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A elaboração da hipótese documentária só vai prosseguir a partir de meados do séc. XIX. Num estudo sobre as fontes do Génesis, publicado em 1853, Hupfeld chegou à conclusão de que a fonte E não é homogénea, mas comporta duas fontes diferentes. Foi a invenção do que mais tarde se chamou o código sacerdotal (Priesterkodex – P) (4). Graf estabeleceu a cronologia relativa das três fontes: J, E e P (5). Wellhausen deu à hipótese documentária a sua forma clássica (6). Esta deve a von Rad (7) e a Noth (8) os últimos acabamentos. Segundo a forma final da hipótese, o Pentateuco seria constituído por quatro sínteses histórico-teológicas. A mais antiga, J, teria sido escrita em Jerusalém, em tempos de David ou de Salomão, no séc. X a. C. Produto de uma espécie de "Século das Luzes" hebraico, o J daria uma versão das origens de Israel profundamente optimista. O J teria dado ao Pentateuco a sua trama. Posterior de cerca de um século, o E contaria a mesma história que o J, mas do ponto de vista do reino de Israel e com matizes próprios. Seguir-se-ia o Deuteronómio (D), escrito em Jerusalém no tempo de Josias (640-609 a. C.). Finalmente, o P, escrito na época exílica ou pós-exílica. A redacção final do Pentateuco teria tido lugar no contexto da missão de Esdras. Lido através desta hipótese, o Pentateuco tornava-se o reflexo da história de Judá, de Israel e da Judeia. Daí que ela tenha tido um sucesso tão grande e parecesse feita para durar. De facto, os trabalhos de vulgarização apresentavam essa hipótese amiúde como se ela fosse um facto incontestável. No entanto, já em 1965, Winnet alertava para a necessidade de reexaminar os fundamentos da hipótese documentária (9). Dois anos mais tarde, Wagner augurava-lhe um futuro incerto (10). De facto, durante a década de 1970, ela foi alvo de ataques vindos de todos os lados: da exegese, da história e da arqueologia. O documento J, considerado como a ossatura do Pentateuco, foi precisamente o principal alvo e a maior vítima desses ataques. Pouco ou nada parece restar da bela síntese histórico-teológica dos tempos de David e de Salomão. Entre os exegetas que admitem actualmente a existência de J são raros os que persistem em datá-lo do tempo de David ou de Salomão. Os defensores da datação davídico-salomónica de J devem reduzir-lhe muito as fronteiras. A maioria rejuvenesce-o entre 2 e 5 séculos, datando-o do séc. VIII, do séc. VII, do séc. VI a. C. ou ainda mais tarde. Um exame do estilo, do género literário e da temática dos principais textos atribuidos a J levou Schmid a afirmar que eles são impensáveis na época salomónica, pois supõem a existência dos profetas clássicos dos séc. VIII-VII a. C. e têm muitas semelhanças com a teologia deuteronómica e deuteronomista. A maior parte das suas tradições fundamentais, observa ainda Schmid, não são mencionadas pelos textos pré-exílicos, sendo o silêncio dos profetas dos séc. VIII-VII a. C. particularmente significativo. O exegeta conclui que o J deve situar-se imediatamente antes da ruína do reino de Judá ou logo no começo do exílio babilónico, isto é, no séc. VI a. C. em vez do séc. X a. C (11). Prosseguindo o estudo de Schmid, Rose compara o J à História Deuteronomista (Deuteronómio, Josué, Juízes, Samuel e Reis) e conclui que ele é posterior à primeira edição da dita História, feita na época babilónica. O J não foi aliás concebido como uma obra independente, mas sim como um prólogo da História Deuteronomista destinado a corrigir-lhe a orientação teológica mediante a insistência na iniciativa divina e na gratuidade da salvação (12). Van Seters expressa uma opinião semelhante (13). Outros, cada vez mais numerosos, negam a existência de um qualquer documento J independente (14). A existência do E como documento independente havia sido posta em dúvida já na década de 1930 (15). Hoje praticamente ninguém a admite. O belo edifício que havia sido pacientemente construído acabou por ruir em grande parte. Por enquanto, ainda não existe outra construção que o substitua. O D e o P, tidos como os documentos mais recentes pela hipótese documentária, são os que melhor se saem da crise que afectou e continua a afectar os estudos do Pentateuco. Isto não significa que não tenham sido e continuem a ser objecto de discussões. No caso do P, estas incidem sobre a sua natureza, a sua extensão e a sua teologia. Era um escrito independente ou uma redacção que integra outros materiais não sacerdotais? Seja como for, é opinião corrente que os materiais sacerdotais não foram todos escritos de um fôlego. Há um escrito fundamental ao qual vieram juntar-se complementos posteriores. O P começa sem dúvida alguma em Gn 1,1, mas não se sabe ao certo onde acaba. Há quem veja o seu termo no livro do Êxodo, no Levítico, em Números ou até no Deuteronómio. Discute-se também a questão do centro da sua teologia. O Deuteronómio também é o resultado de um longo processo de crescimento, que se estendeu pelo menos desde o reinado de Josias (640-609 a. C.) até à época persa. De uma maneira geral, hoje pode dizer-se que os livros de Génesis a Números constam de duas classes de materiais: sacerdotais e não sacerdotais. Uns chamam aos materias não sacerdotais iavistas, outros chamam-lhes deuteronomistas, outros ainda não lhes colam nenhuma etiqueta. O Pentateuco é em grande parte um compromisso entre P e D. O redactor do Pentateuco integra P e D, privilegiando ora um ora o outro. Na linha do P fundamental opta por terminar a obra fora da terra de Canaã, sublinhando assim a sua dimensão de promessa. Na linha da forma final do Deuteronómio, integra e situa o código da Aliança na secção do Sinai, isto é, no coração do Pentateuco (Ex 20,22-23,33), sublinhando assim o seu aspecto legal. Em definitivo, o redactor do Pentateuco concebe a sua obra essencialmente como promessa e lei, como dom e exigência. Com efeito, a promessa, sobretudo a promessa da terra, percorre todo o Pentateuco, mas a lei, que constitui praticamente metade do Pentateuco, ocupa o seu centro (16). A data da constituição do Pentateuco não foi afectada pela crise. A maioria continua a pensar que ele se formou no contexto da missão de Esdras, mas a data da dita missão é incerta. Segundo Esd 7,1-8, ela teve lugar no sétimo ano do reinado de Artaxerxes. A qual dos dois reis com esse nome se refere o texto? Se é a Artaxerxes I, teria sido em 458. Se é a Artaxerxes II, teria sido em 398 a. C. Num ou noutro caso, o Pentateuco continuou a receber acrescentos até que finalmente o seu texto se fixou. O rejuvenescimento dos textos do Pentateuco desqualificou-os como fontes históricas. Por isso, são raros os que ainda ousam servir-se deles para escrever a história das origens de Israel e de Judá. O grande fresco histórico das origens de Israel que os historiadores pintavam baseando-se nos ditos textos aparece assim como uma ficção. Outro resultado dos estudos recentes é a detecção de tensões entre as tradições patriarcais e a tradição do êxodo. Essas tensões e suas implicações têm sido objecto de um bom número de estudos nos últimos quinze anos. Em concreto, a ruptura que existe entre Génesis e Êxodo foi um dos principais argumentos avançados por Rendtorff contra a presença de um documento J na base de Génesis-Números. Essa ruptura é óbvia no relato da vocação de Moisés (Ex 3,7-12). «Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel, o lugar dos cananeus, dos heteus, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus.» (Ex 3,8). Iavé descreve o país para onde vai fazer subir Israel como se Moisés nunca tivesse ouvido falar dele. Não refere que os patriarcas lá viveram nem que Iavé tinha prometido, a eles e aos seus descendentes, a posse desse país para sempre. Como explicar esse silêncio se o autor de Ex 3,8 conhecia essas tradições? O mais lógico é concluir que ele não as conhecia (17). Parece existir igualmente uma ruptura entre o Génesis e o Deuteronómio. Com efeito, segundo Römer, os pais mencionados no Deuteronómio e na História deuteronomista não são os patriarcas, mas a geração que viveu no Egipto (18). Por outro lado, de Pury chegou à conclusão de que o ciclo de Jacob formava primitivamente uma lenda das origens de Israel autónoma (19). Essa hipótese parece confirmada por Os 12,13-14. « 13 Jacob fugiu para os campos de Aram, Israel serviu por uma mulher E por uma mulher guardou (rebanhos). 14 Mas por (meio de) um profeta Iavé fez subir Israel do Egipto e por (meio de) um profeta (Israel) foi guardado». O texto contrapõe ao comportamento de Jacob a acção de Iavé fazendo subir Israel do Egipto. Parece-me legítimo concluir, com de Pury, que Os 12,13-14 contrapõe duas lendas das origens de Israel: a lenda patriarcal que tem unicamente um protagonista humano, Jacob; a lenda “exodal” que tem um protagonista divino e outro humano, isto é, o próprio Iavé e um profeta, sem dúvida, Moisés. As lendas patriarcal e “exodal” das origens implicam concepções diferentes – sob vários aspectos, opostas – de Iavé, de Israel e das relações entre ambos. Segundo a lenda “exodal”, Iavé é, antes de mais, o Senhor da história. Israel não é originário do território onde vive, mas imigrante nele. Iavé fez de Israel o seu povo, chamou-o do Egipto, fê-lo vir para Canaã e deu-lhe o seu país. Israel deve exclusivamente a Iavé não só a sua existência como povo, mas também o seu território. Israel não deve nada a mais ninguém nem a nada. Por conseguinte, Iavé é o seu único Deus, com a exclusão absoluta de qualquer outro. Contrariamente à lenda “exodal”, a lenda patriarcal supõe que Israel, descendente do seu epónimo Jacob/Israel, é autóctone de Canaã. A existência de Israel explica-se pela sucessão genealógica, a qual funda e justifica também o direito de Israel ao território que ocupa. O Deus da lenda patriarcal, tal como ressalta dos relatos do Génesis, é, antes de mais, o Senhor da natureza, isto é, dos fenómenos relativos à fecundidade dos seres humanos, dos animais e do solo (20). Os 12,13-14 mostra que as duas lendas eram rivais e estavam em concorrência. As duas concepções de Israel que elas representam estavam em conflito. Após a ruína do reino de Israel em 722/1 a. C., houve Israelitas que se instalaram no reino de Judá, levando com eles as suas tradições, entre elas a lenda “exodal”. Houve no reino de Judá quem a adoptasse, professando que Judá faz parte do Israel nascido no Egipto. A partir de então, foi em Judá que a lenda “exodal” e a forma do iaveísmo que ela representa continuaram a evoluir. Tudo indica que o sistema religioso representado pela lenda “exodal” foi minoritário, tanto no reino de Israel, onde nasceu, como no reino de Judá, para onde “emigrou”. O conflito entre a lenda exodal e a lenda patriarcal parece ter sido agudo nas épocas babilónica e persa. Os que haviam sido deportados para a Babilónia, estando fora do país, identificavam-se, naturalmente, com a lenda “exodal”. Os que tinham ficado em Judá identificavam-se com a lenda patriarcal (Ez 33,24). Graças aos “retornados do exílio” a quem os Persas entregaram o poder na Judeia, a lenda exodal ganhou cada vez mais terreno, acabando por assimilar, em boa parte, a lenda patriarcal. Por um lado, estabeleceu-se uma relação genealógica entre os patriarcas e o povo de Israel que sai do Egipto. Por outro lado, atribuiu-se a Abraão, o “patriarca ecuménico” segundo a expressão de de Pury (21), uma origem estrangeira (22). Tanto a ligação entre os patriarcas e o povo de Israel que se forma no Egipto como a origem mesopotâmica de Abraão não estão documentadas antes do final do período babilónico. Numerosos estudos mostram que são ambas criações recentes, provavelmente obra dos círculos sacerdotais e pós-sacerdotais que dessa forma se apropriam da lenda patriarcal e da sua legitimidade (23). |
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(1) Excelente estado da questão em Félix García López, El Pentateuco. Introducción a la lectura de los cinco primeros libros de la Biblia (Introducción al estudio de la Biblia, 3a), Estella (Navarra), Editorial Verbo Divino, 2003. (2) J. Astruc, Conjectures sur les mémoires originaux dont il paraît que Moyse s’est servi pour composer le récit de la Genèse, Bruxelles, 1753 ; cf. J. A struc, Conjectures sur la Genèse. Introduction et Notes de P. Gibert, Paris, 1999. (3) A sigla habitual J vem da transliteração alemã Jahwist. (4) H. Hupfeld, Die Quellen der Genesis und die Art ihrer Zusammensetzung, Berlin, Wiegandt und Grieben, 1853. (5) K.H. Graf, Die geschichtlichen Bücher des Alten Testaments. Zwei historisch-kritischen Untersuchungen, Leipzig, 1886. (6) J. Wellhausen, Die Composition des Hexateuchs und der historischen Bücher des Alten Testaments, Berlin, Verlag von Georg Reimer, 1876-1877 ( 31899); I d., Prolegomena zur Geschichte Israels, Berlin, Verlag von Georg Reimer, 31886. (7) G. von Rad, Das formgeschichtliche Problem des Hexateuch (BWANT 4), Stuttgart, Verlag W. Kohlhammer, 1938. (8) M. Noth, Überlieferungsgeschichte des Pentateuch, Stuttgart, Verlag W. Kohlhamer, 1948. (9) F.V. Winnet, «Re-examining the Foundations», JBL 84 (1965) 1-19. (10) N.E. W agner, «Pentateuchal Criticism: No Clear Future», Canadian Journal of Theology 13 (1967) 225-232. (11) H. H. S chmid, Der sogennante Jahwist. Beobachtungen und Fragen zur Pentateuchforschung, Zürich, Theologischer Verlag, 1976. (12) M. R ose, Deuteronomist und Jahwist. Untersuchungen zu den Berührungspunkten beider Literaturwerke (AThANT 67), Zürich, Theologischer Verlag, 1981; I d, « La croissance du corpus historiographique de la Bible – une proposition », Revue de Théologie et de Philosophie 118 (1986), pp. 217-326; I d., « Empoigner le Pentateuque par sa fin ! L’investiture de Josué et la mort de Moïse », em A. de P ury (ed.), Le Pentateuque en question. Les origines et la composition des cinq premiers livres de la Bible à la lumière des recherches récentes (Le Monde de la Bible), Genève, Labor et Fides, 1989, pp. 129-147. (13) J. V an S eters, Abraham in History and Tradition, New Haven, Yale University Press, 1975; Id., Prologue to History. The Yahwist as Historian in Genesis, Louisville, Westminster/John Knox Press, 1992; Id.,The Life of Moses. The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers (Contributions to Biblical Exegesis and Theology 10), Kampen, Kok Pharos Publishing House, 1994. (14) R. R endtorff, Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch (BZAW 147), Berlin, Walter de Gruyter, 1977; E. B lum, Die Komposition der Vätergeschichte (WMANT 57), Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1984; Id., Studien zur Kompostion des Pentateuch (BZAW 189), Berlin, Walter de Gruyter, 1990. (15) P. V olz - W. R udolph, Der Elohist als Erzähler. Ein Irrweg der Pentateuchkritik ? (BZAW 63), Giessen, Verlag von Alfred Töpelmann, 1933; W. R udolph, Der “Elohist” von Exodus bis Josua (BZAW 68), Berlin, Verlag von Alfred Töpelmann, 1938. (16) Félix García López, El Pentateuco (supra, n. 35) p. 338. (17) R. R endtorff, Das überlieferungsgeschichtliche Problem des Pentateuch (supra, n. 48) p. 68. (18) Thomas Römer, Israels Väter. Untersuchungen zur Väterthematik im Deuteronomium und in der deuteronomistischen Tradition (OBO 99), Fribourg/Göttingen, Universitätsverlag/Vandenhoeck und Ruprecht, 1990. (19) Albert de Pury, «Le cycle de Jacob comme légende autonome des origines d’Israël», em J.A. E merton (ed.), Congress Volume. Leuven 1989 (SVT 43), Leiden-New York-Københaven-Köln, E.J. Brill, 1991, pp. 78-96. (20) Albert de P ury, «Osée 12 et ses implications pour le débat actuel sur le Pentateuque», em P. H audebert (ed.), Le Pentateuque. Débats et recherches (Lectio Divina 151), Paris, Éditions du Cerf, 1992, pp. 175-207; I dem, « Las dos leyendas sobre el origen de Israel (Jacob y Moisés) y la elaboración del Pentateuco», Estudios Bíblicos 52 (1994) 95-131. (21) A. de P ury, «Abraham: The Priestly “Ecumenical” Ancestor», em S. L. M cKenzie e T. R ömer (eds), Rethinking the Foundations. Historiography in the Ancient World and the Bible. Essays in Honour of John Van Seters (BZAW 294), Berlin - New York - Köln, Walter de Gruyter, 2000, pp. 163-181. (22) J.-L. S ka, «L'appel d'Abraham et l'acte de naissance d'Israël. Genèse 12,1-4a», em M. V ervenne e J. L ust (eds), Deuteronomy and Deuteronomic Literature. Festschrift C.H.W. Brekelmans (BETL 133), Leuven, University Press, 1997, pp. 367-389. (23) Entre outros, K. S chmid, Erzväter und Exodus: Untersuchungen zur doppelten Begründung der Ursprünge Israels innerhalb der Geschichtsbücher des Alten Testaments (WMANT 81), Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1999; Christophe N ihan, «L’écrit sacerdotal comme réplique au récit deutéronomiste des origines. Quelques remarques sur la “bibliothèque” de P», em D. M arguerat (ed.), La Bible en récits. L’exégèse biblique à l’heure du lecteur. Colloque international d’analyse narrative des textes de a Bible. Lausanne (mars 2002) (Le Monde de la Bible 48), Genève, Éditions Labor et Fides, 2003, pp. 196-212. |
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