Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

O que é a verdade? [Jo 18: 38]
MATEUS CARDOSO PERES

 

Ah mas a pirâmide existe?

Ah mas e então a pirâmide diz coisas

Então a pirâmide é o segredo de cada um com o mundo?

 

Sim meu amor a pirâmide existe

a pirâmide diz muitíssimas coisas

a pirâmide é a arte de bailar em silêncio

Mário Cesariny de Vasconcelos, POESIA (1944-1955), Lisboa, Delfos, s.d., p.130.

1. Ao embaraço inevitável que uma tal questão em si mesma provoca, acresce, neste caso, o não se saber como classificar o que segue e que não é seguramente uma resposta, dada uma vez por todas, à questão da verdade, muito longe disso, mas uma reflexão em torno de um pequeno episódio bíblico, relatado unicamente no IV Evangelho [Jo 18: 33-38], em que a frase do título aparece. Não é exegese, nem propriamente filosofia social. No fundo, aquilo que gostaria de conseguir seria um, ainda que modesto, contributo para a teologia da história.

2. Faz esse episódio parte da narrativa do julgamento de Jesus por Pilatos, que nesse relato evangélico se encontra mais desenvolvido do que nos outros evangelhos, mais cuidadosamente elaborado, do ponto de vista literário e representa, sem sombra de dúvida, uma peça importante e muito significativa da visão joânica da Páscoa de Jesus. Os exegetas chamam a nossa atenção para o facto de que o relato do julgamento se processa segundo uma estrutura bem marcada, em que se incluem as figuras do paralelismo e da inclusão, bem frequentes da literatura hebraica. São sete cenas, bem distintas entre si, pelos personagens e pelos locais, assim distribuídas: há duas séries, formada, cada uma, por duas conversas dos acusadores de Jesus com Pilatos que enquadram uma conversa deste com Jesus; a cena central, a quarta do total, que escapa ao paralelismo, é constituída pela flagelação. É, pois um processo, que começa com a exigência da condenação de Jesus à morte, e terminará com a obtenção desse objectivo por cedência do procurador romano à chantagem política, por cobardia, não por convicção (1). Mais precisamente, o trecho que nos vai ocupar constitui a segunda das sete cenas dessa narrativa, aquela em que Jesus se enfrenta com o poder político, o Estado, na ocorrência, o Império romano, em todo o seu prestígio – é aliás um enfrentamento recíproco, pode dizer-se- e se explica face a esse poder, e, por ele, face a este mundo. Parece claro que esse contexto político não deve ser posto de lado na interpretação dos ensinamentos aqui contidos.

Jesus diz três coisas: quando responde à primeira pergunta de Pilatos «Tu és o Rei dos Judeus?», Jesus afirma «o meu reino não é deste mundo», acrescentando «se o meu reino fosse deste mundo, a minha gente teria combatido para que não fosse entregue aos judeus; mas o meu reino não é daqui». Perante a insistência de Pilatos «então tu és rei?», Jesus responde –e é a sua segunda contribuição-, «tu o dizes: sou rei. Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade», o que pode ser entendido como « dizes tu que sou rei; eu prefiro antes dizer que nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade». A isto se acrescenta a terceira das suas afirmações a pedir comentário «todo aquele que é da verdade escuta a minha voz». Tentemos um pequeno comentário de cada um destes pontos.

3. Para explicitar a afirmação de que o reino de Cristo não é deste mundo, é habitual dizer-se que esse reino não se situa no mesmo plano que os reinos deste mundo e que não usa as mesmas armas: cabe aqui referir as opções tomadas por Jesus, no início da sua missão profética, face ao Tentador, renunciando ao uso da riqueza e do prestígio, como ao proveito próprio (2) e delineando uma linha de acção muito original e que, por isso mesmo, se pode facilmente entender como não sendo deste mundo. Daí, o concluir-se com frequência, que o reino de Cristo não faz concorrência os reinos deste mundo.

Enquanto se poderá dizer que as duas primeiras explicitações podem ser pacificamente aceites, já quanto à terceira, a de não fazer concorrência aos reinos deste mundo, impõem-se algumas considerações. Não se pode, sem mais, dizer isso: seria, com efeito, afirmar a total irrelevância política e social da fé cristã, para este mundo, para a história. O reino de Cristo não vem deste mundo, mas não será para este mundo? Se não tem a ver nem com ele nem com o tempo presente a que fica ele reduzido? No fundo, uma tal posição seria mais uma manifestação de uma certa teologia escapista e angelista, que concentra a redenção do mundo exclusivamente na salvação da alma individual e, portanto, a deixa sem impacto sobre este mundo presente, que vê, numa palavra, a salvação numa dimensão toda espiritual e atemporal, como fuga e saída deste mundo, pelo qual não se reza, que é inimigo da alma…Mas como enquadrar esta posição com a lógica da incarnação?

De facto, a fé cristã, apesar dos hábitos mentais de muitos e da espiritualidade ainda hoje dominante, não se reconhece neste quadro. A salvação é global, diz respeito à alma mas também ao corpo, como se proclama no Credo, e até ao mundo, que afectado pela queda e perdição do género humano participará também ele da Redenção (3). Talvez tudo se passe de forma hierarquizada, isto é, primordialmente, a redenção constituirá a plena e definitiva adesão santificadora do homem interior ao Pai, pelo Filho no Espírito, daí decorrendo a ressurreição dos corpos, e esta «manifestação dos filhos de Deus» que redundará, se assim se pode dizer, no acesso da criação à glória; não o digo como etapas sucessivas de um mesmo evento, mas num encadeamento de causalidades. Asalvação, além disso, é escatológica, isto é, já começou, já está verdadeiramente presente, embora ainda não tenha atingido, como é óbvio, as dimensões que a esperança cristã, guiada pelo Espírito de Deus, lhe atribui. Como é sabido, a certeza e realismo desta presença actual da salvação exprime-se, por vezes, em linguagem antecipada, mas o que isso significa é que ela já penetrou no nosso mundo e nada e ninguém a poderá impedir. «Eu venci o mundo» são as palavras com que, segundo o IV Evangelho, Jesus conclui, na última ceia as suas instruções aos discípulos (4) e que, juntamente com a chamada oração sacerdotal que se segue imediatamente no capítulo XVII, constituem o discurso elucidativo dos acontecimentos que, neste caso são a Paixão-Ressurreição de Jesus (5). Esta vitória já está connosco, já entrou de certa forma no nosso mundo; exprime-o a I epístola de João quando diz: «A vitória que triunfa do mundo é a nossa fé» (6).

A conclusão é clara, parece: efectivamente, a perspectiva do Reino de Cristo é mesmo uma alternativa aos reinos deste mundo, embora não sendo do mesmo tipo e, sobretudo, não os combatendo com as mesmas armas com que eles se combatem entre si. Pilatos não tem diante de si um pobre lunático anunciador de uma qualquer utopia sem consistência, sem perigo para a estabilidade do Império. Toda a teologia dos escritos joânicos insiste em apresentar a paixão de Jesus, a própria crucifixão, como uma exaltação e uma glorificação, como uma vitória: que se pense no cair por terra dos guardas enviados para O prender, quando se lhes apresenta (7), na dignidade soberana assumida perante Anás (8) e aqui, face a Pilatos, particularmente na segunda conversa entre os dois, paralela a esta que nos ocupa, a sexta da série, em que Jesus julga o seu juiz e como que relativiza a sua culpa comparando-a com a de outros (9).

Por outras palavras, afirmar o Reino como absoluto e incondicional tem como efeito necessário o reconhecimento do estatuto relativo de tudo o mais. Neste campo, isso significa, em primeiro lugar, a negação do carácter divino do Estado, sem deixar de lhe reconhecer a utilidade insubstituível. Mais concretamente, isso significou a recusa do culto prestado aos imperadores romanos, como o fizeram os mártires dos primeiros séculos da história cristã (por isso foram mártires), e significará sempre que o poder político tem limites a respeitar porque há valores –os valores do Reino, precisamente- que o ultrapassam e o confrontam. Tudo isto se encontra lapidarmente contido, segundo o testemunho dos evangelhos sinópticos, na frase «Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus» (10).

4. O que fica dito levanta muitas interrogações, nomeadamente a questão de saber como é ou pode ser influenciada pela realeza de Cristo a realidade temporal. As duas outras afirmações de Cristo ajudam a ver um pouco mais claro.

Jesus descreve a Pilatos a sua missão, com a qual se identifica, que é a sua vida [“Nasci e vim ao mundo…”] em termos de testemunho da verdade, que prefere à linguagem da realeza.

Aqui não podemos fazer mais do que evocar a imensa riqueza hebraica do conceito de verdade: além da elementar correspondência ao real, tem as conotações de fidelidade, tantas vezes associada à graça, à misericórdia como nos salmos, no próprio S. João, como, por exemplo, quando se diz que «a lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo» (11) e de autenticidade.

O IV Evangelho é provavelmente o escrito do Novo Testamento que mais utiliza o conceito, o que leva a reconhecer na verdade, com os seus vários matizes, uma das suas palavras-chave. Deixando de lado muitas outras acepções, lembre-se que a palavra de Deus é a Verdade (12). Os mensageiros de Deus dão testemunho da verdade, tanto João Baptista (13), como Cristo (14); o Paráclito é o Espírito da verdade (15). Na linha da autenticidade, recorde-se «os adoradores em espírito e verdade» (16). A Verdade é a revelação do plano salvador de Deus, mas não como algo de abstracto e teórico, como algo de vivo, de existencial, que pode ser vivido, experimentado, reconhecido, mais ainda que conhecido, realizado. «Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará».(17)

O terceiro ponto, «todo aquele que é da verdade escuta a minha voz», completa o anterior em termos de processo de actuação do testemunho da verdade e é talvez o mais difícil dos três; é indiscutível, porém, que para João há nos seres humanos, em certas circunstâncias, uma predisposição para a verdade, ou dito de outra forma, para reconhecer a verdade, para aderir, na fé, à verdade. “Aquele que faz a verdade vem para a luz”(18). E ainda: «Nós somos de Deus. Quem conhece a Deus, escuta-nos; quem não é de Deus não nos escuta. Por isso conhecemos o espírito da verdade e o espírito do erro» (19). Que circunstâncias? Por vezes, parece tratar-se de uma predestinação, outras vezes, tem uma clara conotação moral como quando opõe os que cometem o mal, cujas obras são culpadas, aos que fazem a verdade (20).

5. Daqui podem tirar-se conclusões. Em primeiro lugar, há que admitir o realismo da verdade. O cepticismo de Pilatos, tão actual e a que todos nós, até certo ponto, somos sensíveis, é aqui, -como aliás em todo o IV Evangelho, já para não dizer em toda a revelação bíblica- oposto e contradito. E não é apenas uma verdade de fé; não será também uma intuição mais generalizada do que parece? Parafraseando os versos de Cesariny, colocados à cabeça deste texto, diria: «sim a verdade existe a verdade diz muitíssimas coisas a verdade é o segredo…». Mas voltando ao IV evangelho, à primeira leitura parece poder dizer-se que, segundo este texto –e todos os outros- a verdade existe e pode ser conhecida, porque Jesus, a testemunha fiel, dá testemunho dela. Pela fé pode ser alcançada. Se não nos opusermos à fé, somos da verdade, ouvimos a sua voz. A verdade é, no entanto, o projecto de Deus de salvação para o mundo, revelado quanto ao essencial na Páscoa de Cristo, projecto cujas implicações, para lá das linhas mestras das suas orientações, estão muito longe de serem conhecidas.

Uma das suas primeiras implicações consiste em reconhecer que a verdade está a ser instaurada no mundo pela força de Deus, em Cristo. É ainda a mesma coisa, apenas formulada de maneira um pouco diferente. A fé ensina-nos, com efeito, que este processo é irreversível. A redenção do mundo está assegurada, mesmo se, relativamente ao tempo presente e futuro, no jogo das liberdades tudo esteja em aberto nas dimensões do concreto e do particular. Dizia Oscar Culmann que, vencida a batalha decisiva e assegurada a vitória, ainda era possível, em encontros e escaramuças perderem-se vidas e fazenda. O dramatismo da existência pessoal e colectiva não desaparece pelo facto de sabermos em Cristo do empenho de Deus pela redenção do mundo e pormos a nossa esperança na sua Ressurreição daquele que disse “Eu venci o mundo”.

6. Apesar do risco de me repetir, passo a desenvolver um pouco mais o aspecto da instauração do Reino de Cristo no temporal. Partamos da universalidade do seu impacto. Porque tudo é salvo, o Reino tem a ver com tudo. De facto, tudo contesta, tudo interpela, tudo julga. “A submissão de tudo ao Absoluto de Deus e ao seu projecto, vai traduzir-se na contestação e no julgamento da vida social, económica, política. «É como dizes, sou Rei! Para isto é que nasci e para isto é que vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz». Mas esta verdade de que Ele dá testemunho interpela todos os tempos porque a todos transcende. É sempre actual: está sempre presente como ausente porque é o horizonte real de todos os empreendimentos humanos, a transcendência sem a qual a história dos homens não tem sentido e que, imanente, acompanha toda a caminhada da humanidade”(21). O que permite um olhar teológico sobre a história, para não dizer, porque demasiado ambicioso, uma teologia da história.

Cristo venceu, o seu projecto para o mundo é vitorioso, pelo menos em germe. E isso comporta a reconciliação dos homens, a paz, no respeito da dignidade de cada um e da sua diferença –raça, cultura, género, idade, etc.-, comporta a reconciliação com a natureza. Numa palavra, comporta o aparecimento e desabrochar dos valores do Reino.

Aos que são da Verdade caberá actuar e levar por diante este processo. E a História não é um “não-sentido”, um absurdo, mas antes faz e é feita da dolorosa, enigmática, paradoxal gestação deste mesmo mundo feito novo. Nada garante, contudo, um avanço rectilíneo, como por influência do mito do progresso se é propenso a pensar: seria simplismo não reconhecer a realidade de retrocessos, de desvios, etc. A parábola do trigo e do joio (22) alerta claramente para o facto de que esse crescimento, embora real, é imensamente ambíguo, impossível de interpretar por nós no agora e aqui, para lá do sentido global, presente em todas e cada uma das parcelas.

A Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Vaticano II projecta alguma luz, de forma talvez um pouco timorata mas valiosa, sobre esta perspectiva (23). Recordemos alguns passos. «A actividade humana, individual e colectiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos,, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus. Pois o homem, criado à imagem de Deus, recebeu o mandamento de dominar a terra com tudo o que ela contém e governar o mundo na justiça e na santidade e reconhecendo Deus como criador universal, orientar-se a si e ao universo para Ele» (24). Este esforço colectivo apresenta-se, no entanto, como um «um duro combate contra os poderes das trevas…(que) começou no princípio do mundo e, segundo a palavra do Senhor durará até ao último dia. Inserido nesta luta, o homem deve combater constantemente, se quer ser fiel ao bem; e só com grandes esforços e a ajuda da graça de Deus conseguirá realizar a sua própria unidade». Embora se reconheça explicitamente que «o progresso humano pode servir para a felicidade dos homens», o lado negativo das coisas é retomado quando se diz que «se alguém quer saber de que maneira se pode superar esta situação miserável…todas as actividades humanas, constantemente ameaçadas pela soberba e amor próprio desordenado, devem ser purificadas e levadas à perfeição pela cruz e ressurreição de Cristo» (25). Vai-se mais longe na tentativa de concretização da leitura cristã da história ao dizer que «o Verbo de Deus…revela-nos que ‘Deus é amor (I Jo. 4, 8) e ensina-nos ao mesmo tempo que a lei fundamental da perfeição humana e, portanto, da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor. Dá, assim, aos que acreditam no amor de Deus, a certeza de que o caminho do amor está aberto para todos e que o esforço por estabelecer a universal fraternidade não é vão.» Mas não ensina apenas, actua também pois «não suscita neles (os corações dos homens) o desejo da vida futura, mas, por isso mesmo, anima, purifica e fortalece também aquelas generosas aspirações que levam a humanidade a tentar tornar a vida mais humana e a submeter para esse fim toda a terra» (26). Para concluir este breve apanhado, mencione-se que o texto retoma o tema das relações entre a nova habitação e a nova terra, na qual reina a justiça e que Deus prepara, e, por outro lado, o resultado dos esforços humanos acumulados; e diz que «a expectativa da nova terra não deve …enfraquecer, mas antes activar a solicitude em ordem a desenvolver esta terra onde cresce o corpo da nova família humana, que já consegue apresentar uma certa prefiguração do mundo futuro» e ainda que «o progresso terreno…na medida em que pode contribuir para a melhor organização da sociedade humana, interessa muito ao reino de Deus» (27).

7. Regressemos ao que parece ser o mais importante e o mais original da conversa com Pilatos, a saber, a chamada de atenção para as maneiras de fazer e de agir. O Evangelho na sua incidência nas nossas vidas, tanto a nível pessoal como social, não consiste só em propor determinados objectivos, mas também –e isso é mais frequentemente posto de lado- alguns métodos bem precisos. Aqueles pelos quais Jesus optou, ao pôr de lado, nas tentações do deserto, outros aparentemente mais óbvios. A Igreja, ao longo da sua história, frequentemente fez o que não tinha liberdade para fazer, optou diferentemente, isto é, optou por assumir, numa lógica de eficácia, o poder, o que foi, como é bem conhecido, magistralmente denunciado por Dostoievsky, na Lenda do Grande Inquisidor. Mas a única garantia de eficácia é a mais paradoxal: é dando testemunho da Verdade que o Reino se constrói. Melhor: é só dando testemunho da Verdade que o Reino realmente se constrói.

A nudez da Verdade é mais eficaz, embora não o pareça nada. Todos os denunciadores de injustiças, através dos tempos, todos os mártires da liberdade, aparentemente derrotados e esquecidos, passados, presentes e futuros, são quem realmente muda as coisas e faz avançar o mundo. As tácticas “mundanas” de tentar conquistar o poder – ou conquistá-lo mesmo- para depois introduzir, impor mais seguramente a verdade ou algumas verdades, quanto aos seres humanos ou quanto às sociedades, essas tácticas eficazes, perpetuam o mal, fazem-no crescer. As guerras contra as guerras, os impérios cristãos contra os impérios não-cristãos, tudo aquilo que seja directa ou indirectamente do tipo cruzada (a começar pelas cruzadas propriamente ditas, de que já se pediu perdão ao mundo e que pode estar na origem do acentuado desaparecimento das igrejas cristãs do Próximo-Oriente e na islamização maciça das populações), tudo isso, com o seu uso da força e da violência, parecendo ser o mais normal e o mais eficaz, cria muito mais problemas do que resolve e aqueles que por ventura resolve, não os resolve na perspectiva do Reino. Numa palavra, não os resolve.

Pensemos nos direitos humanos. O grito de frei Antón de Montesinos, na famosa homilia do quarto Domingo do Advento, no ano da graça de 1511, na ilha de Hispaníola, e com o qual a comunidade de frades pregadores denunciava a imensa injustiça das relações entre colonos e indígenas “…estes não são homens?” foi, em primeira leitura, perfeitamente ineficaz. Melhor: exactamente porque era a verdade teve um impacto terrível, despertou a violência dos que não queriam ser confrontados com a verdade, tornou tudo pior entre europeus, entre frades e colonos, e a sorte dos indígenas em nada, ou quase nada, melhorou. Houve, é certo, algumas conversões, entre elas, parece, a do próprio Las Casas. O que mostra o efeito multiplicador destas coisas. Algo, no entanto, tinha aparecido e começou a crescer, algo –o movimento dos direitos humanos- que está, ainda hoje muito longe de ter alcançado a sua verdadeira dimensão. Com efeito, o movimento, ainda muito pouco eficaz, é já hoje, no plano das referências éticas, irrespondível: impõe-se como uma evidência. Ninguém ousa afirmar que a escravatura é natural, porque sempre a houve, ninguém ousa dizer que em certas circunstâncias não se pode prescindir da tortura, ou que há seres humanos que, por qualquer motivo como raça, cor, cultura, não merecem o tratamento devido aos outros seres humanos. Não há país que não subscreva a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, mesmo que depois a não cumpra. A indignação do pequeno grupo de frades pregadores de 1511 alargou-se, portanto, à escala mundial, não sem muitas hipocrisias pelo meio, é certo. O que vai levando à prática dos direitos humanos e à condenação generalizada dos seus atropelos: quem poderá negar a importância decisiva desta referência em boa parte do mundo de hoje?. Apesar de uma aplicação insatisfatória, em muitos casos, há que reconhecer a sua presença, sobretudo como plataforma de denúncia, como ideal irrenunciável.

Um outro exemplo possível, embora menos nítido é o da não-violência, tanto a nível cívico como internacional. No primeiro aspecto, cresce a consciência do horror das guerras civis, do seu absurdo, da sua inutilidade e da ambiguidade, ou mesmo da ineficácia das próprias revoluções sociais, de onde muitos retiram uma justificação de conservadorismo, de defesa do status quo. A ideia de que entre conformismo social, que sanciona todas as injustiças, e as utopias revolucionárias, que pouco ou nada resolvem e que trazem consigo novas injustiças, que entre uma e outra via, há espaço para um outro tipo de inconformismo, eminentemente prático, sem ideologia, feito de contestação e de intervenções criativas não-violentas, ganha campo. Será o futuro? à luz do que fica dito teria sentido.

No plano internacional, tudo parece mais claro. A condenação generalizada das guerras, a força crescente da paz. Quem é que hoje aceita, como sempre se aceitou até há menos de cem anos, a inevitabilidade das guerras? Embora a humanidade esteja ainda longe de ter alcançado uma paz verdadeira e duradoura, a paz é hoje a utopia mobilizadora e a sua construção um imperativo indiscutível e indiscutido.

8. Se queremos perceber um pouco o mundo em que vivemos e a actuação que as circunstâncias pedem, devemos assumir como própria a interrogação de Pilatos: o que é a verdade? Não, claro, como quem diz «a verdade não é coisa que exista e se existir, ninguém sabe o que é», na atitude que habitualmente se atribui a Pilatos. Nem tão pouco basta assumir como verdade que o Filho de Deus, feito Homem, nos salvou e a toda a humanidade pelo seu sacrifício e que essa salvação está em nós, como um germe de vida, pela fé. Ninguém que se reconheça cristão o nega. Mas embora na linguagem dos cristãos, muitas vezes não se veja mais nada, não é só isso. Tal como o Verbo se fez carne, assim também a Verdade, cujo núcleo central e mais importante é seguramente esse que foi enunciado, também ela deve incarnar nas dimensões sociais, históricas e outras, que foram confiadas ao cuidado dos seres humanos. Abordamos essa tarefa da incarnação da verdade no temporal, entre o conhecimento e a ignorância. Sabemos, na fé, que o projecto de Deus para a redenção do mundo, realizado e cumprido em Jesus Cristo, é a verdade e que ele abarca toda a criação. Sabemos ainda que aquilo que falta conhecer desse plano, nomeadamente, as suas incidências na história, nas culturas e nas sociedades, deverá estar, como parte de um todo único, em harmonia com o núcleo central da Páscoa de Cristo, que o ilumina e esclarece. A essa luz, vimos a Gaudium et Spes esboçar algumas magras, mesmo se preciosas, indicações. Mas quanto ao mais, quanto ao concreto e ao prático, estamos na ignorância da verdade e temos de a ir descobrindo, tacteando, isto é, experimentando e reflectindo.

E para isso convém que, juntamente com a confiança de que a verdade existe, vivamos com a inquietação de saber o que é. O que é a verdade a fazer? O que é a verdade dos seres humanos? da convivência entre eles? da história? e da cultura? Não é fácil responder a estas perguntas, nem a resposta que se encontre para cada uma delas será alguma vez definitiva e irreformável. Mas, mesmo sem encontrar as respostas operativas, ou outras, faz parte da dignidade humana pôr-se questões. Uma delas, e não das menores, é precisamente essa: o que é a verdade? a verdade do que somos, a verdade do que fazemos.

Mateus Cardoso Peres

 

(1) Cf. Raymond Brown

(2) Cf. Mt 4:1-4 e paralelos.

(3) Cf. Rm 8: 18ss

(4) 16: 33; cf. 12: 3; 14: 30.

(5) Segundo a estrutura habitual das diferentes unidades literárias deste evangelho, constituídas de factos e discursos que nos dão o sentido desses factos, mas aqui na ordem invertida: nos capítulos XIII a XVII a explicitação e nos capítulos seguintes os factos.

(6) 1 Jo 5:4-5

(7) Jo 18: 6.

(8) Jo 18:19-24.

(9) Jo 19:11

(10) Mt 22: 15-22; Mc 12:13-17; Lc 20:20-26.

(11) Jo 1:17.

(12) Jo 17:17.

(13) Jo 5: 3.

(14) Jo 8: 40-46; 14: 6; 18:37.

(15) Jo 14: 17; 15:27; 16: 13; Ia, 4: 6.

(16) Jo 4: 23- 24. Cf também Ia 3: 18, IIa: 4 e IIIa: 4.

(17) Jo 8: 31-32.

(18) Jo 3: 21.

(19) Jo Ia, 4:6.

(20) Jo 3: 19-21.

(21) “As exigências éticas de Jesus na actualidade” in Estudos Teológicos (Coimbra), ano 3 (1999), Julho/Dezembro, p. 237.

(22) Mt 13: 24ss.

(23) Cf. GS 34-39, principalmente.

(24) Ib., 34, 1º.

(25) Ib., 37, 2º, 3º e 4º.

(26) Ib., 38, 1º.

(27) Ib., 39, 2º.

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