CADERNOS DO ISTA, Nº 9





  • A RECEPÇÃO DO VATICANO II
    E OS CONFLITOS NA IGREJA
    JOSÉ NUNES





I- Introdução

Este tema é muito extenso e diversificado. Dum modo geral, refere-se ao post-concílio Vat.II, a estes 35 anos da vida da Igreja, mais concretamente à aplicação dos textos e das orientações do Concílio - o que, em linguagem técnica, se designa ‘recepção’. Depois, há na explicitação do tema a questão dos conflitos na Igreja. A conflitividade é evidente, é certo, mas é apenas um dos aspectos da ‘recepção’, da vida da Igreja no post-concílio (tem havido muitas coisas bonitas e pouco conflitivas na vida da Igreja: mais produção teológica, independentemente dos seus conteúdos; renovação litúrgica; proliferação de grupos e movimentos com a sua espiritualidade própria, maior divulgação da Bíblia; etc, etc).

Espero, pois, não defraudar ninguém ao escolher apenas falar da novidade do Vat.II e dos conflitos na Igreja - sua existência e critérios de discernimento na conflitividade.

II - A revolução do Vaticano II

1. «O concílio Vat.II foi uma revolução no sentido rigoroso da palavra. Foi convocado por João XXIII a fim de promover um processo de ‘aggiornamento’, um actualizar-se por parte da Igreja. Mas a actualização converteu-se em revolução, mudança profunda, que deu lugar à aparição de uma nova consciência de Igreja (...) A doutrina eclesiológica do Concílio não é um mero ‘aggiornamento’, actualização de umas realidades envelhecidas ou alguns pontos de vista. O ‘aggiornamento’ é reparação, renovação. A doutrina conciliar é revolução, mudança radical. Por isso mesmo, por exemplo, deixou de pensar-se numa reforma do velho Código de Direito Canónico. Depois do Concílio, Paulo VI compreendeu que era necessário fazer um novo Código. O velho era incapaz de conter o vinho novo. Esta realidade é necessário tê-la em conta para poder entender o post-concílio e a difícil história da recepção conciliar» (1).

2. Em que consistiu, afinal, essa revolução dos textos conciliares? Sobretudo em dois grandes aspectos, isto é, podemos resumir essa grande novidade em dois grandes pólos: as relações internas na Igreja e a compreensão da relação Igreja-Mundo.

a) As relações internas na Igreja

- o Concílio estabelece uma distinção clara entre Reino de Deus e Igreja. Sendo assim, a Igreja é passível de mudança e crítica, porque se lhe sobrepõe uma realidade superior, absoluta: o Reino.

- ligada a esta doutrina, aquela que o Concílio estabelece àcerca da Igreja como Povo de Deus: a Igreja não ´é uma realidade eterna, puramente divina, mas um povo com uma caminhada histórica. Não é ‘sociedade perfeita’, mas sim realidade sujeita às crises históricas e, portanto, passível de transformações, passível de configurações históricas sempre novas, consoante os tempos, lugares, povos e culturas.

- o Concílio traz de novo para a ribalta a importância da colegialidade, dentro duma eclesiologia de comunhão. O papel dos bispos, à frente duma Igreja local, é reforçado, como contraponto à concepção monárquica da Igreja piramidal dependente de um único bispo - o de Roma, o Papa. A colegialidade é, pois, fonte de diversidade, pluralismo, algumas vezes até tensões.

- finalmente, o Concílio propõe para a vida da Igreja a perspectiva do ‘sacerdócio comum dos fiéis’, também dentro duma eclesiologia da comunhão. Os fiéis são todos participantes activos na vida da Igreja e não são sujeitos passivos e apenas obedientes da autoridade hierárquica. Atentemos na perspectiva anterior ao concílio Vat.II, exemplarmente expressa por Pio X, em 1906, na encíclica ‘Vehementer Nos’: «A Igreja é o Corpo Místico de Cristo, regido por pastores e doutores: sociedade, por conseguinte, humana, em cujo seio existem chefes com pleno e perfeito poder para governar, ensinar e julgar. Donde resulta que esta sociedade é essencialmente desigual, quer dizer, uma sociedade composta por distintas categorias de pessoas: os pastores e o rebanho, os que têm um posto nos diferentes graus da hierarquia e a multidão dos fiéis. E as categorias são de tal modo distintas umas das outras, que só na pastoral residem a autoridade e o direito necessários para mover os membros para o fim dessa sociedade, enquanto que a multidão não tem outro dever senão deixar-se conduzir e, como dócil rebanho, seguir os seus pastores» (2).

Facilmente se compreende que esta perspectiva do Vat.II, bela e verdadeiramente neo-testamentária, é também fonte de menor uniformidade e obediência cega - o que poderá trazer alguma conflitividade ao cotidiano eclesial (3).

b) Compreensão da relação Igreja- Mundo

O concílio Vat.II supera totalmente duas formas anteriores, vigentes durante séculos, cada uma delas, de compreensão dessa relação: a Igreja viveu muito tempo na rejeição do mundo, na fuga do mundo, na crítica e luta contra o mundo - pensando-se ela o princípio espiritual e o mundo o princípio material, pecaminoso, da perdição; por outro lado, noutras circunstâncias - sobretudo no regime de cristandade (de que as recentes concordatas foram e são um resquício) - a Igreja viveu identificada com o mundo e procurando comandar toda a vida social.

Se bem repararmos, nem num caso nem no outro a Igreja é questionada pelo mundo, este não é um princípio de crise, de desafio à Igreja: na oposição, a Igreja não se deixa afectar pelo mundo, porque o rejeita liminarmente; na identificação, a Igreja apenas se contempla a si mesma ao contemplar o mundo.

O Vaticano II, sobretudo na Lumen Gentium e na Gaudium et Spes, propõe uma Igreja incarnada no mundo, no diálogo com o mundo e ao serviço do mundo. Vejamos duas afirmações paradigmáticas: «As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo»(G.S.1); «Que os fiéis vivam em estreita união com os outros homens do seu tempo, e que se esforcem por compreender a fundo os seus modos de pensar e de sentir, expressos na cultura. Que conciliem os conhecimentos das novas ciência e teorias e das mais recentes invenções com os costumes e o ensinamento da doutrina cristã, para que o sentimento religioso e a rectidão moral avancem neles a par do conhecimento científico e dos progressos diários da técnica; assim poderão apreciar e interpretar todas as coisas com uma sensibilidade autenticamente cristã» (G.S.62).

Ora, como é evidente, nesta perspectiva o ‘mundo’, isto é, as filosofias, as religiões, as culturas, as artes, as ciências, etc, são uma constante interpelação à Igreja, esta perde algumas seguranças e, claro, isso é factor de alguma desestabilização, de discussão, de tensão, de conflito.

III - As dificuldades do post-concílio

Com toda esta novidade, é absolutamente normal que a recepção, ou a aplicação do Concílio, seja tanto um processo longo (não imediato), como também um processo com resistências e conflitos.

1. Um processo longo - São significativas as palavras de Paulo VI a este respeito, em duas audiências gerais, logo a seguir à clausura do Concílio. Ele estava bem consciente do ‘demorado’ que iria ser a aplicação do texto e espírito do Vat.II.

a) «Poderá alguém pensar que já se falou muito do Concílio. Não será altura de acabar com o assunto? Não podemos prescindir do Concílio. E porquê? Pela simples razão de que o Concílio, pela sua natureza, é um acontecimento que deve durar. Se na realidade foi um acontecimento histórico, importante, e em muitos aspectos decisivo para a vida da Igreja, é evidente que o encontraremos no nosso caminhar durante largo tempo; e está bem que seja assim» 84);

b) «A aplicação prática das disposições conciliares não é um trabalho simples e fácil; exige estudo, clareza, autoridade, tempo, especialmente ali onde há que introduzir alguma reforma ou alguma inovação nesse organismo tão tradicional, tão completo, tão ordenado e tão sensível como é a Igreja católica. O Concílio traçou normas às que se deve obediência. Mas outras vezes enunciou princípios, critérios, valores, aos quais é necessário dar uma concretização com leis e instruções novas, com orgãos e instituições novos, com movimentos espirituais, culturais, morais, organizativos, e que comprometerão muitas pessoas, muitas fadigas e quiçá muitos anos» (5).

2. Resistências à novidade conciliar - Também é normal que, diante de tanta novidade, não só se trate de um processo longo mas com vários tipos de resistências.

Em primeiro lugar, há que contar com uma velha consciência de Igreja, arreigada na mentalidade de muitos, que conduziu durante séculos a normas de vida individualistas e clericais. A aceitação do Concílio, nomeadamente na sua visão incarnacional e corresponsável de Igreja, choca frontalmente com tal mentalidade e normas de vida.

Em segundo lugar, há que contar com muitas instituições tradicionais, nascidas duma visão de Igreja muito diferente da do Vat.II, e que não foram feitas para viver em eclesiologia de comunhão. Então, resistem a dar lugar a novas estruturas institucionais que, num prazo mais ou menos largo, as destruiriam por via de inutilidade (veja-se o caso das grandes paróquias; veja-se o caso da escolha dos bispos; etc).

A estas dificuldades naturais juntam-se aquelas inerentes a todos os processos inovadores, em que a busca de novos caminhos tem de passar por experiências, aprendizagem, retificações e muita perseverança - diante das soluções tradicionais que oferecem a tranquilidade e a resposta pronta solidificada durante séculos.

Além disso, é necessário ter consciência de que assumir responsabilidades partilhadas - como o propõe o Vat.II - nem sempre é tarefa grata. Exige trabalho, generosidade, disponibilidade. Neste aspecto, não é só o clero que resiste a novas práticas eclesiais: muitos cristãos leigos preferem delegar no clero toda a responsabilidade do trabalho eclesial, justificando-se até com a afirmação de que «os padres é que sabem disso».

De tudo isto resulta um perigo para a Igreja de hoje: não propriamente o de recusar a doutrina conciliar (...há o caso Lefebvre, mas rejeitar o Concílio é coisa demasiado grave...); mas encontrar soluções superficiais que pareçam incarnar o espírito e letra do Concílio quando, afinal, mais não fazem do que manter as estruturas de fundo na mesma. Seriam estruturas de exposição, para serem contempladas, mas sem importância efectiva na vida da Igreja. E é justamente aqui que se jogam, a meu ver, a maior parte dos actuais conflitos na Igreja, de que darei alguns exemplos em seguida.

IV - A conflitividade na Igreja

1. Hoje, paralelamente a uma Igreja apesar de tudo mais descentralizada, a uma recuperação da Bíblia para a vida dos fiéis, ao nascimento de grupos e movimentos inovadores, a um esforço ecuménico e de diálogo inter-religioso, a uma formação teológica mais generalizada, a uma liturgia mais participada, etc, etc - e estas são realmente luzes do nosso tempo - há ainda conflitos/tensões que põem a nu, quase sempre, algumas sombras da realidade eclesial.

Refiro-me, claro, a questões como estas: falta de liberdade na investigação teológica (ou, se quiserem, na sua divulgação...), papel ainda secundário da mulher em muitos aspectos, pouca significação efectiva dos Sínodos dos Bispos face ao poder do Papa, intromissão do Vaticano na nomeação de bispos e consequente constituição das Conferências Episcopais, dificuldade em aceitar o pluralismo da inculturação profunda, manutenção duma determinada e única configuração histórica (a actual) do ministério ordenado, algumas concepções da ética sexual, etc, etc.

2. Todas estas questões, geradoras de discussão, de tensão, agudizam-se e prolongam-se ainda mais porque, na sua quase totalidade, não conduzem a cismas ou heresias: os que reivindicam inovações nestes campos da realidade eclesial não querem, e de facto não formam, igrejas paralelas! Mantêm-se fiéis e, no caso de muitos teólogos críticos, mantêm-se obedientes à autoridade hierárquica, mesmo quando são objecto de suspensões de leccionação, publicação ou, até, objecto de uma ordem de silêncio. É o que nos lembra J.Sobrino: «Talvez o mais interessante e realmente novo é que não parece que daí vá surgir um cisma ou heresia, no sentido tradicional da palavra, pois os cristãos de mentalidade avançada pretendem permanecer na Igreja. Se isto é assim, o conflito está aí e estará por largo tempo, já que ambas concepções pretendem ser globalizantes da existência eclesial e, portanto, vão ser antagónicas, ao menos na prática» (6).

3. Contudo, se olharmos para a história da Igreja, a começar logo nas suas primeiras gerações – retratadas no N.T. -, a conflitividade é um dado permanente não só nas comunidades humanas, em geral, como nas próprias comunidades cristãs em particular. A história da Igreja pode, assim, ajudar a compreender e relativizar os actuais conflitos existentes na realidade eclesial.

a)N.T. – Muitos e variados conflitos nos aparecem nos textos do Novo Testamento. Por exemplo, já nos Evangelhos dez dos Apóstolos insurgem-se contra os outros dois àcerca de posições de chefia ou poder (Mt.20,20-28); Pedro enfrenta-se à revolta da comunidade de Jerusalém (Act.11,1-18); Paulo enfrenta Pedro e Tiago, defendendo a liberdade face à Lei de Moisés, isto é, aos costumes judaicos (Act.15,1-29; Gal.2,1-14); Paulo discute e separa-se de Barnabé por causa de diferentes estratégias apostólicas (Act.15,35-41); dois grupos de viúvas têm atendimento diferente, sendo um deles discriminado, por razões étnicas, na primitiva comunidade de Jerusalém (Act.6,1-7); nesta mesma comunidade nem todos eram leais e transparentes na partilha de bens (Act.5,1-11); etc, etc.

b)Se olharmos para os primeiros séculos da vida da Igreja, observamos facilmente que, paralelamente a heresias e cismas, houve conflitos internos de grandes dimensões mas que não acabaram necessariamente na separação. A comunhão manteve-se porque respeitou o pluralismo. Apontam-se aqui apenas três exemplos (7):

1º/ No final do sec. II, a Igreja dáse conta de que a celebração da Páscoa era feita em calendários diferentes no Ocidente e no Oriente: no Ocidente, no dia da Ressurreição; no Oriente, seguindo outra tradição, no décimo quarto dia depois da lua cheia do mês em que os judeus matavam o cordeiro da Páscoa. Diz Eusébio de Cesareia (História da Igreja V,23-24) que por causa disto «se criou naquele tempo uma briga séria». O bispo de Roma, Vítor, queria impor a sua visão e prática a todas as comunidades da Ásia; estas, defendidas pelos seus bispos, opunham-se terminantemente. O representante do episcopado da Ásia, Polícrates, remete até uma carta à Igreja de Roma, argumentando que conhece bem a tradição que lhe vem do apóstolo S.João, e que o Papa não deve ameaçar. Escreve Polícrates: «Já tenho sessenta e cinco anos no Senhor e encontrei irmãos de todos os lados e estudei a Bíblia toda. E não me deixo assustar. Pois há maiores do que eu que disseram: é preciso obedecer antes a Deus do que aos homens». O papa Vítor lê a carta e pensa na excomunhão daqueles que assim lhe desobedecem. Mas alguns bispos do Ocidente e sobretudo Ireneu conseguem convencê-lo de que não há razão para isso: a comunhão pode ser vivida dentro desse pluralismo e essa era até a prática dos anteriores bispos de Roma (Aniceto, Pio, Higino, Telésforo, Xisto).

2º/ A meio do sec. III, durante duras perseguições aos cristãos, muitos crentes apostasiam, para não morrerem. Quando as perseguições abrandam, muitos querem voltar à Igreja. No Norte de África esta foi uma realidade muito comum. Em Cartago, vive Cipriano, bispo dessa cidade. Ele é rigorista, mas ao fim de algum tempo aceita a re-entrada dos apóstatas na Igreja. Discute-se então se é necessário novo baptismo ou se basta uma imposição das mãos. Também aí houve divergências entre as Igrejas. O problema maior, contudo, que surgiu, foi o da recusa do clero e do povo das Igrejas do Norte de África em aceitar que bispos apóstatas voltem à Igreja como bispos. Os papas, os bispos de Roma Cornélio e Estêvão, têm outra opinião: pensam que devem continuar a ser bispos. Roma já quer excomungar. Mas estes conflitos não acabaram até à morte quer de Cornélio e estêvão, em Roma, quer de Cipriano, em Cartago. A pluralidade de opiniões e práticas manteve-se, pelo menos durante mais algum tempo.

3º/ Na segunda metade do sec. IV, já depois do Concílio de Niceia – tão importante para o estabelecimento do nosso Credo – surge um novo e grande conflito na Igreja. Agora já não sobre uma questão litúrgica (primeiro conflito de que falámos), nem sobre uma questão de disciplina sacramental (segundo conflito que constatámos): trata-se duma verdadeira discussão teológica sobre a pessoa divina do Espírito Santo. Estamos bem no dogma, no nuclear da fé. É o Espírito santo uma pessoa divina – como o Pai e o Filho? É o Espírito Santo da mesma substância, da mesma essência que o Pai e o Filho? É gerado como o Filho? A discussão entre muitos bispos, nomeadamente entre Basílio (bispo de Cesareia, na Capadócia) e Dâmaso (bispo de Roma, Papa), é acesa. Há ameaças de excomunhão, há obrigação ameaçadora de assinar declarações oficiais, etc. Mas o Papa acaba por perceber que há outras intrigas pelo meio e, sobretudo, há questões de línguas diferentes, difíceis traduções de conceitos (entre o grego e o latim) e, então, decide calar-se. É essa sabedoria do silêncio de Dâmaso que salva a paz e a comunhão.

V- Critérios de discernimento da conflitividade na Igreja

O Concílio Vaticano II trouxe grandes novidades. Essa situação é geradora de instabilidades, de conflitos – aliás como aconteceu muitas vezes ao longo da vida da Igreja. Como olhar para este conflitos, como apreciá-los, como discernir/julgar essa conflitividade? Penso que há alguns critérios importantes que podem ser lembrados sobre o assunto, se possível combinados até entre si:

1/ Desdramatizar – Em primeiro lugar, é saudável não dramatizar nenhum conflito. É algo de normal entre as pessoas e entre os cristãos. Pode até ser algo de positivo: se entendermos os conflitos como fase importante na busca da verdade, o conflito será então o necessário parto para que surja vida nova. Além disso, sabemos por experiência da história, que muitas vezes «o profeta é canonizado depois da sua morte» (8), ele que durante a sua vida era considerado suspeito. Porquê, então, sacrificar, excomungar aqueles que com a sua opinião ou a sua prática são motivo de conflito? Profecia e instituição hão-de estar muitas vezes em dialética conflitiva, tal e qual como Reino de Deus e Igreja se encontram em tensão.Vem à lembrança, aqui, uma máxima do N.T.: «quem não é contra nós é por nós» (Mc.9,40).

2/ Busca de comunhão e não afirmação de autoritarismo – A experiência mostra também que a autoridade eclesiástica é frequentemente um dos pólos do conflito. Como aceitar que seja também juíz? A busca da comunhão, a todo o preço, por todas as partes envolvidas no conflito, o respeito pela sensibilidade e opinião de todos, uma certa democratização da Igreja – aceitando até que muitos dos votos de estruturas eclesiais não sejam meramente consultivos mas deliberativos (casos dos Conselhos pastorais Paroquiais, dos Sínodos dos Bispos, etc) – , enfim, são tudo notas que poderão evitar que a evolução dos conflitos siga na direcção da heresia e/ou da excomunhão, são meio de impedir o autoritarismo na Igreja (9).

3/ O N.T. e a história concreta – Um critério importante para discernir em caso de conflito é a própria história. De facto, «o cristianismo não é uma verdade que aparece há dois milénios para ser depois aplicada ao longo da história, mas funda-se na história concreta de Jesus de Nazaré, que por sua vez desencadeia uma história. O círculo hermenêutico consiste em que Jesus desencadeia uma história e que na história desencadeada se possa remontar a Jesus» (10). Com isto privamo-nos dum critério claro e unívoco para discernir em caso de conflito, mas acentuamos a dialética entre revelação e história, entre fé e praxis cristã. O N.T. é assim um primeiro polo de discernimento; dele se depreendem critérios como estes: a Igreja é para o Reino, há estruturas de pecado no mundo e a Igreja há-de ser aí sinal de amor e justiça, os pobres hão-de ser o destinatário priveligiado da sua missão (Mt.25). A partir daí, desses critérios neo-testamentários, os conflitos na igreja devem ser apreciados historicamente, isto é, contextualmente situados: a Igreja vai construindo mais verdade, a Igreja vai-se aproximando do Reino anunciado por Jesus, mesmo que mude as suas orientações, as suas leis e estruturas dum momento para o outro? «A unidade, a superação dos conflitos, será sempre um dom escatológico. Na história deve buscar-se a unidade, mas não baseada na uniformidade imposta nem na fé expressada genericamente, mas sim na missão e na praxis de Jesus» (11). Vem aqui à lembrança outra máxima neo-testamentária: «deixai-os. Se o seu projecto ou a sua obra provêm de homens, por si mesmos se destruirão; mas se provierem de Deus, não podereis desfazê-los»(Act.5,38-39).

4/ A liberdade – Este critério para os casos de conflito prende-se não só com a essência da Igreja mas também com a sua credibilidade no mundo actual, mundo de um pluralismo quase sem limites e para quem qualquer falta de liberdade é intolerável. S.Paulo lutou contra tudo e contra todos para defender a liberdade de cada indivíduo e de cada grupo particular face às intenções totalitárias e judaízantes do cristianismo primitivo. Essa liberdade inerente ao ser mesmo da Igreja será a melhor forma de salvaguardar a sua credibilidade face ao mundo e será antídoto para o resolver dos conflitos pelo abafar da voz de quem quer que seja.«A confiança na actividade do Espírito Santo confere a cada membro da Igreja a verdadeira liberdade» (12) , liberdade capaz de libertar os ministros da Igreja dum excessivo complexo de responsabilidade e, simultaneamente, capaz de libertar os fiéis do anti-clericalismo primário e da desconfiança permanente da hierarquia.

A liberdade, como critério de discernimento no caso de conflitos, deve ser entendida como liberdade na liturgia (um só Deus, um só Senhor, uma só eucaristia; mas ritos, línguas, formas de piedade, cânticos, estilos de arte diferentes); liberdade na disciplina (um só Senhor, um só Deus, uma só Igreja, um só ministério superior; mas estruturas, legislações, tradições, administrações, costumes diferentes); liberdade na teologia (um só Deus, um só Senhor, um só Evangelho, uma só fé; mas diferentes teologias, diferentes sistemas, estilos de pensamento, terminologias, escolas, tradições, universidades, teólogos diferentes). De facto, quantos conflitos não se resolveriam se aplicássemos uma outra máxima, esta de João XXIII: «no que for necessário, a unidade; no que for duvidoso, a liberdade; em todas as coisas, a caridade».
José Nunes

NOTAS
(1) J.Losada, El posconcilio: el problema de la transformación de la Iglesia, Misión Abierta vol.78(1985),pp.106-110.

(2) Actes S.S. Pie X, Paris, Edit. des ‘Questions Actuelles, t.2, 133-135.

(3)Toda a novidade do Vat.II foi muito bem resumida neste pontos que aqui se destacaram pelo próprio J.Paulo II, na introdução ao Novo Código de Direito Canónico, carta intitulada ‘Sacrae disciplinae leges’.

(4) Os.Rom., 16-12-1965.

(5) Audiência de Agosto 1966; cfr AAS 58 (1966), 779s.

(6) J.Sobrino, La conflitividad dentro de la Iglesia, Selecciones de Teología 65(1978), p.46

(7) Cfr L. Meulemberg, A discussão aberta na Igreja antiga, REB, vol.45, fasc.177 (1985), pp.16-31.

(8) J.Sobrino, o.c., p.50.

(9) Cfr. J.Losada, o.c., p.112.

(10) J.Sobrino, o.c., p.52.

(11) Ibidem, p.53.

(12) H.Kung, A liberdade dentro da Igreja, 7º Encontro de Assinantes da Rev.Concilium, Pró-Manuscrito.