CADERNOS DO ISTA, Nº 9 | |
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INTRODUÇÃO |
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Nunca, como nos nossas dias, se sentiu a necessidade de convivência pacífica entre todos os povos. Por um lado, os modernos meios de comunicação encurtaram as distâncias, globalizaram as notícias e aproximaram os povos, dando asas ao anseio de uma verdadeira aproximação e conjugação de esforços, a nível planetário. Por outro lado, o potencial destruidor das máquinas bélicas dos diversos países tornou mais aguda a necessidade de solucionar, por meios pacíficos, os conflitos existentes, pois a alternativa é a instabilidade, a destruição maciça, e, pela primeira vez na história, a possibilidade de um suicídio geral da própria raça humana. Por isso, a reflexão sobre a paz ocupa lugar de destaque nas agendas internacionais e a busca dos princípios fundamentais do direito internacional revela-se de particular importância, no mundo globalizado e interactivo em que vivemos. A esta luz, a primeira impressão de uma investigação bíblica sobre o tema da paz é, de certo modo, decepcionante, pois não encontramos a ideia de um direito internacional, que sirva de base ao relacionamento entre as nações, conceitos que a humanidade desenvolveu apenas recentemente. Uma análise mais atenta permite, porém, dar-se conta de que a tradição bíblica, condensando um inestimável tesouro de experiência humana e apresentando um projecto de Deus para a humanidade, nos oferece uma oportunidade única de reflexão sobre o tema da paz, não apenas como ausência ou solução de conflitos, mas como caminho de afirmação da justiça, da dignidade e da felicidade das pessoas e das sociedades. Este estudo pretende, de forma resumida, apresentar as principais linhas de reflexão da mensagem bíblica sobre a paz, partindo da tradição judaica e continuando nas escrituras cristãs. |
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1 SHALÔM NA TRADIÇÃO DE ISRAEL |
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1.1 O sentido fundamental de Shalom |
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A primeira constatação a fazer sobre o tema da paz, na tradição de Israel, tem a ver com o vocabulário, a começar pela noção fundamental de shalôm. Este termo não significa primariamente paz, que é apenas um dos sentidos possíveis da palavra. Fundamentalmente, shalôm significa algo de completo, de acabado, de íntegro.
Este conceito básico pode ser aplicado em diversos contextos, dando origem a distintos campos semânticos, que são expressos por termos diferenciados nas nossas línguas. Assim, pelo estado de shalôm de uma pessoa entende-se, antes de mais, a sua saúde física, mas também a harmonia do seu mundo relacional, a prosperidade dos seus bens e negócios, etc. Nesta perspectiva, quando referido a pessoas, o termo shalôm, tem talvez o seu mais próximo equivalente, em português, no conceito de felicidade. Se aplicado a um grupo humano ou a uma sociedade, shalôm inclui certamente a ausência da destruição causada pela guerra, mas igualmente a inexistência de calamidades naturais e, do ponto de vista positivo, segurança em relação aos inimigos, abundância, prosperidade, justiça e afirmação da harmonia social, sob a tutela das instituições legitimamente constituídas. Nesta perspectiva, como veremos adiante, o shalôm até pode não ser incompatível com um conflito armado com outros povos, provendo que este garanta a vitória sobre os inimigos. Essa variedade de contextos, expressa a riqueza e a abrangência do conceito de paz. a) Uma das mais frequentes utilizações do termo verifica-se nas fórmulas de saudação, como shalôm leká - shalôm lêk, ou simplesmente shalôm, que são as formas mais comuns de saudação, quando duas pessoas se encontram. Não se trata simplesmente de indagar sobre a paz de alguém ou de lhe desejar a paz, em sentido psicológico ou espiritual, mas, antes de mais, de se inteirar ou de desejar saúde e bem estar. Aliás a forma de se referir a esta saudação é dita como perguntar pelo shalôm de alguém:
Em todos estes exemplos, o que está em causa é algo de diferente de quanto nós exprimimos com o conceito de paz. Assemelha-se às nossas expressões: Como está?; Está bem?; Como vai de saúde?... Trata-se, pois, do bem-estar da pessoa, que tem por base a saúde e compreende os bens fundamentais da vida. O mesmo sentido se depreende das frases do tipo ir em paz ('alak beshalom / leshalôm) ou vir em paz (shûb beshalom / leshalôm) (2), que representam um augúrio ou esconjuro de qualquer perigo na viagem. Também aqui, o que está em causa é o bem-estar da pessoa na sua globalidade. b) Nas fórmulas de bênção e em expressões semelhantes, o conceito de paz, serve, muitas vezes, para resumir o conjunto dos bens que se invocam ou, de certo modo, se tornam presentes, pela palavra pronunciada sobre alguém:
c) O sentido de plenitude transparece ainda das expressões que se referem à morte como o ir juntar-se, em paz, aos antepassados, no sheol. A ideia expressa é a de se ter completado uma vida longa e feliz e não ter sido vítima de uma morte precoce ou violenta (3). d) Finalmente, podemos constatar ainda o sentido de plenitude a partir do verbo proveniente desta mesma raiz. O verbo (shillem) significa basicamente completar. Daí derivam os significados concretos de pagar, retribuir ou vingar. Subjacente encontra-se a noção de que uma dívida, uma injustiça ou mesmo uma acção meritória, constituem um desequilíbrio ao nível do relacionamento e que é necessário repor a ordem e a equidade. Portanto, basicamente o conceito de paz, na tradição de Israel, não se limita, à simples ausência de guerra, mas tem a ver com a realização da pessoa no conjunto harmónico das variadas dimensões da sua vida. Talvez o conceito que, nas nossas línguas, mais se aproxima desta realidade do shalôm é o de felicidade. E, uma vez que as coisas se colocam a este nível, também o ideal de felicidade pode variar segundo os modelos de pessoa ou de sociedade que se tenham como ideal ou da utopia que se deseja ver realizada. É nessa linha que percorremos, em seguida, alguns quadros do ideal de paz, na tradição de Israel. |
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1.2 A perspectiva sapiencial da paz |
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Em Israel, como em todo o antigo Médio Oriente, o ideal da sabedoria e da sua aprendizagem consistia em conseguir uma vida feliz, tendo em conta todas as dimensões da existência humana. Por isso, os sábios tratavam dos mais variados assuntos, como as questões da alimentação, da vida familiar, dos negócios, do relacionamento social, do cerimonial e do cuidado com os grandes e do relacionamento com o mundo de Deus. Sábia era a pessoa que conseguia harmonizar todas estas dimensões da vida.
Nesta perspectiva, o fruto da sabedoria é a paz, por isso, há que procurar essa medida justa de viver, feita de justiça, de bom senso e sobretudo de fidelidade à Lei e aos seus preceitos, pois ela é o princípio da verdadeira sabedoria.
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1.3 A paz e os mandamentos |
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No contexto sapiencial, a paz é fruto da ordem estabelecida, a nível cósmico, social e religioso. Sábio é o homem que sabe encontrar o seu lugar, à luz das coordenadas fundamentais da vida; ele gozará de paz e de prosperidade.
É neste contexto que se insere também a observância da lei como fonte de felicidade e de vida, num esquema de retribuição desenvolvido sobretudo pela reflexão historico-sapiencial da escola deuteronomista. Bênção ou maldição, abundância ou miséria, felicidade ou desgraça, vida ou morte, que são outros nomes da paz e da frustração, dependem da fidelidade ou ruptura da aliança, da observância ou transgressão dos mandamentos:
O ideal da paz consiste na fiel observância dos mandamentos, pois a manutenção da aliança é garantia de paz e prosperidade, não apenas a nível nacional, mas também individual. Aliás, uma das tarefas da historiografia deuteronomista consistiu precisamente em reler o passado, para verificar como este princípio se verificou efectivamente ao longo da história. A conclusão a que se chegou é que a guerra destruidora que arruinou a terra de Israel e enviou para o exílio toda a gente válida, pondo em risco a própria sobrevivência do povo, teve a sua razão de ser no abandono da aliança. |
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1.4 A paz como dom de Deus |
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Esta ligação entre a paz e a aliança tem a ver com a ideia que Israel tem de Deus e do seu relacionamento com ele. Deus é, não apenas o criador do mundo, mas também o criador de Israel e aquele de quem depende a segurança e o bem-estar do povo. Manter esta ligação umbilical com o Senhor significa permanecer na esfera da vida; afastar-se dele, significa a morte.
A corrente sapiencial de reflexão sobre a Lei une-se, neste aspecto, com a teologia cultual e a ideologia monárquica de Jerusalém, num quadro de exaltação de Deus como origem e garantia da paz para todo o povo. A paz e o bem estar de Israel dependem de Deus, como afirma o Sl 4,9: Em paz me deito e logo adormeço, porque só tu, Senhor, me fazes repousar em segurança. Duas instituições, em particular, são a garantia desta assistência de Deus ao seu povo e a manifestação da estabilidade e segurança: o templo e o sistema cultual, por um lado e a monarquia davídica, por outro. O Sl 29, adaptado da liturgia cananeia, celebra a vitória de Iavé, que domina a natureza, submete os inimigos e é aclamado gloriosamente no templo pela multidão jubilosa. O salmista conclui este vigoroso hino com a exclamação: O Senhor abençoa o seu povo na paz (Sl 29,11). O templo é, deste modo, a garantia da presença efectiva e protectora de Deus no meio do povo, da qual procedem a ordem e a prosperidade. O outro pilar da segurança é a instituição monárquica, solidamente implantada em Jerusalém, a partir da profecia de Natan, em 2Sm 7. O rei é, antes de mais, segundo os salmos reais, o plenipotenciário de Deus para garantir a segurança, a ordem, a justiça e a prosperidade do povo. Um exemplo desta ideologia da paz colocada à sombra da ideologia monárquica, é o Sl 72:
Esta interpretação monárquica é profundamente influenciada pela ideologia real da cultura do Médio Oriente Antigo, que, de uma forma mítica, considerava o rei como filho da divindade e por ela encarregado de velar pela ordem, a justiça e o direito, não apenas na sua terra, mas, de certo modo, em todo o universo. Daí a função bélica do rei, destinada a reprimir a força dos adversários do povo e esmagar o crânio dos inimigos, do mesmo modo que os deuses tinham dominado os monstros primordiais, para conferir ordem à criação. Em Israel, depurada dos vestígios politeístas, esta ideia algo mítica da monarquia, alia-se com a da glorificação do culto, para criar um ideal de paz, baseado na ordem imutável das instituições. Exemplo deste ideal de harmonia é o Sl 122, que, em hebraico, joga com as consoantes de Jerusalém e de shalôm, num autêntico hino à cidade da paz, fundada sobre a fidelidade e a justiça:
Esta é a mais clara visão idílica e, de certo modo, imóvel da paz, que proporciona dividendos de tranquilidade e de progresso, baseados no justo funcionamento das instituições, e particularmente na administração da justiça, como fundamento da fraternidade e da paz. Mas, por outro lado, quando este cenário harmonioso deixa de ser um ideal a atingir e se transforma em ideologia, deixa também de ser algo de mobilizador, para se transformar em sistema dissuasor de qualquer mudança. A paz torna-se ideologia a defender e não já projecto a construir. Os profetas não deixarão de verberar essa perversão da "ideologia da paz". Mas, antes de passarmos a essa denúncia, há ainda uma palavra importante sobre a dimensão política da paz, que se reveste de alguns traços diferentes daqueles com que estamos habituados a pensar. |
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1.5 A paz com os outros povos |
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A tradição bíblica contém também um sentido de shalôm semelhante ao que damos hoje ao termo paz, em oposição à situação de conflito armado. Mas, para entender correctamente esta noção de paz, convém ter presente que a guerra, na mentalidade da maioria dos povos antigos e também de Israel, não era vista da mesma forma que a encaramos nos nossos dias. Os confrontos armados entre os povos eram vistos como algo de inevitável e, na mentalidade comum, a guerra não se opunha forçosamente à paz, desde que se traduzisse em vitória sobre os inimigos. Num mundo em que o recurso às armas era visto como uma forma corrente de conseguir a segurança e o bem-estar do povo, a paz inclui também a supremacia sobre os povos vizinhos. No livro do Deuteronómio, a paz compreende a vitória e a sujeição dos povos rivais ou, até mesmo, o seu aniquilamento:
A ideia de guerra santa encontra-se neste contexto. Como nos outros povos do Médio Oriente, também em Israel se encontra a noção de que a guerra faz parte da paz do povo, pois esta inclui a vitória sobre os inimigos. A própria ideia de Deus se encontra ligada a esta concepção étnica. Deus é o Deus do povo (quando se muda de terra, há que adorar outros deuses - 1Sm 26,19). Um povo vencido representa um deus humilhado por outro deus. Assim, Deus combate por Israel, aniquilando os seus inimigos e garantindo ao seu povo a paz, entendida como tranquilidade perante os inimigos, prosperidade social e económica, baseada na harmonia com a própria natureza. No entanto, o relacionamento com os povos vizinhos tem de ser equacionado. As genealogias bíblicas, datadas de muito cedo e sistematizadas durante o tempo da monarquia, são um modo de conciliar, no contexto de uma árvore genealógica comum, a harmonia e os interesses dos vários grupos étnicos, no contexto da família de Abraão e seus aparentados. Este processo vai mais longe, nas genealogias dos patriarcas anteriores e posteriores ao dilúvio, procurando encontrar um modo de reunir e harmonizar todos os povos da terra, no contexto da grande família humana. |
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1.6 A paz e a denúncia dos profetas |
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Nos profetas pré-exílicos não se encontra, com muita frequência, o conceito teológico de paz. Eles são preponderantemente denunciadores da falsa paz e a sua missão consiste, acima de tudo, em chamar o povo à conversão.
Já anteriormente fizemos notar as razões desta denúncia. O ideal de paz institucional, baseada nos dois pilares da monarquia e do templo, constituem uma meta celebrada e esperada pelos poetas e místicos de Israel. Mas sabemos como, em todos os tempos, este ideal intocável pode ser manipulado por aqueles que beneficiam do status quo e, o que é ainda mais grave, pode servir, ideologicamente como medida de dissuasão e de repressão, contra quem quer que erga a voz para exigir justiça. O que é dramático é que, revestindo-se de uma aura religiosa, estas instituições criam, por um lado, um ambiente anestesiante de segurança, que impede qualquer mudança e, por outro, cercam de carácter sacral as instituições, mesmo que opressoras, ao mesmo tempo que lançam o anátema sobre quem quer que as denuncie. Também Israel conheceu, muitas vezes, esta situação de ditadura; e de ditadura defendida em nome de Deus. É esta paz podre que os profetas denunciam, a começar pelos profetas dessa paz:
A questão dos verdadeiros e falsos profetas, dos profetas da desgraça e da salvação, coloca também um sério problema na interpretação da paz. Na teologia tradicional da eleição, Deus encontra-se sempre do lado do seu eleito, do seu ungido, contra todos os seus rivais e inimigos. Profetas como Isaías, Jeremias e Miqueias põem em causa estas certezas: Deus não se encontra atrelado ao destino de Israel e ao seu shalôm. Bem pelo contrário, frequentemente Deus estará contra Israel e usará mesmo os inimigos deste para punir o próprio povo. Parece que o shalôm de Deus não se identifica com o do povo. A consequência que tiram estes profetas é que a eleição, como garantia de shalôm, não é algo de ritual e de automático, mas tem necessariamente de ter uma componente ética e religiosa. Se este comportamento não existe, as consequências serão dramáticas. São estes profetas que lançam os fundamentos de uma nova ideia de aliança, condicionada pelo próprio agir do povo: a aliança é dom de Deus, mas o seu sucesso para o bem estar de Israel, depende da adesão e correspondência deste. O resultado é que uma existência de acordo com a aliança e os mandamentos conduz à vida e à paz, enquanto que o esquecimento e desrespeito dos mandamentos conduz à destruição e à morte. O esquema de bênçãos e maldições, claramente expresso na teologia deuteronomista, (cf. Dt 27-28), é um claro exemplo das consequências desta visão, que confere uma nova relevância ao comportamento humano na história e à sua responsabilidade na construção da paz e do bem estar. Por outro lado, também esta visão se mostrará limitada: toda a positividade concedida à história e à acção do homem acaba por ter um reflexo ao nível da acção de Deus, que se traduz numa outra forma automática de reagir às atitudes humanas: ao respeito pela Lei corresponde um Deus benevolente e pródigo dos dons da paz, enquanto que a transgressão dos mandamentos depara com uma divindade colérica, vingativa e destruidora. Se é verdade que se valoriza o papel histórico do homem na construção da paz e se confere importância determinante às consequências dos seus actos, não é menos verdade que Deus acaba por ficar reduzido a um maquinismo automático de recompensas e castigos, praticamente sem autonomia própria. Não há dúvida, porém, que estes profetas mostram uma outra vertente da paz de Deus, que não coincide necessariamente com aquilo que vulgarmente os homens chamam de paz. |
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1.7 As profecias messiânicas e a utopia da paz |
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As profecias messiânicas partem da ideologia real de Jerusalém, profundamente influenciada pelo ideário das monarquias circunvizinhas, em que o rei, como descendente da divindade, é visto como o garante da harmonia universal, vista na perspectiva da paz do seu povo.
Um exemplo emblemático da interpretação profética do ideal monárquico é, como vimos, a profecia de Natan (2Sm 7), que fundamenta o oráculo profético de Isaías, durante a crise da guerra siro-efraímita de Is 7,14. O anúncio do nascimento de um menino provavelmente um herdeiro para o trono de Jerusalém não tem em mente um rei futuro, mas antes um rei histórico, segundo a mentalidade que circundava os reis no Médio Oriente. Mas o anúncio do nascimento deste menino e herdeiro abre novas perspectivas de futuro, talhadas segundo o modelo do rei, como garante da segurança e do bem estar do seu povo, numa harmonia que atinge idealmente toda a criação:
Da mesma época, e perfilhando os mesmos ideais monárquicos, é o texto poético de Is 11, que estende o reinado do shalôm, não apenas aos súbditos e às nações vizinhas, mas à totalidade da criação:
No mesmo sentido se exprime a profecia de Miqueias sobre o rei de paz, o que não significa a ausência de guerra, pois esse mesmo rei apascentará a Assíria com a espada e a lança, de modo a garantir segurança e prosperidade ao seu povo:
Durante o exílio, o profeta Ezequiel anuncia o futuro de reconstrução nacional, como obra do enviado do Senhor. Faltam os termos específicos da ideologia monárquica, mas a referência à imagem do pastor torna evidente o cuidado de Deus pelo seu povo, expresso pelo líder por ele enviado: Estabelecerei sobre elas um único pastor, que as apascentará, o meu servo David; será ele que as levará a pastar e lhes servirá de pastor. Eu, o Senhor, serei o seu Deus, e o meu servo David será um príncipe no meio delas. Eu, o Senhor, disse. Com ele farei uma aliança de paz; eliminarei de Israel as feras; habitarão com segurança no deserto e dormirão no meio das florestas. Conduzi-los-ei para as imediações da minha colina e farei cair a chuva no devido tempo: será uma chuva de bênção. As árvores dos campos darão o seu fruto, e a terra os seus produtos. Eles habitarão com segurança no seu país. E saberão que Eu sou o Senhor, quando tiver quebrado as cadeias do seu jugo e os tiver libertado da mão dos que os oprimiam (Ez 34, 23-27).
No entanto, quando se fala de paz nestas profecias, não se entende propriamente um mundo sem guerra, mas, antes de mais, um mundo de bem-estar para Israel. A partir dessa paz e bem-estar, que comporta a submissão dos povos ou a sua derrota, é que se perspectiva a paz e a harmonia universais. Mesmo o mais universalista dos oráculos do livro de Isaías continua centrado sobre a glória de Jerusalém, à qual acorrem os povos:
No exílio, Israel faz uma experiência traumática, mas também purificadora, em relação à sua imagem de Deus. Na linha da denúncia dos profetas pré-exílicos, caem os dogmas da segurança automática, que considerava Deus como aliado incondicional dos sonhos de grandeza de Israel, independentemente de os projectos do povo e dos seus líderes coincidirem ou não com os do Senhor. Paralelamente, privados de limites territoriais fixos e inseridos, como refugiados, no meio de outros povos, os israelitas dão-se conta, de um modo novo, que Deus é realmente o Senhor do Universo, o Deus único e todo poderoso de todas as nações e que a fidelidade de Deus não passa sempre pela grandeza de Israel, do modo que esta é imaginada e desejada pelos seus governantes. Deus é o Senhor do universo e da história e, por isso, pode escolher, como seu servo e executor dos seus desígnios, Ciro o imperador persa, do mesmo modo que designara os reis de Israel. Manifestações desta nova mentalidade são, por exemplo, a ideia clara do monoteísmo e da universalidade do domínio de Deus sobre todo o universo, bem como a sistematização das genealogias de antes e após o dilúvio, que integram, na grande família humana, as nações de toda a terra. Mas, também aqui, não se vislumbra uma ideia verdadeiramente universal de paz, baseada num princípio de direito internacional, que não existia. É difícil de conciliar, mesmo no judaísmo da diáspora, a eleição e a singularidade de Israel, com o universalismo e a integração do crente no meio dos outros povos. No pós-exílio, a experiência da reconstrução conduz a um período de certa euforia, pela constatação da realização das promessas de restauração nacional, expressa em inúmeros textos, como Is 60,15-18 ou Is 66,11-14. Mas o carácter pouco pomposo dos primeiro grupos de retornados, bem como as dificuldades da reconstrução, fazem pensar na paz, não já como vitória sobre os inimigos, mas precisamente como o ideal da renúncia à imposição e à violência. É nesse contexto que surge a profecia de Zacarias sobre o rei pacífico, despojado da cavalgadura de guerra e montado num humilde jumento, afirmando que a paz é possível, sem a guerra e a violência:
Datarão mais ou menos da mesma altura os cânticos do servo de Iavé, cujo paradoxal destino de sofrimento acaba por revelar-se como fonte de paz para o povo. Em lugar de um rei vitorioso, encontramos um homem esmagado pelo sofrimento, mas que entregou a vida pela multidão e, como tal, se tornou fonte de paz:
Estes admiráveis poemas são fruto de uma meditação sobre a vida e os caminhos de Deus, que não encontra resposta satisfatória nos modos de pensar e de agir, então em voga, e que tenta rasgar novas formas de compreensão do drama humano e do seu sonho de paz, segurança e sucesso. Ao nível da tradição de Israel, um tal tipo de propostas não teve um grande sucesso. No entanto, na experiência do povo, passou a ser um lugar obrigatório de passagem, quando o crente se sente confrontado com o desaire, o sofrimento e a morte, a nível individual, ou verifica a incapacidade humana de garantir segurança, a paz e a prosperidade. O sonho de felicidade e de paz não se equaciona necessariamente com a vitória e a imposição sobre os outros, mas pode brotar no meio do próprio drama pessoal e colectivo, atestando a provisoriedade de todas as realizações humanas e apontando o caminho de uma paz que tem por único possível garante, em última análise, o próprio Deus. |
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Conclusão |
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O conceito de shalôm, na tradição de Israel, ultrapassa a nossa ideia de paz, entendida, de modo restritivo, no seu relacionamento com a guerra. A paz representa o conjunto dos bens que podem rodear uma pessoa ou uma sociedade, para que seja feliz e tenha sucesso. As diversas perspectivas da reflexão sublinham precisamente o carácter englobante do conceito de paz, como harmonia consigo próprio, com o mundo, com os outros e com Deus. Não se trata apenas de uma atitude interior do homem, mas a paz concretiza-se exteriormente numa vida de bem-estar, tutelada pela ordem social e pelas instituições que garantem o direito e a justiça.
Mas este quadro não pode ser concebido como algo de estático e imutável, nem manipulado para manter a todo o custo o status quo, à custa da injustiça e da opressão. As invectivas dos profetas denunciam a ideologia da paz, que se pretende apresentar como ditadura, em lugar do dinamismo de construção da paz. Nesse aspecto, a paz não é apresentada como um valor último, nem existe propriamente um tratamento específico do tema da paz. Esta é ponto de chegada de valores como o direito e a justiça, a fidelidade à aliança e a observância dos mandamentos. Temos de reconhecer que não existe, na tradição bíblica de Israel, como em nenhum outro povo da antiguidade, um conceito de paz internacional, entendido como direito das nações. Nesse aspecto, a noção de paz é relativa, na medida em que tem sempre como ponto de partida e de chegada o povo de Israel e não um conceito global de paz das nações. |
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NOTAS | |
1 Esta construção do verbo perguntar com shalôm encontra-se ainda em Jz 18,15; 1Sm 10,4; 1Sm 30,21; 2Sm 8,10; 2Sm 11,7; 1Cr 18,10; Jr 15,5.
2 Cf. Com B.: 1Sm 29,7; 2Sm 3,21.22.23;15,9. Com l.: Ex 4,18; Jz 18,6; 1Sm 1,17; 20,13.42; 2Rs 5,19. 3 Cf. Gn 15,15; Jr 34,5; 1Rs 2,6; 2Rs 22,20; 2Cr 34,28. |
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