ROGÉRIO FERNANDES
A PAZ ENSINA-SE?







CADERNOS DO ISTA, Nº 9
Começarei por dizer que não sei se a paz se ensina. Sei, contudo, que a paz se aprende.

Tentando explicar-me: não sei se a paz se ensina e, no caso afirmativo, se é possível ensiná-la à maneira de um teorema, de uma lei física, de um sistema de causas e efeitos sociais. Em suma, como um «objecto cognitivo» que se conhece por meio da racionalidade lógica. Ou, pelo contrário, dar-se-á o caso que o acesso ao «conhecimento da paz» tenha uma trajectória menos linear, por se tratar de um «objecto político», preensível, apenas, por meio da «acção racional»?

Conhecer a paz, saber do que se trata , envolve certamente um momento de reflexão fundamentante. Um momento de debate, de aproximações e de distanciamentos. Inserida no campo dos valores, a paz não é isolável de outras realidades axiológicas e a axiologia é sempre dilemática. Como conciliar a paz com o valor da justiça, como preservar a justiça e a paz ao mesmo tempo? Se a paz é um dever-ser, um valor ético, como o situamos relativamente a valores políticos, a valores sociais ? Deveremos, acaso, renunciar à justiça para defender a paz? Ou, antes, deveremos reconhecer que não há paz sem justiça nem justiça sem paz?

Momento de fundamentação, de reflexão aprofundante, que, para não ser um jogo de palavras, terá de entrar no âmago vivo das questões concretas, dos problemas de hoje, da tragédia histórica dos dias mansos.

Neste limiar, a paz aprende-se mas não se ensina, pelo menos à maneira de quem transmite uma demonstração matemática. Aprende-se no debate organizado, é certo, mas aprende-se na escuta do outro, na resposta ao outro, no diálogo com o outro, na pluralidade do nós e do vós, no interior de uma comunidade humana interactiva.

Suponhamos que essa comunidade é a escola, ou a turma, e que o trabalho se desenvolve com base nos acontecimentos do dia-a-dia, aqui e agora, neste nosso mundo ou noutro ponto do planeta, no incidente ocorrido na turma ou na escola, no livro que se leu, ou na proposta de leitura que foi feita, no filme ou na peça de teatro que se viu, no depoimento vivido ou nos memoráveis do pretérito. Acaso a paz se ensina por meio da palavra doutoral ou da exortação retórica? Acaso não era assim que se procedia em torno da «pátria», da «nação», da «bandeira» ou do «hino»? Com que eficácia?

Os valores internalizam-se através do sujeito e da sua operacionalidade. Se o sujeito activo se não apropria deles, se os não torna parte de si próprio, não se forma o habitus, a «cultura axiológica» que faz o nosso graduamento do real humano.

A construção axiológica de uma «cultura de paz» produz-se na reflexão e no debate, num plano de abertura autêntica ao outro. É consequência de uma dialéctica em que o eu e o nós se confrontam para coexistirem ambos mais além.

Ainda que evitemos, porém, os rituais retóricos das tradições escolares dogmáticas, o diálogo axiológico é apenas um ponto de partida. Uma «cultura de paz» não pode emergir se não aspira a regular as relações dos homens entre si e com o mundo. Isto é, se não assentar numa práxis, na acção transformadora do homem no mundo. Voltando à instituição escolar na sua vocação formativa, como oficina do ser, torna-se indispensável a acção racional.

Para tanto, é preciso transformar a escola. Tradicionalmente, é ela o lugar onde se ouve. Hoje é preciso que seja também um lugar onde se age. Onde colectivos de jovens sejam livres de tomar iniciativas, de as discutir e planear, de as avaliar, e que professores os acompanhem nessa aventura. Concretizando a paz ou a sua defesa, exigindo-a na acção concertada.

Quem olhe muitas das nossas escolas, na sua realidade tangível, poderá duvidar desta utopia ou declarar que a paz bem compreendida começa por nós. Em muitos casos, dir-se-á, mais parece necessária a disciplinação repressiva do que a democracia libertadora. Até agora, eram os alunos as vítimas. Presentemente, em certas escolas, são os professores ou os alunos mais novos os alvos das violências. Praticam-se agressões físicas, vandalizam-se equipamentos ou instalações, a escola é agredida a partir do exterior ou do interior. Neste quadro, como viabilizar uma «cultura de paz», se os alunos transportam para a escola os procedimentos de um mundo que está ausente, pela sua própria marginalidade, da eticidade do comportamento?

O discurso da permissividade e da complacência «compreensiva» apenas deixa de pé o problema da construção de uma «cultura de paz». O caminho necessário e possível passa por outra direcção. É preciso apostar nos valores da democracia e da paz, da autonomia, da liberdade e da responsabilização. A paz é preciso trabalhá-la, no mais distante e no mais próximo. Também nas escolas perigosas, à beira do abismo? À beira do abismo.

Rogério Fernandes