O DIÁLOGO INTERCULTURAL
LUÍS DE FRANÇA &
ROMUALDA FERNANDES





CADERNOS DO ISTA, Nº 9

"Não existe maior tristeza no mundo que a perda da terra natal"
Eurípides 431 a.c.

...

Propusemo-nos reflectir sobre a implementação de uma cultura da paz e da não violência . Esse trabalho, construir uma cultura da paz, desenvolve-se em diversas vertentes. Uma delas é a da implementação de uma cultura de diálogo entre os diferentes.

Na reflexão que foi proposta vamos dar atenção ao ponto 4 do "Manifesto 2000" que se descreve assim: "Ouvir para compreender- Defender a liberdade de expressão e a diversidade cultural, privilegiando sempre a capacidade de ouvir e de dialogar sem ceder ao fanatismo, à maledicência e à rejeição do próximo".

Transmigrações - os anos 90

A História sempre conheceu deslocações de população pelas mais diversas razões. Os anos 90, e após o desmantelamento dos blocos políticos antagonistas que dominavam a cena política mundial, o número de deslocados e de populações em migração aumentaram exponencialmente. Contrariando as expectativas de paz e de concórdia que se geraram com a "festa", que foi a queda do muro de Berlim, o mundo conta hoje com cerca de 50 milhões de homens, mulheres e crianças constrangidos a fugir das suas regiões de origem. Uma consulta ao ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados - permite um flash sobre a situação actual.

Segundo a convenção de 1951 das Nações Unidas, um refugiado é uma pessoa que "receando, com motivo, que é perseguida por causa da sua raça, religião, nacionalidade, pertença a um certo grupo social ou por causa das suas opiniões, se encontra fora do país de que é nacional e que não pode ou, por causa desse receio, não quer reclamar a protecção desse país..." Criada em dezembro de 1950 pela resolução 428 da Assembleia geral da ONU, o Alto Comissariado das nações Unidas para os refugiados tem por mandato proteger os refugiados e procurar soluções duradouras para a sua situação. Desde então, o ACNUR interveio a favor de populações que se encontram fora dos seus países na sequência das perseguições, conflitos armados, violência generalizada, agressão estrangeira ou por outras circunstâncias com impactos graves na ordem pública e que têm necessidade de protecção internacional. As pessoas hoje dependentes do ACNUR são: refugiados (pessoas que estão no exterior dos seus países de origem e foram reconhecidas como refugiadas); os requerentes de asilo ( pessoas que deixaram os seus países de origem, pediram o estatuto de refugiados noutro país e esperam uma decisão sobre os seus casos) ; repatriados (pessoas que regressaram aos seus países de origem e que o ACNUR ajuda a reinstalar na sociedade); deslocados (pessoas constrangidas à fuga dentro dos próprios países).

Definidas as categorias que se usam para assinalar as populações em transmigração façamos uma prospecção na realidade, para constatar que existem hoje no mundo 15 milhões de refugiados; 30 milhões de deslocados, 3 milhões de repatriados e cerca de 1,3 milhões de requerentes de asilo. Os dados aqui referidos são anteriores à crise do Kosovo, pelo que ainda teríamos de falar de mais alguns milhares, sobretudo dos apátridas : populações vitimas da guerra na Croácia e na Bósnia-Herzegovina, populações de outros países da ex-URSS reinstaladas na Federação Russa.

Na Europa, onde as nossas responsabilidades estão mais próximas, contam-se, em fins de 1998, cerca de 3 milhões de refugiados, mais de um milhão de deslocados e 300 mil repatriados.

Vale a pena fazer aqui uma reflexão lateral ao problema dos refugiados. A Europa, que se queixa por vezes destes 5 milhões referidos acima referidos, recebe todos os anos mais de 350 milhões de turistas. Estas populações, tão diferentes, aliás, nas suas origens são benvidas e sabemos porquê. Que o digam os que vivem da indústria do turismo.

Ou seja, nós recebemos bem os que nos trazem dinheiro e estão de passagem, mas como é natural somos duros e afastamos aqueles que à partida só trazem problemas. Estes sentimentos traduzem a incapacidade das sociedades, mesmo as mais avançadas, em lidarem com problemas sociais desta magnitude.

Em Portugal, nos últimos anos, e na medida em que o nosso país passou a ser um país que atrai refugiados e deslocados, também foi criado um organismo para se ocupar de modo oficial destes problemas. Trata-se do ACIME - Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas.

As novas exigências que a Portugal se colocam como País de imigração

Com o final do império colonial português as relações entre Portugal e as ex-colonias modificaram-se fundamentalmente com o nascimento de novos Estados independentes. Contudo os laços de políticas económicas mantiveram-se e as trocas humanas prosseguiram.

Começaram a chegar, vindos dos PALOPS um grande fluxo de pessoas à procura de melhores condições de vida , à semelhança do que aconteceu com os portugueses, com as sucessivas e diversificadas vagas de emigração. A estes acresce nos últimos anos uma forte pressão migratória vinda dos países do Leste europeu.

A maior parte desses imigrantes chegou apenas com um simples visto de turismo ou de curta duração. Uma vez terminado o prazo da sua estada, permaneciam em território nacional exercendo, naturalmente, as suas actividades profissionais. Esta situação fez proliferar um vasto e rentável mercado de trabalho paralelo fora do sistema legal.

Daí resulta que a maioria dos trabalhadores imigrantes vivesse numa situação de exclusão social sofrendo e acarretando graves problemas sociais cuja solução se tornava cada vez mais urgente.
 

Direitos e Garantias dos cidadãos estrangeiros residentes em Portugal
e aperfeiçoamento das condições de exercício desses direitos

É neste quadro que surge o Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas instituído pelo Decreto-Lei n.º 3-A de 26 de Janeiro, com o objectivo de contribuir designadamente, para a melhoria das condições de vida dos imigrantes em Portugal, visando promover a integração económica e social dos grupos mais vulneráveis, incluindo os imigrantes e as minorias étnicas.

Foi nomeado para esse cargo o Dr. José leitão que já era militante activo desta causa, desde sempre, e que tem dado um grande contributo em prol da integração na sociedade, dos trabalhadores africanos, no respeito pela sua identidade e cultura de origem. Algumas das primeiras medidas a registar foram:

Regularização extraordinária da situação dos imigrantes clandestinos, estabelecida pela Lei n.º 17/96 de 24 de Maio; (mais de 35000 pessoas em situação irregular puderam legalizar a sua situação)

Alteração da Lei n.º 97/77, de 17 de Março, que regulava o trabalho de estrangeiros de que se pode realçar a eliminação das limitações quantitativas que impunha. Com a nova lei de trabalho de estrangeiros n.º 20/98, de 12 de Maio, um empregador contrata livremente qualquer trabalhador legalmente residente em Portugal, independentemente da sua nacionalidade.

Regulamentação da entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional pelo Decreto-Lei 244/98 de 8 de Agosto, do qual se ressalta, entre outros o direito de reagrupamento familiar.

Criação do Conselho Consultivo para os Assuntos da Imigração pelo Decreto-Lei nº. 39/98 de 27 de Fevereiro, com o objectivo de assegurar a participação e a colaboração das associações representativas dos imigrantes, dos parceiros sociais e das instituições de solidariedade social na definição das políticas de integração social e de combate à exclusão.

É estabelecido o regime jurídico das Associações representativas dos imigrantes e seus descendentes, pela lei 115/99 de 3 de Agosto.

Proíbe-se a discriminação no exercício de direitos por motivos baseados na raça, cor, nacionalidade ou origem étnica. (Lei n.º 134/99 de 8 de Agosto).  

Com este conjunto de normas encontra-se definido o estatuto jurídico da condição de estrangeiros residentes legalmente em Portugal. Na elaboração de todas essas legislações relativas à imigração teve-se sempre em conta, como não podia deixar de ser, o princípio da equiparação de direitos entre nacionais e estrangeiros plasmado no art.º 15º da CRP.

Mas não bastam medidas legislativas para que tudo fique arrumado. São necessárias iniciativas que contribuam para a efectivação dessas medidas, e uma política que favoreça a inclusão social.

Todos sabemos que nos debates públicos os imigrantes e as minorias étnicas são frequentemente descritos como grupos que causam problemas ou que têm problemas. Daí a importância, de uma política que vise a inserção, e que faça com que a sociedade em geral, aprenda a apreciar a utilidade das contribuições desses grupos para responder aos desafios globais que se lhe põem.

Isto equivale em realçar os aspectos positivos dos desenvolvimentos ligados à inclusão dos imigrantes e minorias étnicas, aumentando assim a sua aceitação pelo resto da comunidade em geral.  

Neste campo afirmou o Dr. José leitão numa conferência :"A imigração tem sido uma mais valia para a economia nacional. O ritmo de desenvolvimento do País teria sido profundamente mais reduzido sem a presença de milhares de imigrantes, que têm tido um papel decisivo em sectores como as obras públicas, sem os quais o Centro Cultural de Belém, a EXPO, as auto-estradas, a ponte Vasco da Gama, mas também obras particulares como a Caixa Geral de Depósitos ou o Centro Colombo não teriam sido possíveis."

Apesar disso devemos reconhecer que a exclusão social é uma realidade no dia a dia dos imigrantes. Sendo este fenómeno, de modo geral, uma realidade multidimensional, torna-se necessário o delineamento de programas de acção também multidimensional. Com este objectivo o ACIME colabora com diversas entidades, no exercício das suas funções, no quadro de vários protocolos com ela assinados.

Em todos os países do mundo e agora também na Europa a presença cada vez mais frequente de populações diferentes sobre muitos pontos de vista obrigadas a conviver nos mesmos espaços territoriais tem provocado a reflexão quer dos sociólogos quer dos legistas. Numa primeira fase o mais importante é a reformulação e adequação das legislações nacionais e, no nosso caso, legislação europeia, para que estas melhorem e tornem viável a convivência sã de populações nos mesmos espaços. Mas nesta área, diferentes também são as concepções. Existem os países que defendem a pertença pelo direito de sangue, outros pela terra onde se nasce, e isto para não falar de exigências mais radicais de outras culturas como a mulçulmana.

Um grande trabalho a nível do direito e da harmonização das legislações continua e continuará a ser feito na Europa e particularmente na União Europeia nos próximos anos. Em Portugal, uma parte desse trabalho, e sobretudo a vigilância sobre a sua implementação, caberá ao ACIME que nos últimos anos tem sido incansável na promoção dos direitos das minorias.

Diálogo Cultural

Esta é a expressão genérica com a qual podemos designar toda a problemática que a convivência de populações diferentes provoca. Este diálogo supõe à partida uma atitude positiva face à diferença. Ora esse acolhimento da diferença como factor de progresso da humanidade talvez ainda não seja tão universal como se possa pensar. Alguns pensadores como Durkheim e Jean Jacques Rousseau defenderam sempre o Universalismo Cultural, ou seja uma ideologia do nivelamento cultural que postula o desaparecimento de entidades culturais distintas e perspectivam o advento duma cultura mundial. Apoiada nas verdades da racionalidade científica e técnica, esta visão da cultura conduziu ao etnocentrismo e à massificação cultural redutora das diferenças. Sabemos os resultados de algumas destas concretizações históricas quando levadas ao extremo, como no nazismo e no fascismo ou actualmente em certos aspectos da sociedade de consumo.

A defesa do pluralismo cultural como horizonte de desenvolvimento para as sociedades contemporâneas supõe dois pressupostos. Primeiro, a possibilidade para cada cultura de desenvolver visões do homem e do mundo, sistemas de valores e de crenças que a faz irredutível face a outras. Segundo o reconhecimento de que essas visões do mundo, esses valores, essas crenças são o produto de uma cultura e logo de que cada uma é chamada a redefinir os seus próprios modelos culturais e a situar-se relativamente a eles. É verdade que estas ideologias do pluralismo cultural são indissociáveis dum certo relativismo cultural.

As transmigrações a que já aludimos no mundo de hoje e a sua aceleração histórica levam-nos a constatar que neste fim de século assistimos à passagem de sociedades Pluriculturais - nas quais se isolam, se afrontam e tentam destruir diferentes culturas - a sociedades Interculturais - nas quais os conjuntos culturais são inevitavelmente chamados a interagir, devendo tirar partido das suas diferenças ou desaparecer.

Democracia e minorias

Só no contexto de sociedades democráticas é que se poderá encarar um futuro mais risonho para as questões que os grupos sociais diferentes levantam na vida e na construção dessas mesmas sociedades. Os legisladores precisam do conceito de minoria étnica para elaborarem uma carta de direitos e deveres das minorias no contexto de uma sociedade democrática. Mas o sociólogos vão chamando a atenção para o carácter discriminatório que o próprio conceito de minoria evoca ou provoca nos seus interlocutores. Os sociólogos preferem falar tão somente de grupos sociais ou de povos diferentes. Contudo, e por agora, o direito não se basta com esses conceitos tão vastos. Assim a reflexão forense e teológica continua a preferir falar de minorias. Nos últimos anos, na Europa, alguns pensadores e alguns colóquios têm abordado a questão dos "Direitos e Deveres das minorias testados pela realidade étnica". Toda a reflexão deste problema tem como fundamento a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas o recurso a essa declaração está longe de ser suficiente . As problemáticas levantadas pelas transmigrações nos últimos cinquenta anos exigem hoje um tratamento específico desta categoria de direitos.

Aqui o choque entre a cultura americana e europeia é patente. Sobre a pretensão de que os Estados Unidos da América realizaram o ideal do diálogo cultural, os americanos defendem o pluriculturalismo. Isto é: reconhecem, e por vezes ao extremo, a diversidade das culturas. Criam legislações protectoras e até foram pioneiros na chamada discriminação positiva. A tal ponto que alguns reivindicam a pertença a uma minoria como modo expedito de ter acesso a privilégios e prerrogativas que de outro modo lhes seriam negadas. Mas ao defender o seu multiculturalismo a ponto de proclamarem que a América é o exemplo do melting pot , a cultura americana esconde a sua constante recusa do outro cultural. Na Europa, quer em Itália quer sobretudo na França, defendem-se em meios universitários, antes de mais, e depois em posições mais ou menos políticas, a visão ou a postura da interculturalidade. Nesta visão tenta-se promover o diálogo intercultural, isto é, a verdadeira interpenetração das culturas. Existem mesmo aqueles que nesta perspectiva defendem a miscegenação como ideal da futura sociedade europeia. O primeiro passo para esta visão é exactamente o de iniciar o diálogo cultural, o reconhecimento do outro, a descoberta da sua contribuição cultural para a família dos povos. Depois inicia-se o trabalho legislativo que deve assegurar as condições de segurança base para um desenvolvimento das populações. Trabalho ingente se nos lembrarmos, por exemplo, de que a UNESCO recenseou no mundo 50 mil culturas diferentes.

Mas a instauração de uma cultura da paz no mundo e que venha ocupar o lugar da cultura da guerra, que até hoje dominou a vida da humanidade, passa não só pela prática da não-violência mas também pelo exercício, em todos os seus azimutes, do diálogo cultural.

Vale a pena, ao terminar, recordar o ponto 4 do Manifesto 2000 da UNESCO: "Ouvir para compreender. Defender a liberdade de expressão e a diversidade cultural, privilegiando sempre a capacidade de ouvir e de dialogar sem ceder ao fanatismo, à maledicência e à rejeição do próximo".

Luís de França
Romualda Fernandes