O.CADERNOS DO ISTA, 5
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Conclusão |
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Agustina mantém uma relação com Deus, sem intermediários, sentindo-se sempre um pouco estranha na educação virilizante que é a teologia (Portela: 66). Deus humanizou-se demasiado, diz, “e o ser humano quer um Deus à distância, porque a perfeição tem que estar à distância” (Portela: 35). Nós temos que ser humanos, que é o que somos. “A humanização de Deus criou um isolamento maior no Homem, em vez de criar um estado de aliança. Acho que as religiões que situam Deus no seu própiro lugar, no seu céu, que o homem cria para o seu Deus, são aquelas que têm uma maior coerência, uma aliança maior entre si.” (Portela: 69). Agustina - a “filha de Deus” - goza de um estado de confiança absoluta em relação à vida que Duras nunca conheceu: “Nous sommes toutes instruites de la douleur”, escreve Duras (1), que recusa uma interpretação apenas psicológica da afectividade: “ La femme du Gange c´est le vide (...) la soufrance et le désir purs, purs de tout attendrissement, de tout sentiment (...) ( Parleuses, p. 230). E ainda: “C´est ce désenchantement fabuleux dont je dis plus haut qu´il nous a rapprochés de Dieu. C´est avoir traîné derrière soi une contrée de désespoir. C´est ça, c´est un savoir sur le désespoir.” in “La perte de la vérité”, L´autre journal, nº 8, oct. 1985, p. 9. O “Deus patético” de Israel é inseparavelmente um Deus vivente e um Deus sofrente. Deus é simultaneamente “mobilidade e paixão, ressurreição e vida”, e não “ser supremo”, impassível: Deus sofre paixão com os homens. Só o sofisma de Caim faz de Deus o único responsável pelo mal. Certas parábolas antigas afirmam que Deus chora e se lamenta, como o rei Lear traído pelos seus próprios filhos. “A oração de compaixão judaica eleva-se também pelo sofrimento que Deus, o Pai de todos os homens, sofre neste mundo em que o homem o atormenta desfigurando-se a si próprio” (Lévinas). Para E. Lévinas, não é o carácter “razoável” dos “cidadãos” enquanto “membros normais e plenamente cooperantes da sociedade” (2) que pode garantir em si mesmo a justiça das instituições. “Há crueldades que são terríveis, porque provêem precisamente da necessidade da Ordem razoável. Há, por assim dizer, lágrimas que um funcionário não vê: as lágrimas de Outrém...É preciso, numa tal situação, que haja consciências individuais, as únicas capazes de ver estas violências que decorrem do bom funcionamento da Razão” (3). Não basta a solidariedade, seja ela um valor (da união entre as pessoas e grupos, compartilhando as suas necessidades e sentindo com eles a sua dor e o seu sofrimento), uma virtude (de compensar as deficiências da justiça político-estatal por exemplo na forma de ajuda humanitária, uma virtude como a amizade aristotélica, a caridade cristã e a compaixão burguesa) ou uma situação. Não basta ser etnocêntrico tornando cada vez amplo o universo comum do nós (4). Não basta alargar a noção de endogrupo à de exogrupo. Há a dor e há a humilhação. Há a dor física ou orgânica, comum aos seres humanos e aos animais - A. Arendt fala de “piedade animal” e G. Vattimo torna extensiva a piedade a entidades histórico-culturais! A humilhação é um tipo de dor própria e exclusiva da espécie humana. Derrida tem posto em causa esta “simpatia natural”, o “mito da presença” pura e imediata de uma natureza ou os “sentimentos naturais”. Na piedade rousseauniana não há lugar para a humilhação e a dor que causa danos irreparáveis na identidade individual de um ser humano mediante a violência física ou simbólica. O sofrimento é ao mesmo tempo uma solidão inultrapassável, inacessível, e um apelo, formulado ou não, um pedido de socorro àquele que, porque outro e exterior, tem a possibilidade de prometer um alívio, de ajudar a viver a singularidade que faz de cada um de nós seres insubstituíveis. “a carícia do consolador que aflora na dor não promete o fim do sofrimento, não anuncia compensação, não concerne, no seu contacto, o depois do tempo económico; tem a ver com o próprio instante da dor que deixa de estar condenada a si mesma, que arrastada “algures” pelo movimento da carícia, se liberta do tubo de “si-mesmo”, encontra “ar fresco”, uma dimensão e um futuro (5). Nem o egoísmo nem o altruísmo nos dão a medida da responsabilidade e da compaixão. O judaísmo pensa na bondade do homem que depõe a armadura do seu eu diante de um rosto desfigurado pela dor. Um dos nomes do Messias é Menahem, consolador: aquele que toma sobre si os sofrimentos e as penas do mundo, para aliviar, encorajar, como o servidor sofernte de que fala o profeta (IS, 53). “J´oublie de dire: c´est un des mots sacrés de toutes des sociétés, de toutes les langues, de toutes les responsabilités. Dans le monde entier, il en est ainsi de ce mot-là...Dès que le Christ est né, il a dû être prononcé quelque part e pour toujours...Je ne suis pas croyante. Je crois seulement à l´existence terrestre de Jésus-Christ. Je crois que c´est vrai. Que le Christ et Jeanne D´Arc, ils ont dû exister: leur martyre jusqu´à ce que s´ensuive leur mort. Ça a existé aussi. Ces mots-là, ils existent encore dans le monde entier.” ( Écrire , p. 132). A paixão de Deus é a única resposta ao problema do mal: “paixão do Pai, paixão do filho, duas encenações diferentes da dor unica de Deus”, diz ainda Lévinas, como se confundem a paixão de Jesus e a do povo judeu, paradoxalmente crucificado pelo mundo dito cristão. O Nome impronunciável, o Tetragrama, entreabre para nós a profundidade da vida divina, o seu “nó secreto” que é amor infinito. Misteriosa feminidade no coração do Pai misericordioso, ra´hamin , quer dizer, “matricial”, como traduz A. Chouraqui. A face de Deus voltada para o mundo foi a de Elohim , aquele que decreta a lei do cosmos, que distingue, delimita, dando a Torah que guia e protege. A Cruz de Cristo anuncia o fim do universo sacrificial, mas a tradição cristã teve dificuldade em assumir este fim absoluto porque valorizou a substituição sacrificial, fez dela uma espiritualidade, uma mística. O que deveria ser interdito à teologia cristã. Corre-se o risco de eternizar o sofrimento, teologizando-o. O sacrífício é uma passagem obrigratória da consciência diante de Deus, mas Deus não pode tolerar a realidade sacrificial. Se a ligadura de Isaac anuncia o fim do universo sacrificial. Uma tradição oral funda os sacrifícios do Templo sobre as lágrimas de Isaac e sobre a cinza do Carneiro. Esta contradição está no judaísmo e no cristianismo. É no deserto da desolação que ressoa a Palavra da Sarça. A glória primaveril da cerejeira transforma subitamente a banalidade chumbo do quotidiano num “sol amadurecido na argila fúnebre” (Claude Vigée, PP, 5). O homem profético “decifra a música do silêncio inscrita na carne do mundo” (MR, 34) e tenta incarnar na “difícil dança” da sua vida “a melodia que canta o Grande Passador de além-céu”. Oração e labor de compaixão, oração criadora. que “inclui evidentemente todos os filhos de Adão, Judeus e Gentios reunidos” (VJ, 51-52). A situação é crítica. Só a interioridade transparente, que é labor de transfiguração, sem abrigo do Nome, que é um fogo secreto, atiçará em nós o dever de jubilação e de presença a esta terra que deverá tornar-se inteiramente shabbath. Só o horror que nos afecta poderá ainda converter o nosso sentimento de indiferença, fazendo-nos descobrir a nós mesmos como um outro (Ricoeur). A parábola que conta Lucas (10, 25-37) a propósito de um homem ferido, abandonado à obra da morte entre Jerusalém e Jericó vem questionar a nossa situação óptica e sonora puras. Deixar um homem entre a vida e a morte, deixar fazer é ainda uma maneira de fazer. Para o Samaritano a vida do outro conta mais do que a sua viagem, assumindo até ao fim o serviço da vida do outro, sem se fazer o seu escravo e sem fazer dele o seu escravo.A parábola não responde à questão: “quem é o meu próximo?” É uma questão sem sentido. A questão vem do outro, e a diferença passa entre aqueles que ela não toca e aquele que se deixa atingir por ela: que me quer este homem semi-morto? O outro é sempre impossível de definir antecipadamente. Aquilo que ressoa a este nível profundo do humano não é da ordem das ideias generosas. A questão é apenas esta: se eu respondo ou não ao apelo mudo vindo do corpo do outro. Bem acima das máximas, das regras, dos imperativos e das normas éticas deontológicas, só sob o choque do horrror diante da nossa própria fragilidade é que a possibilidade de compadecer se pode tornar força de agir, virtude. Perdemos o caminho do encontro. “O facto moderno é que nós já não acreditamos neste mundo. Já nem sequer acreditamos naquilo que nos acontece, o amor, a morte, como se só a metade nos dissessem respeito. .. É a ligação do homem e do mundo que se encontra rompida”, dizia Deleuze, para acrescentar: “É esta ligação que se deve tornar objecto de crença...Só a crença no mundo pode religar o homem àquilo que ele vê e ouve” (6). O dia tornou-se indiscernível da Treva: “Há (...) um poço negro donde sempre, sem deliberação e sem pensamento, tiraremos o bem e o mal”, diz-se em Ternos Guerreiros (p. 378). Estamos reduzidos, ou à praga do niilismo, que é a resignação ao necessário, ao simulacro e ao desastre, ou à praga da moral que pontifica sempre em nome do Bem e do Mal e não da escala afectiva do alto e do baixo, e por conseguinte do bom e do mau. Com o niilismo desaparece Deus, mas fica a sua forma vazia, nomeadamente na moral universal de Kant, que Bataille explicitamente critica como “hipocrisia” perante a radicalidade do que está em causa na experiência. No seu Haine de la Poésie, G. Bataille diz o seguinte: “La poésie éloigne en même temps de la nuit et du jour. Elle ne peut ni mettre en question ni mettre en action ce monde qui me lie.” Mas reconhece também que a poesia revela um poder do desconhecido (7). A literatura liberta visões e audições que não são de ordem da linguagem, mas que não existem contudo fora da linguagem. É necessário encarar desassombradamente a relação entre ética e estética, esse nó górdio que Kant pura e simplesmente cortara ao desarticular ambos os campos, tornando-os estanques e incomunicáveis. Kierkegaard di-lo de uma outra forma: “Que diferença: debaixo do céu da estética tudo é ligeiro, belo, fugaz; mas quando intervém a ética, tudo endurece, tudo se torna espinhoso e mortalmente chato” (8). Poderemos atribuir a mesma virtude à literatura em geral? De resto, par a que serve, afinal, a literatura, se não for habitada por uma sensibilidade ao intolerável e à dor de se estar no mundo, anunciando, através da utopia da linguagem, a utopia de um mundo outro dentro deste mundo? A mendiga aponta a miséria da Índia, “ce réel qu´est l´Inde”. A literatura não desertou o real, entenda-se: “aquilo que resiste, insiste, existe irredutivelmente e se dá escapando-se como fruição, angústia, morte ou castração” (9). Agustina não deixa de fazer a análise crítica da revolução em Portugal, dando-nos retratos de personagens por onde se filtra essa análise (veja-se essa média-proprietária do Douro, Isabel Jeremias: “Não se tratava de revolução no sentido que cada um lhe queria dar, um triunfo, uma aposta sobre uma classe, por exemplo; era alguma coisa de mais profundo, talvez a extinção dum medo milenário, do desprezo por si próprio” ( CSO, p. 31). Tanto A Muralha como os livros que compõem As Relações Humanas ou A Bíblia dos Pobres, são romances que anunciam os riscos da impessoalidade, correspondentes à urbanização e à proletarização de Portugal, a parti dos anos vinte. Agustina nunca abandonou uma visão crítica relativamente aos mitos do progresso e aos projectos que apontam para uma emanipação final da humanidade. Com razão, F. Schiller avisava tanto contra as utopias de preenchimento material, como contra as religiões salvíficas, demonstrando como umas e outras tendem a devorar os diferimentos espácio-temporais, contaminando-os com formas de avidez ideológicas e dissolvendo-as em presentificações alucinadas (10). O último livro de Duras, C´est tout, chega depois da literatura como o resto: “Je ne peux me résoudre à être rien”. Este é um livro sem objecto, um livro apoiado apenas na escuta do Tu a que se dirige e na pobreza da verdade, do amor e da morte: “Viens vite. Je n´ai plus de bouche, plus de visage” (11). O que é o amor quando não há uma boca e um rosto onde dizer-se? O trágico é que não haja um rosto, um ouvido que ouça o grito soltado nas trevas: ”Quem, pois, nas ordens dos anjos/ me ouviria se gritasse?” lemos no princípio das Elegias de Duíno, de Rilke. O trágico seria que não houvesse sempre uma voz dentro de outra voz. É dessa percepção que o salmista grita “Inclinai vossos ouvidos e atendei-me/porque sou pobre e miserável/vós sois o meu Deus, tende compaixão de mim, Senhor/ pois a vós eu clamo sem cessar” (Sl 85,1-3). José Augusto Mourão |
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(1) Les Yeux bleus cheveux noirs , Paris, Les Editions de Minuit, 1986, p. 87
(2) J. Rawls, Libéralisme politique, Paris, PUF, 1995, p. 114. (3) E. Levinas, “Transcendance et hauteur”, (1962), retomado em Liberté et commandement , Montpellier, Fata Morgana, 1994, p. 80. (4) V. Camps, Virtudes públicas , Espasa Calpe, Madrid, 1990, p. 45. (5) Lévinas, EE, p. 156. Cf. M. Duras, La Douleur , p. 17: “Des bras serrés autour de soi, ça soulage. On pourrait presque croire que ça va mieux qualquefois. Une minute d´air respirable.” (6) Gilles Deleuze, Cinéma 2. L´image-temps, Paris, Minuit, 1985, p. 221-223. (7) Georges Battaille, La Haine de la Poésie, Paris, Minuit, 1947, p. 58. (8) S. Kierkegaard, L´alternative, Oeuvres Complètes , III, Ed. de L´Orante, p. 343;SW, I, p. 349. (9) Serge Leclaire, in Démasquer le réel, Seuil, 1971. (10) Teresa Salema Cadete, “O Píncipe e o Criminoso. Considerações em torno da Insolubilidade”, in Jogos de Estética. Jogos de Guerra. I Simpósio Nacional de Teoria Estética e Filosofias da Arte, Fund. das Casas de Fronteira e Alorna, Fevereiro, 1998. (11) C´est tout , P.O.L, 1995, p. 55. |
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