Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

OS ESTUDOS BÍBLICOS HOJE:
Pluralidade dos métodos,
das abordagens e dos resultados

FRANCOLINO J. GONÇALVES

École Biblique et Archéologique Française . Jerusalém

 

III. PLURALIDADE DOS MÉTODOS, DAS ABORDAGENS E DOS RESULTADOS

Nas últimas três décadas, a exegese histórico-crítica perdeu o monopólio de que gozara no estudo científico da Bíblia durante mais de dois séculos. De facto, no mundo católico, esse monopólio não durou mais de três décadas. Actualmente, reina um grande pluralismo metodológico no estudo da Bíblia, tanto do Antigo como do Novo Testamento.

Esse pluralismo não conhece fronteiras culturais, religiosas ou confessionais. Os mesmos métodos, abordagens ou leituras são praticados por cristãos de todas as denominações, por judeus e até por agnósticos.

A situação despertou a atenção das altas instâncias da Igreja católica há mais de quinze anos. Com efeito, já em 1988, o Cardeal Joseph Ratzinger encarregou a PCB, a que ele preside, de estudar os diferentes métodos exegéticos e de os avaliar, ajudando assim os católicos a fazer as suas escolhas de maneira esclarecida. Os resultados desse estudo foram publicados em 1993 num documento intitulado A interpretação da Bíblia na Igreja (1), que apresenta um panorama relativamente completo dos métodos, abordagens e leituras actualmente praticados no estudo da Bíblia, fazendo um balanço das posibilidades e dos limites de cada um deles.

Sem entrar em pormenores, vou só referir o elenco e a classificação propostos pelo documento. Este distingue entre métodos de análise, abordagens e leituras da Bíblia. Por “método exegético”, no singular, o documento entende um conjunto de técnicas científicas utilizadas para explicar os textos bíblicos. O documento reserva essa designação para o “método histórico-crítico” e para as exegeses baseadas em análises literárias: análise retórica, análise narrativa e análise semiótica.

O documento começa pelo “método histórico-crítico”, o único que considera indispensável para o estudo científico do sentido dos textos antigos, categoria a que pertencem os textos bíblicos. O “método histórico-crítico” comporta várias etapas, que correspondem a outras tantas disciplinas: crítica textual, análise filológica, crítica literária, crítica das formas e dos géneros literários, crítica das tradições pré-literárias e crítica das redacções. Apesar de considerar a exegese histórico-crítica indispensável, o documento reconhece que ela tem limitações. A principal seria o facto de que com frequência a exegese histórico-crítica “se contenta com a busca do sentido do texto bíblico nas circunstâncias históricas da sua produção e não se interessa pelas outras possibilidades de sentido que se manifestam no decurso das épocas posteriores da revelação bíblica e da história da Igreja”(2). Por isso, o documento declara que “nenhum método científico para o estudo da Bíblia é plenamente adequado para apreender toda a riqueza dos textos bíblicos”.

Tendo as considerações de ordem literária ocupado sempre um lugar importante na exegese histórico-crítica, os métodos baseados na análise literária mencionados pelo documento, excepto talvez a análise semiótica, não são inteiramente novos. Com efeito, o “método histórico-crítico”, particularmente abrangente, fez frequentemente apelo à retórica e à arte dos relatos, mas fazia-o de maneira ocasional e pouco rigorosa. Graças aos progressos das ciências da linguagem nas últimas décadas, a análise retórica e a análise narrativa tornaram-se verdadeiros métodos autónomos. Por seu lado, a análise semiótica é um fruto directo das ciências modernas da linguagem. Contrariamente ao “método histórico-crítico”, que é por definição diacrónico, as análises de tipo literário, sobretudo a semiótica, são sincrónicas, isto é, tomam o texto tal como ele existe, sem ter em conta a questão da sua génese, do sentido e da função que ele possa ter tido quando foi escrito.

Por “abordagem”, o documento entende um estudo orientado segundo um ponto de vista particular. Classifica entre as abordagens os estudos da Bíblia feitos à luz da tradição (abordagem canónica e o recurso às tradições judaicas de interpretação), de algumas ciências humanas (sociologia, antropologia cultural, psicologia e psicanálise) ou ainda de situações contemporâneas particulares (situação dos oprimidos, das mulheres). Menciona em último lugar “a leitura fundamentalista da Bíblia”, à qual o documento não reconhece o estatuto de método nem de abordagem. Além disso, é a única que julga de maneira inteiramente negativa.

 

(1) Sobre as circunstâncias relativas à elaboração do documento, pode ler-se José Loza Vera, «La interpretación de la Biblia en la Iglesia», Anámnesis (Revista de Teología, Dominicos, México) IV/2 (1994) 79-81 (77-117).

(2) L’interprétation de la Bible dans l’Église , Città del Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1993, p. 33.

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