direito que não se deixe interpelar por uma determinada problemática ética invocada na criterologia do direito natural é um Estado de direito com o qual ainda é possível negociar tendo em conta o seu direito constitucional assim como os laços que esse Estado pode estabelecer com os direitos humanos reconhecidos no direito internacional.

Mais uma vez se reconhece o lugar fundamental que os direitos humanos têm não só na vida real dos povos mas também nas possibilidades de relação internacional, incluindo aqui a relação de todos os Estados com a igreja católica. Não é demais, portanto, estarmos ao lado daqueles que a vários níveis local, regional, nacional promovem e lutam pelo aperfeiçoamento das Cartas e Declarações dos Direito Humanos.

Os católicos não podem descurar também a investigação e a promoção de novos direitos, como por exemplo: o lugar da não violência com o consequente direito à objecção de consciência; a prevenção de conflitos; a defesa do direito de ingerência .

Sendo este um dos direitos mais discutidos na última década e a posição da Igreja estando longe de ser clara sobre este assunto vale a pena, e a título de ilustração, lembrar o longo caminho já percorrido e ainda a percorrer para a sua ratificação.

Os desastres e as calamidades naturais cada vez mais frequentes, e nas condições exponenciais originadas pelo aumento da população, em convergência com as consequências do aumento de conflitos estão na origem de um número cada vez maior de intervenções humanitárias. A questão que hoje se levanta no horizonte dos direitos é a de saber se esta cada vez mais urgente intervenção humanitária passará de um dever a um direito.

A intervenção humanitária, qualquer que sejam as roupagens com que se vista é sempre uma ingerência. A ingerência segundo os princípios de direito penal é qualquer coisa de pejorativo e logo que deve ser evitado.

A ambiguidade inerente à ingerência é de tal modo profunda, que se torna difícil mesmo no juízo moral desatar os nós que ela acaba por tecer.

A grande dificuldade em manejar este conceito, esta realidade pode antever-se no facto de que René Cassin, um dos redactores da carta das Nações Unidas ter tentado em 1945, introduzir um artigo sobre o direito de ingerência o que não foi aceite.

Mas o mesmo mesmo Réné Cassin conseguiu que a Declaração fosse intitulada universal e não internacional. Isso deu origem ao amadurecimento de um conceito de humanidade universal, e não só o que tinha que ver com os Estados associados.

Assim e logo nos primeiros anos as Nações Unidas se ocuparam de faltas de liberdade de expressão na Bulgária, na Hungria e na Roménia por exemplo.

Todas as declarações estabelecidas nestas décadas têm em comum o facto de apreender o indivíduo, os seus direitos, a sua segurança, fora de qualquer laço de subordinação ao Estado. Protegem-se os seres humanos como tais.

A ingerência como base da intervenção humanitária tem uma longa história na segunda metade do sèc. XX:

Ingerência imaterial 1948-1968 a Amnistia Internacional foi o primeiro organismo a utilizar este conceito e a forjar uma prática. A força não é utilizada neste tipo de ingerência.

Ingerência material ilícita 1968-1988 – começou com a acção dos French Doctors opondo-se a alguns critérios das equipas da Cruz Vermelha. Esta era obrigada a respeitar as fronteiras e as soberanias do Estado em todas as circunstâncias e não podia falar das atrocidades que presenciasse.

Ingerência civil legalizada 1988-1991 Em Paris, Outubro de 1987, na cerimónia de transferência dos restos mortais de Réné Cassin, o Presidente Miterrand fala pela primeira vez em público no “dever de ingerência” . Em Dezembro de 1988 as Nações Unidas conseguirarm timidamente formular uma resolução com o seguinte teor: “ a urgência impõe acesso livre junto das vítimas, nomeadamente para as ONGs humanitárias internacionais.”

Esta resolução baseou-se numa evidência: as catástrofes naturais e as situações de urgência são da mesma natureza e têm consequências graves no planos económicos e sociais dos países que são afectados. deixar as vítimas sem assistência humanitária representa uma ameaça à vida humana e um atentado à dignidade humana. Em 1990 são aprovados os corredores humanitários como modalidade de aplicação do acesso livre junto das vítimas. O Conselho de Segurança que nunca abordou esta questão, em si mesma, até 1991 , votou desde então 180 resoluções a favor do princípio do acesso às vítimas.

Ingerência forçada - 1991-1999 Na Somália, em 1993, a força é pela primeira vez imposta para obrigar a manter o acesso às vitimas. O Kosovo, pela quantidade de países envolvidos, vem de certa forma reiterar o deve de ingerência forçada.

Ingerência preventiva - 1991-1999 nas suas diversas vertentes: militar-policial, judicial – os tribunais penais internacionai,. os meios de comunicação social.

Este percurso rápido pela evolução recente dos conceitos e das práticas sobre a ingerência, mostra como a sua concretização se reveste sempre de grande ambiguidade face aos ideais que se propõe defender. Daí a actual dificuldade que pesa sobre a definição de um direito de ingerência.

Sobre estas e outras questões os cristãos têm de estar atentos. Veremos dentro de alguns anos as Constituições e as Concordatas proclamarem o direito de ingerência?

Luís de França  


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