O.CADERNOS DO ISTA, 5
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A neutralidade do Estado | ||
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Um das facetas mais interessantes em Rawls reside na sua capacidade para ouvir as críticas, aproveitando quase sempre alguma coisa delas para acrescentar à sua própria posição. Não falta, até, quem acuse Rawls de ir discretamente modificando as suas propostas, de maneira a escapar às críticas mais sérias. E, de facto, notam-se diferenças muito significativas entre a Theory of Justice , de 1971, e o Political Liberalism (que em 1993 incorporou e sistematizou os principais ensaios de Rawls suscitados pela imensa polémica que o seu primeiro livro levantou, sobretudo por parte dos chamados “comunitaristas”). Pela minha parte, penso que a evolução de Rawls é sobretudo um bom exemplo de seriedade académica, de capacidade para entender os argumentos dos adversários e para corrigir aquilo que deveria ser corrigido, sem, porventura, renunciar ao essencial da intuição inicial do filósofo. É assim que, a partir de 1987, Rawls desenvolveu um conceito novo - o “consenso por sobreposição” (overlapping consensus), que deve muito às críticas dos adversários do individualismo liberal e em particular daqueles que insistiram na impossibilidade de não se partir de alguma concepção do bem para estabelecer uma moralidade pública. Reconhecendo que a sua teoria apenas é aplicável a um certo tipo de sociedades (as democracias ocidentais), o que lhe limita o grau de universalidade, Rawls desenvolve a ideia de um “consenso por sobreposição”, isto é, de uma zona em que coincidem diferentes concepções substantivas da vida e do homem nessas sociedades - por exemplo, crentes, agnósticos e ateus concordam (embora, talvez, por motivos diferentes) em que a liberdade é desejável e a democracia política o melhor regime possível e concluem assim que devem ser estabelecidos determinados princípios constitucionais na colectividade, dando corpo à concepção de justiça da Theory. E, de facto, é óbvio que uma moderna sociedade pluralista não pode ser regida extensivamente por uma qualquer concepção substantiva do bem, tal como aconteceu no tempo da “cristandade”, ou como os regimes totalitários procuraram aplicar ou, ainda, como, hoje, o Islão (ou parte dele) pretende impor. O Estado democrático é forçosamente neutro perante numerosos pontos de vista sustantivos, que envolvem desde a religião ao gosto estético, passando por boa parte da moral privada. A democracia pode até definir-se por ser uma atitude de concordar em... discordar. Ou seja, de conviver pacificamente com quem pensa de maneira diferente da nossa. Caso contrário, regressaríamos à ditaduras políticas e culturais e, provavelmente, à guerra civil. Simplesmente, se é verdade que, em democracia, as concepções do bem perfilhadas de alguma maneira pelo poder político (e que se traduzem em leis coercivamente impostas pelo Estado) devem ser o mais restritas possível, de maneira a deixar espaços de liberdade para que cada um cultive os seus valores e prossiga a sua própria concepção do bem - se é isso é verdade (e os comunitaristas por vezes esquecem-no), não é menos certo que jamais se pode abstrair de alguma concepção do bem, ainda que limitada. Não julgo viável, por exemplo, uma concepção do justo sem alguma ideia substantiva sobre a pessoa e a sua dignidade. Uma moral apenas adjectiva e processual é, creio, uma impossibilidade. Por isso há liberais, como Willy Kymlicka, que abertamente rejeitam a prioridade do justo sobre o bem, acrescentando que, no fundo, Rawls e um perfeccionista não discordam quanto à prioridade entre um e outro valor - discordam, sim, quanto à melhor maneira de definir e de promover o bem das pessoas. Para Kymlicka - e eu concordo - a neutralidade do Estado significa tratar as pessoas como iguais, dando a cada uma idêntico peso. Igualdade quer dizer que cada pessoa tem direito à plena e equitativa participação na vida política, económica e cultural do país, sem acepção de sexo, raça, religião, ou deficiência física. Não se trata, pois, de que só um Estado completamente neutro possa ser legítimo: não há, nem pode haver, Estados completamente neutros face a valores substantivos. |
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A dimensão colectiva | ||
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Só uma perspectiva deste tipo consegue dar conta de um dos problemas mais prementes das modernas sociedades pluralistas: o multiculturalismo. O individualismo liberal tradicionalmente ignora que há frequente contradição entre os direitos individuais (baseados em normas universais) e os direitos colectivos, designadamente de minorias culturais e étnicas (baseados em particularismos). Digamos que o pluralismo não se pode colocar apenas em termos individuais - ele tem uma óbvia dimensão colectiva, até porque cada vez mais coexistem nas nossas sociedades grupos com identidades étnico-culturais extremamente marcadas e diversas. Como regular a sua convivência em termos éticos e jurídicos? Creio que uma concepção que valorize a dimensão colectiva da pessoa é a única que pode ajudar, aqui, a encontrar respostas. Naturalmente que os direitos colectivos (o direito a uma identidade cultural própria, por exemplo) apenas têm sentido e justificação se servirem os interesses das pessoas individuais. Mas é redutor o enfoque exclusivo no indivíduo enquanto tal, sem a dimensão social e dialógica que também o constitui; tal enfoque não se revela capaz de captar uma série de realidades da vida. É o caso dos conflitos e dilemas que as minorias culturais colocam hoje, assim como é o caso da liberdade política ou, até, do simples fenómeno político “tout court”. O pensador individualista liberal Hayek escreveu - estranhando e lamentando - que a busca da liberdade nacional, designadamente em países colonizados, tenha por vezes levado pessoas a preferirem um déspota da sua nação a um governo liberal mas estrangeiro. É pena, de facto, mas é compreensível. Hayek não se apercebeu de que a liberdade de uma pessoa envolve, também, a liberdade do grupo, ou da nação, a que pertence: o indivíduo sentir-se-à justificadamente mais livre se o seu povo puder exercer o direito à auto-determinação e ao auto-governo, ainda que, desgraçadamente, este governo não seja democrático. Para o individualista liberal - que Rawls é, embora sofisticado e bem consciente dos problemas da sua posição - a liberdade consiste basicamente em algo de negativo, no sentido de ser liberdade “de” (estar livre de algo, liberty from) e não liberdade “para” fazer algo (liberty to), para usar a célebre distinção de Isahia Berlin. Assim, a liberdade significaria essencialmente preservar uma esfera pessoal, privada, da interferência dos outros e do Estado. Não se encara o direito à participação na formação da vontade política do colectividade como uma faceta da liberdade - liberdade política, exactamente. Nem se valoriza o espaço público onde as decisões colectivas podem e devem ser influenciadas e debatidas. Esta tendência individualista liberal para dar prioridade à esfera privada conduz, naturalmente, a atitudes de incompreensão pelo fenómeno político, que pertence à esfera pública. Daí uma atitude frequentemente negativa face ao poder político, considerado um mal porventura necessário, mas um mal - em vez de ser visto como uma condição de possibilidade da vida em sociedade e um instrumento para melhorar a vida das pessoas (objectivo que as desilusões com o colectivismo comunista e, até, com alguns excessos de intervencionismo estatal no Ocidente não contribuiram, claro, para prestigiar). Por isso Carl Schmitt, um pensador não liberal, tinha alguma razão ao dizer, no princípio do século, que não era possível haver uma política liberal, apenas uma crítica liberal da política. |
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Empobrecimento do debate público | ||
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O método contratualista de Rawls leva, por outro lado, a um resultado infeliz: como, nessa óptica, as pessoas não se podem entender sobre as questões substantivas, e tão somente são susceptíveis de concordar quanto a uma “justiça” processual, segue-se que qualquer discussão pública dessas questões substantivas não apenas surge como inútil para o estabelecimento de uma ética pública (uma vez que se trata de concepções da esfera privada) como, até, pode ser prejudicial ao bem público, na medida em que vem criar divisões na sociedade. Daí a regra tácita de não se falar publicamente de certos temas, desde a religião até à maneira como cada um encara o mundo e a vida. Naturalmente que esta atitude de evitar os “problemas que dividem”, sendo compreeensível (não discutir religião foi com certeza um elemento importante para superar as guerras religiosas do passado), implica uma factura pesada para a vida democrática nas nossas sociedades, pois empobrece radicalmente o espaço público de debate. É bem possível, mesmo, que uma parte do actual descrédito da vida política nas democracias tenha também a ver com este empobrecimento, tornado mais evidente desde que desapareceu o confronto ideológico com o comunismo. Ora já acentuei que é impossível abstrair de alguma concepção substantiva do bem para estabelecer regras que todos devem acatar - ou seja, regras que o Estado tem legitimidade para impor. Basta pensar nas políticas de redistribuição de rendimentos pela via fiscal (que praticamente todos os governos tentam realizar) ou nas políticas culturais, ou até em qualquer posição legal face ao aborto, para se concluir, que, de uma maneira ou de outra, o Estado não é aí neutro, nem o poderia ser. É verdade que a democracia significa, em larga medida, “concordar em discordar”, isto é, no Estado democrático eu aceito viver com leis e medidas com as quais não concordo (caso contrário, teríamos a guerra civil). Daí o valor da tolerância, que, repito, começou por ser tolerância religiosa. Mas tudo isso tem limites e limites substantivos. Assim, por muito respeito que me mereçam outras culturas diferentes da minha, não posso aceitar passivamente que o meu vizinho (por hipótese absurda) mate à nascença as crianças do sexo feminino; ou que, alegando motivos religiosos, deixe um filho morrer por não aceitar uma transfusão de sangue. Quer dizer: alguma concepção substantiva da dignidade da pessoa humana tem de presidir à vida em sociedade. Não, com certeza, uma concepção extensiva (no sentido do inglês “comprehensive”), traduzindo uma visão pormenorizada do sentido da vida - tal seria inviável nas actuais sociedades pluralistas em que convivem crentes de várias confissões com agnósticos, ateus, etc. Mas um consenso mínimo sobre valores substantivos tem de existir, como de facto existe: veja-se, por exemplo, a condenação generalizada do terrorismo como arma política, ou da corrupção, ou da pedofilia. De tanto insistirmos na novidade histórica que é o pluralismo - onde o Estado já não impõe a todos uma religião ou uma ideologia - às vezes não nos damos conta daquilo que realmente nos une. |
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Consenso e legitimidade | ||
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Só que não nos une a todos, facto de que Rawls - tão atento à situação concreta das nossas sociedades - não tira as consequências. Não faltam anti-democratas nas modernas democracias; mesmo sem falar nos problemas complicados que o multiculturalismo coloca, há sempre quem não esteja de acordo com os valores e os princípios básicos de uma sociedade democrática. Os intervenientes na “posição original” de Rawls não reflectem a realidade, toda a realidade. Se um acordo unânime se revela na prática inviável (basta que uma pessoa não concorde...) o esquema contratualista fica, creio, seriamente afectado enquanto fórmula para legitimar o exercício do poder democrático. Não que tal esquema - mesmo em Rousseau - se refira a qualquer contrato histórico, que obviamente nunca existiu. Mas é a própria lógica contratualista que assim revela os seus limites. Teremos, então, de regressar à imposição pelo poder político de ideologias, de concepções do bem, de ideais de vida, a toda a gente? Com certeza que não: o liberalismo trouxe à nossa civilização progressos inestimáveis, que não podem ser abandonados. Valores como a liberdade e a tolerância constituem um património de que as modernas sociedades pluralistas não devem nunca abrir mão. Há, todavia, que comprender os limites desses valores - coisa que o individualismo nem sempre faz. E não o faz, também, porque desvaloriza a esfera pública, para se concentrar apenas na autonomia privada. É que a legitimidade para impor, a todos, medidas com as quais nem todos concordam (o que acontece diariamente em qualquer Estado democrático) assenta na possibilidade de intervenção de todos e de cada um na formação de consensos maioritários no espaço público, ou seja, na formação da vontade colectiva. Por isso julgo que o direito de participação política faz parte da liberdade, é uma das suas facetas essenciais. A nível individual, a liberdade é indispensável até (como dizia Stuart Mill) para questionarmos, re-examinarmos e revermos as nossas crenças em matéria de projectos de vida. Há projectos mais valiosos do que outros e a liberdade permite precisamente às pessoas essa procura do que é valioso na vida. O liberal perfeccionista Joseph Raz segue também esta linha: a liberdade é uma condição necessária para a procura do bem. Se do nível individual passarmos para o plano colectivo, torna-se ainda mais evidente a importância da liberdade política para se assumirem colectivamente certas medidas e se tomarem certas posições. Sendo inevitável que, de uma ou de outra forma, o poder político tome decisões (ou deixe de tomar) que reflictam, em alguma medida, valores substantivos, então a legitimidade para o fazer só pode partir do direito que é dado a todos de influenciarem e até de participarem nessas decisões. A colectividade enquanto tal também é chamada a descobrir aquilo que é valioso - não, decerto, no plano das concepções extensivas do bem, mas quanto ao âmbito muito mais limitado, mas incontornável, da escolha de um “mínimo ético” substantivo que tem de presidir à vida colectiva (e que irá determinar decisões em múltiplos campos, que vão da fiscalidade à cultura). Na formação da vontade colectiva todos têm o direito de participar, num debate livre em que cada um pode questionar, criticar, propor e rever não apenas crenças em valores predominantes na sociedade como também medidas do poder político baseadas nessas crenças. Assim se formam consensos éticos, sem dúvida nunca unânimes, mas desejavelmente partilhados por largas maiorias, consensos onde o poder legitima as medidas que toma. Mas esses consensos nunca estão fechados, são sempre provisórios: sem prejuízo de ser preciso fazer leis e aplicar decisões (ou seja, o debate de umas e de outras não dura indefinidamente), toda a gente pode criticar aquilo com que não concorda, e que no entanto teve porventura de aceitar por decisão da maioria. De resto, o que é o essencial e o mais nobre da vida política senão o combate permanente para convencer os outros dos valores que perfilho e das concepções do bem que me parecem mais valiosas? E se continuo convencido da justeza das minhas posições, não é o facto de a maioria pensar de outra maneira e de o poder político ter adoptado esse outro ponto de vista maioriário que me impede de, no espaço público, prosseguir a luta pelos meus ideais. Francisco Sarsfield Cabral |
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