Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

OS ESTUDOS BÍBLICOS HOJE:
Pluralidade dos métodos,
das abordagens e dos resultados

FRANCOLINO J. GONÇALVES

École Biblique et Archéologique Française . Jerusalém

 

B. O estudo histórico-crítico da Bíblia

 
Na segunda metade do séc. XVII assiste-se ao aparecimento de uma nova leitura da Bíblia, que começou por centrar-se no AT. Entre os seus pioneiros devem mencionar-se o judeu de Amesterdão (de origem portuguesa) Bento Spinoza (1632-1677) (1) e o católico francês Richard Simon (1638-1712)(2).

Sem duvidar de que a Bíblia seja a expressão da palavra de Deus, os promotores da nova leitura propõem-se estudá-la como a palavra humana que ela também é e independemente da utilização que dela faz a teologia dogmática. Concretamente, propõem-se estudar os textos bíblicos no seu contexto histórico, exactamente como se faz com qualquer outro escrito antigo. Por conseguinte, o estudo crítico da Bíblia vai estar dominado cada vez mais por considerações históricas. Daí que tanto esse estudo como os vários métodos de que ele se serve sejam habitualmente chamados histórico-críticos.

A exegese histórico-crítica assenta no pressuposto seguinte: como qualquer outra obra literária, os escritos bíblicos são, em boa parte, produto do mundo histórico-cultural do seu autor e têm esse mesmo mundo por destinatário imediato. Para a exegese histórico-crítica, a compreensão de um texto bíblico passa assim pela resposta às seguintes perguntas: Em que circunstâncias, sobretudo de tempo mas também de lugar, foi o texto pronunciado ou escrito? Qual é o seu género literário? Por que razões foi pronunciado ou escrito? A quem se dirige? Para quê foi pronunciado ou escrito?

A exegese histórico-crítica foi-se elaborando progressivamente sobretudo nas universidades do mundo germânico de obediência reformada, em particular luterana. Contribuiram grandemente para os seus progressos as descobertas das antigas civilizações do Próximo Oriente: Egipto, Mesopotâmia, Síria-Palestina, etc. O mundo católico não podia ficar indefinidamente à margem desses estudos. De facto, o embate desta exegese contra a leitura tradicional da Bíblia provocou, a partir de fins do séc. XIX, uma grave crise no mundo católico. A crise atingirá o auge no pontificado de Pio X (1903-1914). Muitos, entre os membros da Hierarquia, recusavam a exegese “racionalista” por ver nela um perigo mortal para a fé. Pelo contrário, M.-J. Lagrange apostou nela sem hesitar, pois estava convencido de que, longe de excluir a leitura crente da Bíblia, ela podia ser a sua melhor aliada no mundo moderno dominado pela visão científica. Encarregado de abrir em Jerusalém um centro de estudos bíblicos, o P e. Lagrange tomou como modelo a Escola Prática de Altos Estudos de Paris e fundou, em 1890, a Escola Prática de Estudos Bíblicos, a primeira instituição católica votada ao estudo científico da Bíblia. Hoje chama-se Escola Bíblica e Arqueológica Francesa. O seu objectivo era o estudo histórico-crítico, isto é, feito à luz dos diferentes contextos histórico-culturais em que a Bíblia foi dita e escrita, dos quais ela é em grande parte o produto, cujas linguagens ela fala e aos quais ela se dirigiu em primeiro lugar. Pluri-disciplinar, tal estudo faz apelo a todas os saberes susceptíveis de contribuir para o conhecimento dos textos bíblicos e das circunstâncias que lhes serviram de berço. As línguas antigas, a Geografia, a Arqueologia, a Epigrafia, a História, as Literaturas, as Religiões e até a Etnologia e o Folclore do Próximo Oriente antigo fazem assim parte do seu programa, para cuja realização Jerusalém era o lugar ideal.

Essa orientação tinha o apoio do papa Leão XIII, cuja Encíclica Providentissimus Deus de 18 de Novembro de 1893 se destinava a renovar os estudos bíblicos. Isso não impediu que nesse mesmo dia Alfredo Loisy – um dos filólogos e exegetas críticos mais eminentes da Igreja católica de então – tivesse sido obrigado a demitir-se da cátedra de professor no Instituto Católico de Paris. Num sentido mais positivo e em sintonia com a Providentissimus Deus, Leão XIII instituiu, a 30 de Outubro de 1902, a Pontifícia Comissão Bíblica (PCB), com a dupla função de promover o estudo científico da Bíblia e de defender a ortodoxia católica nessa matéria. De facto, a partir do ano seguinte, a PCB, em nome da defesa da ortodoxia católica, tornou-se um instrumento de censura e um travão do estudo histórico-crítico. Essa situação durou todo o pontificado de Pio X (1903-1914) e os começos do pontificado de Bento XV (1914-1922). Nas suas famosas “Respostas”, a PCB não fez senão negar os problemas levantados pelo estudo histórico-crítico, sobretudo do AT, e rejeitar as soluções que os exegetas propunham (3).

À semelhança dos métodos utilizados, as dificuldades eram de cariz histórico. Umas tiveram a ver com a questão da autoria das diferentes partes ou dos diferentes livros do AT e com a sua data. Com efeito, os estudos histórico-críticos mostravam que muitos dos livros do AT não podiam ter sido escritos, pelo menos na totalidade, pelos autores a quem a tradição os atribuiu. Os casos do Pentateuco e do livro de Isaías são os mais conhecidos. Foram cada um deles objecto de uma consulta à PCB. As respostas correspondentes, datadas de 27 de Junho de 1906 e de 28 de Junho de 1908, foram claras: não se pode negar que Moisés seja o autor do Pentateuco nem que Isaías seja o autor da totalidade do seu livro. As outras dificuldades tiveram a ver com a historicidade dos próprios relatos do AT. Tradicionalmente, tomava-se o AT à letra e, em nome da inspiração divina que se lhe reconhece, tinha-se por um relato inteiramente fidedigno não só da história do povo hebraico, mas também das origens do mundo e da humanidade. Julgava-se até poder datar estes últimos acontecimentos. Segundo a era judaica, 2004 corresponde ao ano 5764 da criação. Ora, os progressos no conhecimento não só da história e das culturas do antigo Próximo Oriente, mas também das ciências da natureza e das ciências do homem tornaram muitos relatos do AT improváveis, senão inverosímeis, do ponto de vista histórico. Por exemplo, a PCB foi consultada a respeito da historicidade de Gn 1-3. A sua resposta, datada de 30 de Junho de 1909, está longe de reconhecer o que hoje nos parece óbvio, isto é, que esses relatos são de carácter mítico e, por conseguinte, não fornecem qualquer informação sobre as circunstâncias em que apareceram o universo e o género humano.

A mudança só ocorreu no pontificado de Pio XII. Na Encíclica Divino afflante spiritu, publicada em 30 de Setembro de 1943, Pio XII apostou, por fim, nos métodos histórico-críticos. Recomendou em particular o estudo dos géneros literários, pondo termo, pelo menos no que diz respeito ao AT, às longas décadas de crise que o estudo histórico-crítico da Bíblia provocara na Igreja católica. Com razão, a Divino afflante Spiritu é considerada a Charta Magna da exegese católica moderna. O Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina (Dei Verbum), promulgada a 18 de Novembro de 1965, confirmou e consagrou a nova orientação dos estudos bíblicos (4).

 

(1) B. S pinoza, Tractatus theologico-politicus, Amsterdam, 1670.

(2) Richard S imon, Histoire critique du Vieux Testament, Paris, 1678.

(3) Houve um total de 14 “Respostas” entre 13 de Fevereiro de 1905 e 18 de Junho de 1915, a última datando já do pontificado de Bento XV.

(4) Sobretudo Dei Verbum, III,12.

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