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Ao contrário do que se possa pensar, a incoerência é regra, dentro de nós. Enquanto agora fazemos uma coisa, logo dizemos outra e, mais adiante, interagimos com outrém, sem nos darmos conta, num sentido diverso ainda. Qualquer esforço para integrar e abranger novos aspectos de nós mesmos (dos quais nem sempre queremos tomar conhecimento e pelos quais não queremos ou pressentimos não estar em condições de nos responsabilizar como pertença nossa) exige uma grande energia e disponibilidade para suportar aspectos desagradáveis. Os mitos clássicos que pretendem figurar o que é isso de uma pessoa, o que é isso de habitar uma personalidade, dão-nos conta exactamente disso mesmo. A nossa civilização está erigida sobre a máxima imperativa do conhece-te a ti próprio, como caminho de aperfeiçoamento. Já nas indicações dos místicos, ao conhecimento próprio acede-se pela relação com Deus e pela relação com os irmãos. Também no método psicanalítico, para o conhecimento próprio, a relação é fundamental. No interior de uma relação muito especial, pode trabalhar-se para progredir nesse conhecimento. Ansiamos por essa relação que alimente, que confronte, que nos ensine o caminho por onde não sabemos ir, tanto quanto a tememos. Muitos demónios a espreitam: deixarmo-nos conduzir, ou deixarmo-nos dominar? Como, na abertura à mudança, poderemos salvaguardar a nossa liberdade? Vivemos num mundo onde a desorientação vem desse desligar (que num primeiro momento é vivido como a essência da experiência de liberdade) e de uma recusa por medo de cair em novas tutelas, quando a lembrança das antigas está ainda tão presente. A aversão ao reconhecimento de qualquer dependência e necessidade torna sedutora a ideia de que não precisamos de alguém para nos conhecermos. O sentimento de dependência da divindade, que a Modernidade pretendeu esconjurar, transmuta-se , e de alguma forma, ressurge na dependência face ao outro, justamente naquela demanda onde o outro é absolutamente necessário: no encontro com aquela qualidade que nos permite saber quem somos. Na progressão do conhecimento próprio, vários mestres o afirmam, não se trata só de trabalhar, não é um conhecimento que se deixe conquistar só pelo nosso esforço ou trabalho. Também é necessário saber esperar desinteressadamente até que vejamos... se passem coisas conjugadas que nos façam figurar o que antes não era visível, nem revelável (também no sentido fotográfico). Não é tudo conquistado. Muito nos é dado. Portanto nem tudo está nas nossas mãos, pouco controlamos e determinamos afinal, mesmo em relação a nós próprios. Nesse sentido, não somos assim tão senhores de nós. Os polos que antes de mais é preciso conjugar (dizer) e conjugar (unir) são os do afecto desordenado, imperioso e violento (que ainda não encontraram forma numa palavra numa maneira de dizer, por mais sufocada e desarticulada que seja) e os da palavra que já é pensamento, juízo, uma primeira conclusão, sempre.(conseguir verbalizar as coisas é já uma fase muito avançada de conhecimento) Há coisas que, dentro de nós nunca chegam a ser ditas, pela inexistência de um espaço interior e exterior que permita a sua emergência. Este espaço especial que é o laboratório vivo de todos os nossos movimentos e retraimentos face ao outro e à realidade, é aquele cuja necessidade tantas vezes não é reconhecida. Este espaço é sustentado pela procura, pelo reconhecimento de uma relação fontal de onde nascemos e renascemos. A cultura da autosuficiência tende a negar esta dependência de uma relação viva, de relações vivas. E por via dessa negação, e dessa ruptura, mata. Quero deixar bem marcada a noção que tenho do carácter especial e não ordinário deste espaço, deste tipo de relação. Uma das maiores causas de sofrimento é a ilusão de que as mesmas experiências se podem fazer, em qualquer circunstância, tanto no princípio do caminho, como no fim dele, tanto na rua, como no local mais recôndito da casa, tanto na juventude, como no fim de uma vida, tanto com aquele que mal se conhece como com aquele com quem se partilhou quase tudo. Ora, há muitas diferenças numa e noutra situação; estamos a falar de uma que é resultado de um longo caminho de relação e conhecimento, também connosco próprios. Trata-se como já foi referido da relação com “o primeiro amado...a partir do qual amamos tudo o resto.” O carácter último desta relação (o último recanto de nós mesmos, o último fôlego do nosso esforço, o último, para além das nossas fronteiras habituais e conhecidas) confere a marca do extraordinário no ordinário dos nossos dias. No âmbito da Psicanálise, certos autores vêm contribuindo para definir cada vez melhor os contornos também psicológicos deste movimento face a esse objecto que existe dentro e fora de nós, de quem depende o sentimento de estar interiormente vivo. Para certo tipo de situações clínicas, torna-se essencial ter instrumentos que permitam “ver” quais o movimentos que uma pessoa faz para se afastar ou se aproximar dessa relação sustentadora da vida e do crescimento próprios. Há pessoas que parecem sempre afastar-se dessa possibilidade...das ocasiões de receber e dar, das ocasiões de crescimento... |
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1. O ser humano é destinado a abrir-se simultaneamente para o exterior e para o interior dele mesmo. Destinado a abrir-se para poder receber o máximo de exterior (de diferença) no mais interior dele mesmo (no máximo de intimidade a si mesmo de que seja capaz). Não é possível manter esta abertura para a realidade interna e externa (o outro, Deus, a realidade), para o novo, inesperado e, tantas vezes, dolorosamente diferente, sem uma relação que sustente essa atitude tão difícil de manter (a relação sempre necessária ao conhecimento e ao crescimento de que falava acima). Portanto dentro, no mundo interior, terá que haver espaço para digerir e alojar o que vem do exterior mas também terá que estar presente a instância que acalenta que suporta as, tantas vezes difíceis, digestões daquilo que está em vias de ser integrado. Quando não, a alternativa é vomitar, aquilo que não é comportável não se consegue engolir, acomodar, digerir... 2. Neste sentido, só contacto comigo, através de uma relação com um exterior a mim, que foi sendo sustentadamente construída e interiorizada (todos passamos por isto, na relação que construímos com os pais, por exemplo). Isto pode não ser sempre assim. Na loucura, temos uma relação para o não contacto, para impedir todos os veículos que poderiam corporizar uma relação com e um conhecimento do outro, e que poderiam servir de suporte para que alguém nos conhecesse. 3. Esta relação interiorizada, constitui-se numa fonte de energia, inspiração e vida. Mas está sempre em perigo de se perder a sua lembrança, ou de se perder a confiança na sua existência, se não for actualizada, se não se experimentar como uma permanente possibilidade –de alimento. Para Melanie Klein, por exemplo, “a integração realiza-se apenas de forma muito gradual, e é possível que a segurança que proporciona se veja perturbada em momentos de forte pressão interna e externa; e isto conserva a sua validade durante toda a vida. Nunca se chega a uma integridade total e permanente, já que persiste sempre uma certa polaridade entre os instintos de vida e de morte, o que permanece como a causa mais profunda de conflito.” (Klein, 1963) W. Bion, por ser turno, postula que o crescimento mental resulta da possibilidade de manter a mente aberta à oscilação entre as posições esquizo-paranoide e depressiva de Klein.·Tratar-se-ia de poder, após cada aceitação de um insight integrador, manter-se aberto à dispersão e insegurança que o ainda desconhecido provoca. Esta oscilação e a tensão permanente que daí resulta seria, a par de outros factores como por exemplo a dor mental, um dos elementos propulsores do crescimento e expansão do aparelho psíquico. Esta condição ou potencialidade de estrutura aberta que somos, que podemos ser, possibilita a expansão, o crescimento. Assim, somos limitados/ilimitados. “ Uma dilatação ou alargamento (...) a par de muitos prodígios que Deus faz na alma, aparelhando-a e dispondo-a de modo a que tudo lá caiba. (...) esta suavidade ou alargamento interior manifesta-se em já não andar tão atada como andava (mas sim com muito mais largueza ). (Teresa de Ávila, Moradas) Muitas vezes, demonstramos que não partimos (acreditamos) desta concepção (é possível expandirmo-nos e ultrapassarmos os nossos limites), quando nos tornamos demasiado calculistas quando se trata de repartir, de partilhar as nossas forças, as nossas energias, os nossos recursos. Como se fossem de uma natureza absolutamente finita, limitada e não renovável - como se passa aparentemente com o nosso corpo. A condição e pólo do ilimitado é assegurada por uma fé, uma confiança naquela relação de que vimos falando. W. Bion fala em “fé em O”(realidade última) como condição necessária ao crescimento e expansão de eu através nomeadamente da relação terapêutica. 4. A relação com este objecto fontal passa pelo corpo. É no corpo que se sente o alento, o alimento, a expansão que esta abertura para o outro que não é só o outro concreto, é também outra coisa ou sinal e presença de outra coisa, nos pode prodigalizar. Só assim se pode assegurar a circulação, a partilha e o alívio consequente, das coisas que ainda não são passíveis de circular sobretudo através de palavras. Circulam mais pela mímica, gestos, gemidos, ou gritos, e por outros níveis em que pensamos pouco, porque normalmente quando os experimentamos não se está em condições de pensar, e depois também nunca mais se pensa nisso. Também gostamos pouco de falar nestas realidades que tão abundantemente demonstram a fragilidade e insipiência da nossa capacidade para as guardar e lembrar.(Remeto para o “Lágrimas e suspiros”). Trata-se da partilha da dor, do sofrimento, ou da alegria, num estado em que não é suportável sem pôr em causa a nossa integridade. Num estado em que as palavras não são veículos eficientes para a sua expulsão, para a sua comunicação. Não há palavras, dizemos, ás vezes... Encontrada a forma para a sua comunicação, no interior de uma relação, a dor diminui...Quando não, aumenta. (é um dado da observação de todos os dias nos hospitais, mas também nas nossas relações...como a dor pode aumentar quando não está ninguém por perto!). O corpo é limitado sim, mas renova-se. Mas une-se aos outros corpos, no trabalho, na festa, nas catástrofes, na dor, nas relações de grande intimidade. E tudo isto tem a ver com a sexualidade. Como o filme que foi proposto como cenário tão eloquentemente mostra, o problema está antes e invade tudo, também a sexualidade. Talvez a procura do sexo actualmente, com as características que apresenta, seja sintoma dessa falta que está antes, desse retraimento, dessa indiferença, dessa frieza, que é, muitas vezes, conformidade com a ausência de esperança em que possam existir momentos de comunhão...ou desespero ainda de os procurar, através de uma coisa que se quer acreditar os faça acontecer... Estes movimentos de frieza e indiferença não geram apenas o vácuo da omissão, geram também culpa, sufocante, esmagadora pelo que cansa, pelo que pesa, mesmo que se lhe dê só esse nome: cansaço, ou stress ou doença... Não há contacto humano, corpo a corpo, o “puro sexo”. Mas envolvido em imagens, palavras, símbolos, histórias, guardáveis, memorizáveis, que contenham as dores, angústias e interrogações solitárias, que permitam o seu trânsito, e a sua comunicação, até que lhe encontremos um nome. O alargamento ou a possibilidade da expansão do corpo/espírito está na relação com o outro. E a possibilidade de suportar a dor (em vez de nos dividirmos e alienarmos ou intoxicarmos com qualquer coisa que para isso se preste, até uma pessoa) crescendo com ela, elaborando-a e aprendendo, está também na relação. Cristina Fabião (UA) |
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