CADERNOS DO ISTA (10)








O POTENCIAL UTÓPICO

DO CRISTIANISMO PRIMITIVO

José Nunes







 

 

 

«O grupo murmurava uma litania qualquer entredentes. Reparei que os que não estavam de costas para mim semicerravam os olhos enquanto desfiavam a prece dirigida a um deus-pai que velava no firmamento. Mantinham os braços erguidos, de mãos espalmadas, à altura dos ombros. Tudo me soou um tanto a ridículo.

Era gente compósita: livres, libertos e escravos, homens e mulheres, moços e velhos. As túnicas de puro linho, de tons suaves, misturavam-se à estamenha de cores fortes. O motivo do peixe aparecia frequentemente, nos poucos adornos que traziam consigo: pingentes de pulseiras, brincos, uma fíbula… Não compreendi, na altura, qual a relação entre aquele símbolo obsessivo e o labrego da estatueta de barro, vestido de peles, que transportava um cordeiro.»
Mário de Carvalho, in Um Deus passeando pela brisa da tarde

...

Segundo Manuel Antunes, a utopia não só aponta para algo de possível e ainda não realizado, como acentua uma «vontade de ruptura com o presente» (1). Quando olhamos para o cristianismo primitivo, tanto o das gerações apostólicas – de que dá conta o Novo Testamento – como o dos três ou quatro primeiros séculos – até à sua oficialização definitiva no Império e de que temos testemunhos vivos nalguns padres da Igreja –, podemos realmente constatar essa nota utópica: os primeiros cristãos trazem algo de novo e entram em ruptura com muita da realidade circundante, seja ela considerada no domínio religioso, no político-social ou cultural em geral.

Assim, se historicamente é possível distinguir três grandes modelos na relação ‘cristianismo-cultura' – ruptura, identificação, diálogo/síntese (2) –, modelos esses que muitas vezes têm os seus defensores e representantes na mesma época da história, poderíamos dizer que, globalmente, o cristianismo primitivo assume a ruptura com o judaísmo, o helenismo e o império romano, ainda que, minoritariamente, haja alguns expoentes dos outros modelos atrás referidos.

•  O cristianismo e as religiões da antiguidade

 

É a ressurreição de Jesus e a vinda do seu Espírito que transforma a vida dos seus discípulos e impulsiona o nascimento da Igreja. A ressurreição de Jesus traz também a esperança da ressurreição de todos os cristãos e, nesse sentido, alimenta a heroicidade diante das perseguições e martírios. Eusébio de Cesareia (bispo em Cesareia da palestina, vivendo entre 263 e 340), talvez o primeiro grande historiador cristão, dá conta dos pensamentos dos pagãos, em Lyon, no sec. II: «é preciso tirar tudo a esses homens, até a esperança da ressurreição. Por causa desta esperança, eles introduzem entre nós uma religião nova e estrangeira, desprezam as torturas e correm alegremente para a morte» (3). Também o filósofo Porfírio (finais do sec. III), discípulo de Plotino, escarneceu da crença na ressurreição: «Tremenda mentira esta (a ressurreição). Se isto ouvissem os animais irracionais, desatariam a mugir, a chilrear, a gritar com alarido, só de imaginarem homens de carne a voar pelos ares como os pássaros ou a ser levados sobre uma nuvem» (4). Contudo, face às grandes religiões com que se confrontava, não é essa a grande novidade do cristianismo. Com efeito, a ressurreição, se bem que original, quanto ao modo, inscreve-se no quadro da crença numa imortalidade, numa vida para além da morte – algo comum a quase todas as religiões.

A verdadeira novidade e ruptura na compreensão do transcendente por parte do cristianismo, para além da afirmação clara do monoteísmo, é a fé num Deus não só Absoluto, poderoso, totalmente-outro, mas sim, também, um Deus próximo dos homens e do mundo, um Deus ‘humano', cheio de compaixão, fraco, capaz de sofrer e partilhar a vida dos homens. E essa novidade do cristianismo é sobretudo verificável nos mistérios da incarnação e da cruz .

Como muito bem salienta J.Danielou, «a diferença essencial entre catolicismo e todas as demais religiões é que estas partem do homem e são uma tentativa emocionante, por vezes belíssima, que se eleva muito acima para encontrar a Deus; mas só no cristianismo existe o movimento contrário, a descida de Deus ao mundo para comunicar a sua vinda. Só na religião judeo-cristã se dá a resposta à aspiração do universo inteiro. E a religião verdadeira, a religião católica, é a que se compões destes dois elementos, quer dizer, aquela que ao apelo dos homens respondeu a graça de Deus» (5).

É este Deus revelado, de forma plena na incarnação de Jesus Cristo, que é dificilmente aceitável e acreditado pelo paganismo religioso de então: Celso, filósofo pagão, testemunha, por volta de 180 (e dele temos conhecimento pela resposta polémica de Orígenes, cerca de 60 anos depois), que a Incarnação é um absurdo; com efeito, a vinda de Deus ao mundo suporia uma alteração em Deus. Ora, todos acreditam que Ele é imutável (6).

«Sob diversas formas, as diversas escolas gnósticas opõem ao mistério abissal de Deus, a queda e a miséria do Homem. Entre o Criador e a sua obra, concebem uma escala de intermediários ou entes que aceleram e explicam a queda. A missão do Logos não pode ser uma incarnação verdadeira – porque se arriscaria, por sua vez, a ser contaminado» (7).

Heresias do tempo, como o marcionismo ou o arianismo, diferentes entre si, apenas testemunham da dificuldade dos próprios cristãos em aceitar a incarnação plena (quanto mais os pagãos!): para Marcião (meados do sec. II), Jesus era Deus, de corpo humano só tinha a aparência; para Ario (inícios do sec. IV), Jesus era essencialmente um homem, ainda que revestido de força divina, nunca se podendo comparar ao Deus criador e todo-poderoso.

A cruz de Jesus representa, paralelamente, um outro motivo de escândalo para as religiões de então. Já Paulo declarara que ela era escândalo para os judeus e loucura para os gentios (ICor.1,23) e, dum modo geral, a historicidade de Jesus e o seu fim trágico na cruz chocavam frontalmente com a filosofia religiosa grega (8).

Outra heresia dos primeiros séculos – o docetismo – atesta também da dificuldade dos próprios cristãos em aceitar a cruz e a morte de Jesus, negando-a pura e simplesmente (lembremo-nos que o Corão diz também que jesus foi substituído por outro na cruz), pois para os docetas (dokein, em grego, significa parecer) Jesus era apenas semelhante a um homem e, portanto, não morreu verdadeiramente.

Como diz C. Duquoc, essa quebra do ‘Absoluto' de Deus, essa linguagem e crença que faziam de «Jesus o igual a Deus era ímpia: fazia rir os homens gregos, religiosos ou filósofos, e os judeus helenistas» (9).

Curiosamente, essa facilidade em conceber um Absoluto que se revela e se faz carne, não levou sempre os cristãos à consequente aceitação do simbólico para a representação de Deus ou para a comunicação com o transcendente. É verdade que o baptismo e a eucaristia simbolizaram desde sempre a presença de Deus, é verdade que imagens como a do peixe, a âncora ou a cruz desempenharam a mesma função; mas a guerra iconoclasta dominou as preocupações de muitos padres da Igreja, sobretudo nos três primeiros séculos, como Justino, Tertuliano, Orígenes, Minúcio Felix, Eusébio de Cesareia, etc. (10). O combate é à idolatria, é certo, mas «Celso responde aos judeus e aos cristãos acusando-os de serem bastante parcos de entendimento para confundirem a matéria com a ideia que ela somboliza, as imagens dos deuses com os próprios deuses que elas representam» (11).

 

•  Os cristãos e a vida pública

 

Depois da ruptura entre cristianismo e cultura moderna (Paulo VI considerava-a o grande drama do nosso tempo – E.N. 20), é-nos mais difícil não querer o diálogo com a cultura, a relação de empatia e serviço ao mundo, esquecer a prioridade a conceder aos ‘sinais dos tempos'.

O cristianismo primitivo, bem na linha de alguns escritos joânicos e paulinos sobre a necessária ruptura com o mundo e a carne (12), tem ainda a grande preocupação com a pureza da fé e da vida cristã, e é consequente com esse princípio, chegando ao limite da recusa da vida pública, toda ela marcada pela idolatria.

É verdade que há pensadores cristãos que procuram algum diálogo com a vida e pensamento/sabedoria pagãs: Ireneu e Justino falam nas ‘sementes do Verbo', Eusébio de cesareia falará na ‘preparação evangélica' que são as filosofias pagãs, na linha, aliás, de Clemente de Alexandria, para quem a filosofia grega era uma ‘pedagogia' para se aproximar do cristianismo. A própria Carta a Diogneto (sec. II), na sua afirmação de que «para o cristão toda a terra é uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira», pode ser entendida não apenas como recusa do mundo e defesa do homem sempre peregrino e em busca do céu, mas também, positivamente, no sentido de que toda a terra/pátria/cultura são veículos propícios à vivência da fé cristã. Esta mesma Carta a Diogneto diz: «Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pelo país, nem pela linguagem, nem pelo vestuário (…) Conformam-se aos usos locais quanto a vestuário, alimentação e modo de vida, manifestando ao mesmo tempo as leis paradoxais e verdadeiramente extraordinárias da sua maneira de viver»(n. 5, 1-4). Numa primeira fase do seu pensamento, o próprio Tertuliano, cerca do ano 200, ainda podia escrever cordatamente: «Vivemos convosco, comemos o mesmo alimento, usamos o mesmo vestuário, temos o mesmo modo de vida, estamos submetidos às mesmas necessidades da existência. Não somos brâmanes ou faquires da Índia, habitantes das florestas ou exilados da vida (…) Frequentamos o vosso forum, o vosso mercado, os vossos banhos, as vossas lojas, as vossas estalagens, as vossas feiras e outros locais de comércio, habitamos este mundo convosco. Convosco navegamos, convosco servimos como soldados, trabalhamos a terra, fazemos comércio» (13).

Contudo, o cristianismo primitivo é maioritariamente marginal, é quase ‘gheto' ou raça à parte. Tertuliano escreveu, por exemplo, no início do sec. III: «O que tem Atenas a ver com Jerusalém, a Academia com a Igreja? Ou os herejes com os cristãos? A nossa doutrina vem do pórtico de Salomão» (14). Do mesmo modo, a Didascália (documento sensivelmente dessa época) prescreve: «Evita todos os livros dos pagãos; o que tens a ver com falas ou leis estranhas ou com profecias mentirosas que desviam os homens da fé?» (15). Houve, realmente, uma mudança no sec. II: até aí era frequente encontrar os cristãos nas praças públicas, nas lojas e oficinas, nas termas e nos banhos; houve um primeiro momento «sem complexos, no fervor da descoberta evangélica e da alegria da participação; num segundo momento, os cristãos sentem até que ponto este mundo, contaminado pela ideologia idolátrica, é impenetrável ao Evangelho. Afastam-se do seu optimismo inicial e tornam-se circunspectos» (16).

É natural, assim, que os cristãos dos primeiros séculos, verdadeiramente obsecados pela idolatria que minava a vida do Império romano, recusassem um sem número de actos e hábitos da sociedade civil e até certas profissões (17). No início do sec. V, o Código de Teodósio (nn.10,16,20) traduz já em ‘lei cristã do Império' aquela recusa e marginalização da vida social adoptada pelo cristianismo primitivo: é proibido «acender o fogo em nome dos Lares, a libação do vinho ao Génio, oferecer perfumes aos Penetes, acender candeias, queimar incenso, pendurar grinaldas nos altares». Imagine-se a perturbação social em muitas famílias quando catecúmenos ou neófitos se recusam a casamentos e se afastam dos esposos respectivos por causa das práticas pagãs! Alguém chega a descrever os cristãos desta forma: «Palestinianos ímpios, que só servem para semear a discórdia nas famílias» (18).

Se o cristão vive no campo e é agricultor, a natureza e os campos, os altares e as festas serã

o sempre vistos com desconfiança. A sua propriedade deve até estar separada das outras por pedras sagradas que a protejam de influências nefastas. Os seus vizinhos, pelo contrário, oferecerão pequenos sacrifícios aos Lares – que se encontram nas encruzilhadas –, acusarão os cristãos de ateísmo e responsabilizá-los-ão pelas secas, más colheitas e por toda a espécie de males que atinjam os campos.

Se o cristão é escultor, pintor, modelador, comerciante, naturalmente que vai ter de renunciar a essas profissões! É que muitas delas ocupam-se essencialmente do fabrico de imagens idolátricas; e todas, praticamente, obrigam a fazer parte da corporação respectiva que, evidentemente, se agrupa sob a protecção dum deus tutelar como Hermes, Hércules, Apolo, Poseidon, etc.

Tem o cristão uma outra profissão liberal? Deverá deixá-la… De facto, o cristão não pode ser gramático ou retórico. Como bem argumentou o Imperador Juliano (primeiro cristão, depois apóstata), num édito do ano 362, proibindo aos cristãos o ensino das letras profanas: «Quem pensa de uma maneira e instrui os alunos de outra não é sincero e por esse motivo não pode ser um bom professor (…) Considero, portanto, absurdo, que aqueles que explicam as suas obras rejeitem os deuses que os seus autores adoram» (19).

Pode o cristão ser soldado? Logicamente que não! A vida dos acampamentos está cheia de perigos idolátricos para os cristãos e o juramento ao Imperador é absolutamente incompatível com a pureza da fé, bem na linha das afirmações de Jesus: «não podeis servir a dois senhores» (Mt. 6,24) e «não jureis em caso algum» (Mt. 5,34) (20). E há também a razão da não-violência para a recusa da vida militar. Tertuliano une estes dois motivos quando escreveu, cerca do ano 210: «Será permitido ao cristão viver de espada na mão, quando o Senhor afirmou que quem se servir da espada morrerá pela espada? Há-de ir ao combate o filho da paz, ao qual está mesmo interdita a disputa? Há-de inflingir a outrem os grilhões, a prisão, a tortura ou os suplícios, ele que não sabe vingar as suas próprias injúrias (…)? Há-de fazer a guarda dos templos aos quais renunciou? Há-de comer nos locais que o apóstolo interdita? Aqueles que afugentou de dia com os seus exorcismos, há-de defendê-los de noite, apoiamdo-se na lança com a qual foi trespassado o lado de Cristo? Há-de levar o estandarte rival de Cristo?» (21).

O mesmo se passava, aliás, com os funcionários públicos ou com a participação em jogos cénicos, fossem eles o teatro os os combates de gladiadores. É que também na magistratura/função pública como nos espectáculos eram obrigatórios orações e sacrifícios pagãos. O Concílio de Elvira (canones I e II), no ano 300, decidiu até a excomunhão de qualquer cristão que tivesse participado em tais práticas.

Eis porque, embora injustamente mas com alguma lógica, há quem considere que o triunfo do cristianismo significou o empobrecimento da humanidade pela destruição completa das culturas clássicas…

Cristianismo – uma comunidade abrangente


Uma das características mais inovadoras do cristianismo primitivo é, sem dúvida, a sua ruptura com qualquer tipo de elitismo ou exclusivismo. Neste ponto, historiadores e pensadores dos mais diversos quadrantes, crentes e não-crentes, todos estão de acordo: a vida cristã, nos primeiros séculos, configurou-se em comunidades abertas a todo o tipo de pessoas convertidas.

Certamente que a intuição subjacente a essa realidade era a do projecto de Jesus: o Reino de Deus é visível pela prática da fraternidade universal, onde todos são filhos e filhas do mesmo Pai – Deus. S. Paulo compreendeu-o muito bem quando rompeu com a perspectiva judaízante/nacionalista dos primeiros discípulos (Act. 6; 10-11; 15) e por isso afirmou: em Cristo «já não há judeu nem grego, homem ou mulher, escravo ou homem livre» (Gal. 3,28). Daí a missão universal, muito bem sublinhada por Orígenes, na primeira metade do sec. III: «Se considerarmos os progressos enormes do Evangelho em alguns anos, apesar da perseguição e dos suplícios, da morte e da confiscação, apesar do escasso número de pregadores, a Palavra foi anunciada por toda a terra. Gregos e bárbaros, sábios e ignorantes, aderiram à religião de Jesus. Não podemos duvidar de que isto ultrapassa as forças do homem, porque Jesus ensinou com toda a autoridade e persuasão necessárias para que a Palavra se imponha» (22).

A civilização greco-romana era essencialmente aristocrática. Assentava na desigualdade social das famílias, algumas pretendendo descender de deuses ou heróis; daí o direito a mandar, para uns, e de obedecer, para outros. O cristianismo introduz uma verdadeira revolução ao proclamar que todos os homens provêm do mesmo par original e que todos podem ser salvos pela cruz de Jesus Cristo. São assim reabilitadas as classes mais baixas, aos próprios escravos é dada a dignidade e a liberdade de filhos de Deus. Lactâncio (cerca do ano 300) escreve: «Entre nós não existem escravos ou senhores. Não fazemos distinções entre nós e chamamo-nos irmãos entre todos, porque nos consideramos todos iguais. Servidores e senhores, grandes e pequenos, todos são iguais pela modéstia e pela disposição do coração, que afasta todos da vaidade» (23). Mas já Tertuliano, um século antes, testemunhava algo de parecido: «Quanto ao nome de ‘irmãos' pelo qual somos designados: só dizem despropósitos, penso eu, porque entre eles todos os nomes de parentela não são dados senão por uma afeição simulada. Ora, nós somos realmente vossos irmãos pela natureza, nossa mãe comum; é verdade que quase não sois homens, sois maus irmãos. Mas com quanta mais razão se chamam e se consideram irmãos aqueles que reconhecem como Pai o mesmo Deus, que beberam do mesmo espírito de santidade, que, saídos do mesmo seio da ignorância, viram luzir, maravilhados, a mesma luz da verdade!» (24).

Isto explica, em parte, o sucesso inicial do cristianismo junto dos pobres e escravos (mas a que rapidamente se começam a juntar grandes pensadores e membros de classes sociais mais elevadas) (25). Era assim em Corinto, era assim em Roma: «no tempo do papa Cornélio, a Igreja de Roma alimentava mil e quinhentas viúvas e necessitados. Neste número impressionante, os pobres eram a maioria. O que valia para Roma, valia para todas as comunidades. Cada uma tinha os seus pobres. Situação esta que (…) reflectia as condições económicas de uma sociedade em que as disparidades eram flagrantes, numerosos eram os economicamente débeis» (26).

Se bem que o superar das classes sociais fosse algo de fundamental, outros aspectos da igualdade proposta pelo cristianismo se tornavam relevantes: os nacionalismos ou fundamentalismos étnicos eram superados – desaparecia a noção de ‘estrangeiro' (27) –, as mulheres ganhavam dignidade: «o cristianismo transformou a condição da mulher e modificou a legislação do casamento; santidade e indissolubilidade desconhecidas no direito antigo, liberdade de escolha entre matrimónio e celibato (…), enfim, possibilidade para todos, incluindo os escravos, de concluir uma união segundo os princípios cristãos. Os que se apresentavam ao bispo deviam regularizar a sua situação, desposar ou recusar uma concubina, comprometer-se numa monogamia» (28). A mulher, além disso, assumiu importantes serviços e ministérios nas comunidades cristãs, até como diaconisas (29).


Mas é realmente na comunicação de bens que as comunidades cristãs são mais surpreendentes: já os Actos dos Apóstolos falavam dessa partilha (Act. 2 e 4), na comunidade de Jerusalém, «para que não houvesse necessitados» – recuperando a perspectiva bíblica do ano sabático e do ano jubilar (cfr. Deut. 15,4) –, e S. Paulo chega mesmo a falar do ideal da igualdade (2Cor. 8), já que os bens da criação a todos pertencem. A solidariedade e partilha efectiva com os orfãos e viúvas, os pobres e os escravos, é então louvada por muitos padres da Igreja, com afirmações que não deixam lugar a dúvidas. Clemente Romano, papa do final do sec. I, dizia: «Muitos dos nossos venderam-se como escravos e, com o preço da sua liberdade, alimentaram outros» (casos de S. Pedro Colector e S. Serapião); Inácio de Antioquia, na Carta aos esmirnenses, exorta: «É bom e útil visitar os orfãos e as viúvas, sobretudo as que são mais pobres e têm muitos filhos»; a Didascália aconselha: «se um dos cristãos fica orfão, seja um rapaz ou uma rapariga, será bom que um dos irmãos, que não tenha filhos, tome o rapaz por filho e, se já tem um filho, receba a jovem e lha dê por esposa, na altura devida, para coroar a sua obra ao serviço de Deus»; Basílio, na Capadócia, advertiu: «o pão que há na tua dispensa pertence ao que tem fome; a roupa que está guardada no teu armário pertence a quem dela necessita; os sapatos que lá estão a estragar-se pertencem ao descalço; o dinheiro que acumulas pertence aos pobres»; S. Ambrósio, em Milão, diria: «Não estás a oferecer ao pobre nada de teu, apenas lhe devolves uma parte do que lhe pertence, pois tudo o que foi dado para o uso de todos, estava-lo tu usurpando sozinho».

Por tudo isto, escrevia um dia, envergonhado, o imperador apóstata Juliano, referindo-se aos cristãos: «Cuidam dos mortos e não se contentam em alimentar os seus pobres, mas dão também de comer aos nossos pobres, que estavam privados da nossa ajuda».

Um autor contemporâneo, pouco suspeito, conclui brilhantemente: «A filantropia activa dos cristãos eclipsou a misantropia passiva de que os acusavam. No meio da tormenta que foram os séculos III e IV, a Igreja surgiu como um porto de abrigo, uma enseada de perdão. A Cidade de Deus salvou do desespero a cidade dos homens» (30).

José Nunes
Cadernos do ISTA, 10

 

NOTAS

(1) M.Antunes, Utopia, Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura/Verbo, Lisboa 1976, vol.18, col.573s.

(2) Cfr R.Niebuhr, Cristo e Cultura, ed.Paz e Terra, Rio de Janeiro 1967, pp.61-66.

(3) Citado em A.Hamman, A vida quotidiana dos primeiros cristãos, Livros do Brasil, Lisboa s/d, p.89.

(4) Citado por J. Comby, Para ler a História da Igreja –1, Ed. Perpétuo Socorro, Porto 1997, p.37.

(5) In Le Mystère du salut des nations (1945).

(6) Cfr C.Duquoc, Un Dieu different, Cerf, Paris 1977, p.27.

(7) A.Hamman, o.c., p.115. Aliás, este pessimismo antropológico sempre percorreu a história do cristianismo, na teologia e na espiritualidade, dentro ou fora da maior ortodoxia: veja-se o neo-platonismo de Agostinho, as seitas cátaras medievais, os pais do protestantismo, o jansenismo, algum romantismo…

(8) A morte numa cruz já constitui, em si, a mais penosa e ignominosa das mortes – escândalo público, um corpo que é abandonado aos abutres… Era, aliás, algo de bem conhecido em muitos povos da antiguidade. Ora, quanto mais escandaloso e inaceitável referir esse tipo de morte a um Deus!

(9) C. Duquoc, o.c., p.30.

(10) Cfr. L.Rougier, O conflito entre o cristianismo primitivo e a civilização antiga, Vega, Lisboa 1995, pp.113-128. Atentemos nas palavras de Minúcio Felix ali citadas: «Quando é que nasce o deus? Fundem-no, forjam-no, talham-no: não é ainda um deus! Eis que o soldam, que o colocam num pedestal: mesmo nesse instante ainda não é um deus! Mas quando o ornamentam e consagram e lhe dirigem orações, ah!, então surge o deus, depois do homem ter procedido à sua consagração»; ou a afirmação de Atenágoras: «Se são deuses, porque não o foram desde o começo? Porque são mais jovens do que aqueles que os produziram? Porque precisam da ajuda dos homens e se socorrem da arte? Terra, pedras, matéria, arte supérflua, eis o que são». Há aqui, sem dúvida, uma herança judaica vetero-testamentária muito forte.

(11) Citado em L.Rougier, op. cit., p.115.

(12) Por exemplo, I Jo.2,15: «Não ameis o mundo nem as coisas do mundo».

(13) Tertuliano, Apologetica, cap.42; citado por J. Comby, o.c., p.40.

(14) Tertuliano, De praescriptione haereticorum, 7,9s; P.L. 2,20.

(15) Didascalia Apostolorum, I,VI.

(16) A. Hamman, op. cit., p.85.

(17) A este respeito, cfr. L.Rougier, op. cit., pp. 93-112. Veja-se também o significativo texto de Hipólito de Roma, na sua Tradição Apostólica (sec.III), citado por J. Comby, op. cit., p.41, e acerca dos ofícios interditos aos catecúmenos: «Quem for sacerdote ou guardião de ídolos, deixará de o ser, ou não será admitido. O soldado subalterno não matará ninguém. Se receber essa ordem, não a executará nem prestará juramento. Se recusa não será aceite. O magistrado de uma cidade ou aquele que tem o poder judicial deixarão de o ser ou não serão aceites. O catecúmeno ou fial que quiserem ser soldados, serão despedidos, porque desprezaram a Deus».

(18) Trata-se de Aelio Aristides, citado por L.Rougier, op. cit., p.94. Cfr., a este respeito, A.Hamman, op. cit., p.80.

(19) Citado por L.Rougier, op. cit., p. 101.

(20) A este respeito, leia-se o interrogatório a um cristão refractário, no ano 295, in L.Rougier, op. cit., pp. 103s.

(21) Tertuliano, A corôa dos militares, citado por J. Comby, op. cit., p.41.

(22) Orígenes, Os Primeiros Princípios, IV, 1,2; citado por J. Comby, op. cit., p.65 .

(23) Lactâncio, Inst. Div. V,16; citado por A.Hamman, op. cit., p. 55.

(24) Tertuliano, Apologetica, cap.39, citado por J. Comby, op. cit., p.40.

(25) Cfr. Torrents, J.M., El desafio cristiano – Las razones del perseguidor, Anaya, Madrid 1992, pp.229-234.

(26) A. Hamman, op. cit., p.160.

(27) Cfr. L.Rougier, op. cit., p. 89, onde é citado o imperador Juliano: «O que mais contribuíu para o desenvolvimento do ateísmo (deve entender-se o cristianismo) foi a sua humanidade no que respeita aos estrangeiros»; Aristides diz também: «Se vêem um estrangeiro, recolhem-no sob o seu tecto e alegram-se como se fosse um irmão verdadeiro» - cfr A.Hamman, op. cit., p.42.

(28) A. Hamman, op. cit., p. 228.

(29) Cfr. A. Hamman, op. cit., p. 82.

(30) L.Rougier, op. cit., p. 89.




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