O.CADERNOS DO ISTA, 5

O Elogio das Virtudes
Isabel Renaud (3)


2. Consciência e natureza

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Face à consciência, a natureza humana é corpo; se contudo reduplicarmos o sentido de natureza, poderemos perguntar pela natureza da consciência e pela natureza do corpo; evitaremos contudo esta reduplicação, para reservar o termo de natureza, nesta primeira fase, ao conceito de corpo. Ora, quando o ser humano se apreende a si como corpo, é sempre de modo reflexivo, isto é, é sempre mediante a consciência viva de ser corpo. Viver o seu corpo e dizer-se que se tem um corpo constituem duas atitudes diferentes; a primeira já existe desde a infância mais recuada, ao passo que a segunda introduz já um mínimo de diferença entre o corpo e o sujeito que diz que tem um corpo. Esta diferença é precisamente a consciência viva e explícita, que reduplica, por assim dizer, a consciência imediata, plenamente imersa no fluxo da vida. O que tencionamos sublinhar nesta estrutura «consciência - corpo» é tão simples como importante. O corpo existe para a consciência e não a consciência para o corpo; não entendamos porém esta formulação como a reprodução do dualismo cartesiano, como se devêssemos ser o alvo das críticas habituais contra a visão dualista do homem, O corpo, com efeito, está presente à consciência, como a sua condição de possibilidade, como o seu substrato sempre activo quando a consciência - imediata ou reflexiva - entra em jogo, se vive ou se pensa. O ser humano não tem acesso ao seu próprio corpo senão a partir da sua interioridade consciente; para cada um de nós, não faz sentido falar da existência do próprio corpo fora do contexto da sua experiência interior. Segue-se que o conhecimento científico do corpo biológico se realiza sempre por abstracção a partir da experiência vivida do corpo. O facto de esta abstracção ser possível, o facto de o corpo juntar uma face objectivável a uma dimensão subjectiva somente acessível ao sujeito que fala de si dizendo «eu», mostra a dificuldade de pensar este substrato natural da consciência. Noutros termos, no sentido da natueza-essência, o corpo não é uma simples natureza biológica; a sua natureza-essência consiste precisamente em não se identificar com a sua natureza biológica.

Era importante lembrar estes dados da fenomenologia do corpo para compreender a circularidade que rege a relação entre a consciência e o corpo; em termos de natureza, afirmaremos que a natureza do ser humano é somente tal pelo facto de ser atravessada pela consciência; reciprocamente, a consciência nunca poderá ser compreendida como pura, à maneira de Descartes, dado que só é o que ela é mediante a sua «travessia» pelo corpo.

Se nos deslocarmos para a perspectiva da bioética, a questão terá que ser formulada do modo seguinte : que forma de respeito é devida ao corpo ? Não há dúvida que perguntamos pelo respeito ético devido ao corpo próprio. Ora, se o «meu» corpo não é visto de fora, a partir do olhar do outro, o respeito parece surgir da «minha» consciência que, sob pena de suicídio, não pode prejudicar o substrato da sua própria vida consciente. O respeito é então sinónimo de vontade de auto-conservação e esta não precisa em geral de acenar a bandeira da ética para justificar o «respeito» devido ao corpo próprio. O problema ético surge somente quando a própria pessoa não quer continuar a viver ou quando quer modificar o seu próprio corpo mais do que superficialmente. Reservando esta questão para a terceira fase desta análise, devemos considerar porém o caso do respeito devido ao corpo da outra pessoa; na base da nossa compreensão do corpo subjectivo, não se pode, na questão do respeito pelo corpo, dissociar o respeito pelo corpo do respeito pela consciência pessoal. À questão «será o corpo biológico fundamento da atitude ética», deveremos responder que, em virtude de o corpo biológico ser uma abstracção praticada sobre o fenómeno subjectivo do corpo, em virtude, também, de o corpo subjectivo ser a faceta expressiva da consciência encarnada, o corpo é tão fundamento desta atitude ética como a própria consciência. Noutros termos, o fundamento da atitude ética deveria residir na consciência subjectiva que reflecte a sua identidade através do corpo. O que até agora verificamos ainda não é uma resposta completa à questão levantada - qual é o fundamento da atitude ética -, mas somente uma transposição da questão «será a natureza (biológica) fundamento da atitude ética ?».

O fundamento da atitude ética reside na exigência pela qual a consciência toma sobre si a tarefa da sua auto-realização ética. No cumprimento desta tarefa, ela não pode destruir a sua condição de possibilidade; queremos dizer que a consciência que se realiza eticamente é uma consciência encarnada e é enquanto tal que deve realizar-se. Não faria portanto sentido se, nesta tarefa de realização, ela fosse levada a ignorar o seu ponto de partida, isto é, ela própria enquanto implicando o corpo subjectivo.

No entanto, faz parte da realização ética descentrar a subjectividade em proveito dos valores aos quais se pretende simultaneamente dar vida e prestar homenagem. Pode acontecer deste modo que o sujeito consciente seja levado a sacrificar a sua existência física ao serviço de tais valores. Em geral, os casos semelhantes apresentam-se hoje não como um desejo de ir ao encontro da morte, mas como a aceitação do risco de morte inerente a um determinado comportamento norteado por valores específicos; por exemplo, a coragem actual dos jornalistas argelinos ilustra esta atitude ética, que já fez perecer tantos dos seus colegas; outro exemplo será o ideal de justiça de vários juizes colombianos lutando contra a droga, embora conhecendo o fim dramático que muitos deles já encontraram. O que fundamenta essas atitudes de dedicação é uma certa ideia do destino espiritual que predomina sobre a conservação a todo o custo da integridade física e psicológica.

Desviámo-nos da nossa questão; perguntando pela forma de respeito que o corpo merece, não fazemos do corpo o fundamento da atitude ética, mas, no fim de contas, um momento constitutivo do sujeito ético, do sujeito portador da atitude ética. Quando, porém, o corpo é apreendido e proposto como objecto de respeito, trata-se em geral do corpo do outro, e não do meu. Ao corpo do outro aplica-se o que foi dito do meu corpo subjectivo, o que significa que, através do corpo do outro, é a sua consciência e a sua liberdade pessoal que está em jogo. O respeito pelo corpo do outro é assim uma forma de realização ética do «si próprio» do outro, e neste sentido, está implicado no fundamento da atitude ética.

A conclusão desta fase da nossa reflexão não precisa de muitas palavras. Da natureza biológica, passámos para o corpo subjectivo; o corpo subjectivo levou-nos à consciência encarnada, portadora da intenção ética; o corpo do outro situa-se sobre o trajecto da minha realização ética quando é compreendido do mesmo modo que o meu próprio corpo. A minha realização ética torna-se então contemporânea da realização ética do outro, que promove e de que espera a reciprocidade. O natureza corpórea é fundamento da ética quando se identifica com a exigência de respeito que emerge da consciência encarnada e pessoal do outro. Se, como dizia Kant, a pessoa é um fim em si, não se pode dissociar deste fim em si a dimensão da subjectividade corpórea, que opera como o seu substrato natural.

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3. Ética e natureza. A identidade genética.
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O estudo dos pressupostos naturais da ética, tal como a compreensão do papel da natureza na bioética não se apresentam como fixos de uma vez para todas. O progresso dos nossos conhecimentos quanto aos processos vitais do corpo humano obriga a uma revisão das relações entre a vivência subjectiva do corpo tal como foi evocada acima e a face externa do corpo. É assim que volta a surgir a questão do respeito devido à integridade desta face externa. N primeira fase da análise, o deslize, correcto, para o corpo subjectivo não prestou uma atenção suficiente à dimensão objectiva do corpo. Em que medida um intervenção nesta faceta objectiva do corpo atinge a integridade subjectiva do corpo vivido ? Tal como sabemos, a questão provém dos poderes novos da medicina assim das ciências ligadas ao ser vivo, genética, bioquímica, etc. Deste ponto de vista, a questão da natureza como fundamento da ética volta com toda a sua força. Será o respeito pelo «substrato natural objectivo» da pessoa humana um modo de fundamentar a ética da vida ? A resposta articular-se-á em vários pontos.

Em primeiro lugar, a conclusão à qual já temos chegado deve ser mantida; o fundamento da ética não se encontra senão na exigência da realização de si própria por parte da pessoa. Mas tudo se passa como se agora a própria pessoa se desdobrasse e se considerasse como «um outro», já não a outra pessoa, mas o próprio corpo objectivo , como se uma exigência «fundamental» da ética proviesse do corpo objectivo ( do meu ou da outra pessoa ).

Em segundo lugar, a dificuldade subjacente consiste em saber até que ponto a identidade pessoal pode ser diluída nos e pelos elementos objectivos da sua natureza biológica ou transferida para esses elementos. Há casos simples e onde é evidente que a pessoa permanece ela própria apesar de modificações impostas à sua natureza física; por exemplo, a cirurgia plástica que dá às senhoras de cinquenta ou sessenta anos uma aparência de jovem vedeta não afecta a sua identidade, mas talvez só a sua psicologia ! Verificamos contudo que existem limites de intervenção que não podem ser ultrapassados sem afectar pouco a pouco a identidade pessoal. A dificuldade teórica começa quando tentamos discernir o momento a partir do qual surge esta alteração de identidade. Se os exemplos da cirurgia plástica não parecem assim suscitar muitos problemas, mais graves serão os casos, ainda raros mas eventualmente banais no futuro, em que a modificação genética terá a possibilidade de interferir com a identidade pessoal. O que é ético nesta matéria ? Sabemos que os Comités de Bioética já foram atentos a esta situação, declarando que só será eticamente justificada a intervenção genética em proveito da saúde do próprio sujeito tratado. Mas fiel à tradição de uma boa sabedoria prática, esta resposta ainda não satisfaz a nossa preocupação teórica sobre a ética da vida.

Em segundo lugar, diremos que os genes não têm uma identidade «subjectiva» independente do ser humano que é o seu portador. Não são os genes que constituem a pessoa ou que tomam a decisão de constituir a pessoa, mas é a pessoa que «se» constitui mediante o seu desenvolvimento genético. Esta formulação é mais que um exercício de estilo de uma filosofia algo meticulosa e obcecada, mas o enunciado a partir do qual só pode haver uma fundamentação ética. Sem esta rigorosa precisão, não se poderá evitar uma mistura de níveis de linguagem tal como a que se reflecte numa declaração de amor que retiramos da Biologia das Paixões , citada por Antoine Vergote 1 . O que diríamos com efeito se os nossos maridos nos interpelassem do seguinte modo : «Desejo, meu bom desejo, não serás tu senão um caldo de feiticeira, apenas mais odorífero que humores de ratazana ? Dopamina e serotinina guiam o meu olhar para ti, ó minha bem amada. É para ti somente que escorre a luliberina no meu hipotálamo inflamado». Do mesmo modo, o que diríamos se fizéssemos falar os nossos genes, como se fossem os suportes da nossa inconsciente responsabilidade e o substituto da nossa liberdade ? Do ponto de vista do sujeito ético, o código genético apresenta-se como uma especificação originária do corpo objectivo. Ele não tem sentido para mim senão enquanto atravessado pela minha identidade pessoal; esta reassume este código genético com a mediação objectiva fundamental que tem o seu sentido fora dela própria.

Não é porém com essas considerações que vamos resolver a questão levantada; que forma de respeito exige o meu património genético para que não se dissolva a minha identidade pessoal ? A formulação da questão faz da estrutura genética um objecto de respeito, cujo sentido já não é somente o poder de interpelação ética que provém do corpo do outro. De qual ponto do horizonte surgirá então o sentido deste respeito ético ? Da impossibilidade de incorporar no trajecto da realização do si próprio um segmento que transforma biológica ou geneticamente este si próprio. No caso contrário, chegaríamos com efeito a esta situação paradoxal que, para me realizar a mim próprio me transformaria numa outra personalidade que não eu mesmo. Onde se situaria a continuidade que deve assegurar que o sujeito que se realiza eticamente é o mesmo que ele próprio no início do seu agir ético. De facto, o sonho subjacente à transformação genética gratuita é a vontade de se fazer a si próprio, de introduzir uma decisão livre quanto à constituição deste substrato genético que condiciona o meu corpo objectivo. É aqui que eticamente se desvenda uma subtil vontade prometeana na base da manipulação genética não norteada por imperativos de saúde. É aqui também que se manifesta uma cada vez mais clara recusa da condição finita do ser humano. Ora, continuamos a pensar que, qualquer que seja a extensão da possibilidade de manipulação genética, nunca será possível ser-se autor da sua própria identidade genética.

Um último exemplo poderá clarificar a nossa reflexão; se por hipótese conseguíssemos, como adultos, escolher as nossas modificações genéticas e transformar assim não só a nossa aparência física, mas também a nossa interioridade, não se vislumbra quem teria a consciência da identidade dos dois estados de mim próprio, isto é, do eu antes da sua modificação genética e do eu depois desta modificação. Se esta fosse tão profunda que me modificasse completamente, qual seria o eu que teria a consciência destes dois estados da sua personalidade ? A nossa resposta é que teríamos dois eus sem continuidade, ou com uma continuidade esquecida e portanto inexistente.

Deste exemplo hipotético e actualmente irrealista, podemos tirar a conclusão de que a tarefa ética de realização pessoal só é possível se se mantiver a identidade do eu pessoal e se não se passa subtilmente para a realização de um outro eu em descontinuidade com o primeiro.

O nosso conceito de natureza corpórea sai enriquecido desta investigação. Em vez de considerar esta natureza, no campo da bioética, como fundamento da ética e da ética da vida, ela é objecto de respeito ético, como se o respeito pelo outro não se limitasse somente ao outro, à outra pessoa fora de mim, mas também ao outro em mim, quer dizer, não a uma outra pessoa em mim, mas a este outro que constitui o substrato genético e biológico em mim, Será a natureza um pressuposto da ética da vida, perguntou-se no princípio ? A resposta aparece agora quase simples e límpida; pressuposto, não, mas condição de possibilidade da identidade pessoal e, por isso mesmo, objecto de um respeito ético incondicional sob pena de suicídio psicológico desta própria identidade.

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